Com uma só canetada, o juiz da 5ª Vara da Fazenda Pública da Capital e Tutelas Coletivas, Raimundo Santana, deferiu vários pedidos contrários à pretensão da multinacional norueguesa Norsk Hydro, que vem enrolando a justiça do Pará em realizar exames nos moradores de diversas comunidades de Barcarena contaminados por rejeitos minerais despejados nos rios, igarapés e matas da região.
Para retardar essa providência, a Norsk Hydro e sua subsidiária Alunorte S.A – é bom lembrar que o Estado do Pará também é réu no caso – utilizam-se da velha tática processual da procrastinação para fugir do mérito, tentando impedir que as comunidades, que abrigam cerca de 70 mil pessoas, sejam representadas pela Associação dos Caboclos, Indígenas e Quilombolas da Amazônia (Cainquiama). A realização desses exames médicos era para ter sido feita há mais de dois anos, enquanto os casos de doenças, algumas graves, se acumulam nas comunidades pobres do município.
A busca por reparação de danos socioambientais às comunidades atingidas pela Hydro já extrapolou da justiça brasileira para a da Europa e na Holanda – corte de Roterdã – tramita uma ação da Cainquiama contra a multinacional norueguesa. Enquanto isso, na semana que passou, o juiz Raimundo Santana julgou e acatou os argumentos da Cainquiama contra a Norsk Hydro, um deles sobre a legitimidade da entidade para processar as duas empresas produtoras e exportadoras de alumínio.
Afirma o juiz na decisão: “Nesse contexto, resta evidente que esta ação possui feição coletiva, no que se refere ao objeto, à causa pedir e às pessoas afetadas. Essa circunstância, entretanto, não obsta que, em caso de procedência, os efeitos da decisão sejam aplicados aos beneficiários que são identificados a partir da condição de associados da autora e de residentes nas áreas supostamente afetadas pelos alegados danos”.
Raimundo Santana também afastou a “alegação de ilegitimidade autoral, na medida em que a entidade demandante está regularmente constituída e, salvo prova explícita superveniente em sentido diverso, tem capacidade para postular em nome dos seus associados, especialmente porque se trata de causa subordinada a uma situação fática que é comum a todos, vinculando-os tanto aos dramas relatados quanto aos interesses e direitos reclamados”. Após acolher as alegações da Cainquiama, o juiz marcou para o próximo dia 16 deste mês a audiência para julgar o pedido de exames médicos nas famílias das comunidades impactadas pelo despejo de rejeitos minerais.
O advogado Ismael Moraes, defensor da Cainquiama na ação judicial, disse ao Ver-o-Fato que essa nova decisão judicial representa “um marco dentro da história dos processos coletivos no Pará, porque ela admite a presença de uma associação no polo ativo como nunca antes havia sido admitida”. Segundo Moraes, essa admissão só ocorria em processos para o Ministério Público ou Procuradoria Geral do Estado.
“A forma como o dr. Raimundo Santana admitiu a Cainquiama nesse processo, estende o reflexo dessa admissão a outras cinco ações em que ela faz parte contra a Hydro e o Estado do Pará”, resumiu o advogado. Em uma causa de grande importância como esta, concluiu Moraes, isso precisa ser destacado.
Veja, abaixo, a íntegra da decisão judicial:
DECISÃO
“Vistos.
Trata-se de ação civil coletiva, movida por entidade representativa de grupos de moradores das comunidades Vila Nova, Bom Futuro, Burajuba, Barbolandia, Nova Aliança, Maçarapó, CDI, Nova Canaã, Vila Nova/Itupanema, Tapua, Burajuba, Fazendinha, Águas Verdes, São Felipe, Murucupi, Cupuaçu, Furo do Arrozal, Ilha Trambioca, São Francisco, Arienga Rio, Arienga Estrada, São Sebastião, Caripy e diversas outras de Vila dos Cabanos, situadas no município de Barcarena ou em seu entorno.
