Na presença de autoridades de Estado e de Governo, representantes da Comissão de Direitos Humanos cobram soluções para crimes e violações históricas e sistemáticas, que mancham a reputação