Segundo a demandante, tais comunidades são diretamente afetadas pela contaminação resultante de poluição dos recursos hídricos da região onde residem e, por isso, sofrem impactos socioambientais e, especialmente, danos à saúde causados pelas atividades desenvolvidas pelo grupo econômico Norsk Hydro, do qual faz parte a empresa Alunorte. Por isso, afirmam que, na condição de residentes, tanto na zona urbana quanto nas áreas rurais de Barcarena, estariam experimentando os efeitos da contaminação das águas de rios, igarapés e lençóis freáticos que abastecem os seus poços d’água.
Referiu a demandante, enfaticamente, que o objeto deste feito tem origem na contaminação sofrida pelos habitantes dessas comunidades, o que se dá em razão de “despejos clandestinos de resíduos, por meio de um sistema projetado para baratear custos em detrimento da saúde e do meio ambiente a que tem direito”. Asseverou, ainda, que esse tipo de drenagem se espalha por extensa área urbana e rural, atingindo as famílias que moram em diversas comunidades.
Além disso, a autora afirmou que as bacias de rejeitos químicos edificadas pelas rés “funcionam por meio de licenciamentos fraudulentos perpetrados na SEMAS, e assim seguem acobertadas por todos os Secretário de Meio Ambiente que ali, em local impróprio porque incide sobre uma Reserva Ecológica …”.
Destacou, também, que esse tipo de dano ambiental tem sido amplamente noticiado pelos meios de comunicação de massa, os quais referem que a extensão dos danos atinge “centenas de famílias, impossibilitando-as de comer qualquer alimento, bem como de beber a água provenientes daquele lugar, ante a forte contaminação do solo e da água que servem essas famílias, conforme laudos do Laboratório de Química Analítica e Ambiental – LAQUANAM, da UFPA, bem como do Instituto Evandro Chagas – IEC”.
O feito seguiu tramitação regular, com a apresentação das respectivas defesas e a edição de parecer do Ministério Público.
Em sendo determinada a audiência para o saneamento do processo, o ato foi realizado conforme inserido nos ID nº 25764385 e nº 25764385. Em sua parte final, consta que a deliberação sobre as teses preliminares e/ou outros incidentes, seria adicionada ao processo depois das manifestações da autora, do Estado do Pará e do Ministério Público sobre a petição ofertada pelas rés Norsk Hydro Ltda. e Alunorte Alumina do Norte do Brasil S/A (ID nº 25738484).
Diante disso, neste momento processual, convém apurar os contornos do debate posto em juízo e, tendo em vista o seguimento do feito, apreciar alguns dos pedidos preambulares.
1 – Da conexão, continência, litispendência e incompetência
De plano, é relevante pontuar que, consoante a petição de ingresso, a causa de pedir deduzida pela demandante está assentada na alegação segundo a qual subsiste uma relação de causalidade entre as atividades de beneficiamento minerário e/ou refino de alumínio que são desenvolvidas pela ré Alunorte (que é integrante do grupo econômico capitaneado pela Norsk Hydro Brasil Ltda.) e a contaminação que seria experimentada pelos habitantes das comunidades representadas em juízo pela demandante. Mais especificamente, a demandante imputou às empresas a responsabilidade pelo despejo de rejeitos poluentes que teriam afetado os cursos d’água, os lençóis freáticos e os poços de que se valem os habitantes locais, circunstância que engendraria prejuízos à saúde humana, além de danos ao meio ambiente natural.
Dito isso, infere-se que a pretensão autoral não está ancorada apenas na incidência de um, dois ou três episódios nos quais teriam sido constatados transbordamentos nas bacias de rejeitos da Alunorte, em fevereiro de 2018 ou mesmo em datas anteriores ou posteriores. É mais que isso.
Trata-se de estipular se o próprio sistema produtivo desenvolvido pela Alunorte – quando historicamente considerado – atua como o elemento propulsor e/ou causador da contaminação ambiental. O que foi posto em debate, de certa forma, é a própria metodologia industrial empregada, a qual, para a autora, utiliza-se do despejo de resíduos poluentes nos cursos d’água e nos lençóis freáticos, ocasionando, ao longo dos anos, afetações negativas ao meio ambiente e às pessoas.
Nesse contexto, denota-se que inexiste relação jurídica de dependência entre este feito e todos os demais que foram mencionados pelas empresas-rés e pelo Estado do Pará.
Aqui, não se discute as causas e os efeitos de um ou dois episódios que, em tese, teriam sido nocivos ao meio ambiente. Neste feito, de forma clara e explícita, pretende-se aferir se, em função de alguns aspectos atinentes à cadeia produtiva da Alunorte, são despejados (ou foram frequentemente) elementos poluentes nas águas de que se servem as comunidades representadas pela autora, em prejuízo à saúde humana e do meio ambiente, sejam tais despejos regularmente autorizados ou não pelo órgão licenciador, efetuados de forma clandestina ou não.
Uma vez dimensionada essa premissa fático-jurídica, ressoa evidente que o caso presente está bastante descolado dos demais, eis que a demandante representa uma parte do conjunto de sujeitos que, em princípio, seriam diretamente impactados pela suposta conduta lesiva. Não há, pois, como confundir e/ou vincular a pretensão e a causa de pedir da demandante com as demais pretensões e causas de pedir tratadas nos demais processos, ainda que determinados aspectos fáticos, que são subjacentes, permitam algum tipo de correlação, na medida em que todos os casos tratam, de algum modo, de possíveis inconsistências do sistema produtivo da Alunorte.
Demais disso, em relação ao processo em trâmite pela Justiça Federal, não remanesce o mais tênue vínculo jurídico, posto que, aqui, não está em debate qualquer interesse jurídico da União ou de seus entes correlatos, já que é o órgão estadual o responsável pelo licenciamento do empreendimento (art. 109, I, da Carta Federal).
No que se refere ao processamento do feito por este juízo e não pelo juízo de Barcarena, também não há impedimentos. É que, em se tratando de uma causa com potencial de irradiação fática de feição regional – pois nem todas as comunidades referidas pela autora estão circunscritas ao território de Barcarena, nada obrigaria a demandante a desconsiderar a possibilidade de propor a ação no Juízo da Capital. Afinal, aqui não apenas é a sede do Estado do Pará (a quem se atribui responsabilidade por ação e omissão), mas, também, do escritório de representação da ré Norsk Hydro Ltda. neste estado.
Por fim, o fato deste ser um processo dotado de autonomia em relação àqueles que foram mencionados pelos réus, não obstrui a possibilidade de se compartilhar material probatório que, tendo sido produzido nos demais processos, guarde relação com o que está em apuração neste feito. Portanto, motivado pelo raciocínio precedente, afasto as teses de incompetência, conexão, continência e litispendência que foram veiculadas.
2 – Legitimidade Ativa
Nesse ponto, foi alegado que a autora não seria legitimada para representar a defesa dos interesses difusos e coletivos da população supostamente afetada. Assim, apenas a previsão estatutária de defesa ao meio ambiente, feita de forma ampla e geral, não seria suficiente para comprovar a legitimidade adequada da associação para defesa de interesses difusos.
Quanto isso, no entanto, o argumento defensivo não merece guarida. Como é sabido, determinados eventos referentes às questões ambientais tanto poderão causar afetações à sociedade em geral, produzindo, assim, um alcance de feitio difuso e indeterminado, quanto poderão ser experimentados com maior intensidade por determinados segmentos sociais. Incidindo a segunda hipótese, todos aqueles que se dizem direta e materialmente afetados pelo drama ambiental possuem, em tese, direito à reclamar a reparação do dano, independentemente da existência (ou não) da reparação dos danos de natureza difusa.
Neste caso, a autora reclama (na forma de substituição processual) em nome de um conjunto de pessoas, as quais residem em comunidades que, conforme a sua versão, são diretamente impactadas pelas atividades industriais sob a responsabilidade das empresas-rés. Em consequência, os seus pedidos estão conectados às pessoas albergadas pelos laços associativos. Não há, pois, pedidos de caráter amplo, típicos das afetações dos direitos difusos.
Nesse contexto, resta evidente que esta ação possui feição coletiva, no que se refere ao objeto, à causa pedir e às pessoas afetadas. Essa circunstância, entretanto, não obsta que, em caso de procedência, os efeitos da decisão sejam aplicados aos beneficiários que são identificados a partir da condição de associados da autora e de residentes nas áreas supostamente afetadas pelos alegados danos.
Por conseguinte, afasta-se a alegação de ilegitimidade autoral, na medida em que a entidade demandante está regularmente constituída e, salvo prova explícita superveniente em sentido diverso, tem capacidade para postular em nome dos seus associados, especialmente porque se trata de causa subordinada a uma situação fática que é comum a todos, vinculando-os tanto aos dramas relatados quanto aos interesses e direitos reclamados.
3 – Distinção Societária entre Norsk Hydro Ltda. e Alunorte Alumina do Norte do Brasil S/A
No que se refere à distinção societária alegada, trata-se de argumento inconsistente. Afinal, é clara a existência de um grupo econômico, cuja dominância é exercida pela Hydro, empresa de abrangência transnacional cujo empreendimento está substancialmente focado, sem embargos de outras possibilidades, na produção (refino) e fornecimento de alumínio.
Assim, sendo a Alunorte, como uma refinaria de alumínio, uma das indústrias integrantes do conglomerado capitaneado pela Hydro, ressoa clara a relação de dependência daquela em relação a essa. É o que se infere do sítio eletrônico da própria empresa https://www.hydro.com/ptBR/imprensa/visao-geral-da-hydro/).
Em razão disso, não há empecilhos à tentativa de se buscar a responsabilização da empreendedora-mor em paralelo com a da empresa que executa diretamente a atividade industrial, dado que, nesse caso, é latente a solidariedade, configurando-se, em termos práticos, a ideia de poluidor, tal como está inserta no inciso IV, do art. 3º, da Lei Federal nº 6.938/81.
Ademais, nos demais processos referidos pelas empresas-rés, a Hydro faz parte da relação processual, de modo que seria de todo incoerente dar tratamento diverso neste feito, em detrimento do que sucede nas outras demandas. Portanto, quanto a pedido esse pedido, inexistem razões para sua aceitação.
4 – Justiça Gratuita
Nesse aspecto do debate, é importante destacar que, salvo alguma prova material exterior aos autos, não há qualquer evidência fática dando conta que a demandante seja capaz de custear as despesas e os custos do processo. Ao contrário, até este momento a autora ostenta nos autos a condição de uma entidade economicamente desfavorecida, voltada a defender direitos de pessoas que residem em localidades notoriamente pobres do ponto de vista socioeconômico.
Diante disso, não apenas é razoável acatar o seu pedido de gratuidade processual, mas é imperioso, visto que competiria aos insurgentes demonstrar claramente que a demandante possui condições de arcar com os custos inerentes à atividade judicial, o que não aconteceu. Ao pensar de modo contrário, estar-se-ia fechando as portas do Poder Judiciário à parcela significativa da população paraense, remetendo-as ao cenário da indiferença e invisibilidade. Por essa razão, reafirma-se, agora com maior intensidade, o deferimento da gratuidade processual.
5 – Ônus da Prova
Quanto a esse ponto, em princípio, é perfeitamente aplicável ao caso o regramento previsto no §1º do art. 373, do CPC, considerando a peculiaridades da causa e a dificuldade que seria para a demandante, notoriamente hipossuficiente, instituir prova material integral de todas as suas assertivas fáticas.
No entanto, a fim de resguardar a qualidade do debate processual e, tal como mencionado em audiência, sendo permissível efetuar o saneamento do processo de forma gradual, a decisão sobre o pedido de inversão do ônus da prova e, em caso positivo, qual seria o alcance desse encargo, ficará para a audiência em continuação, a qual será realizada no dia 16.12.2021, às 9:30 horas, na modalidade virtual.
Intimar as partes, inclusive para que forneçam tempestivamente os seus endereços de correio eletrônico.
Ciência ao Ministério Público.
Cumprir com urgência.”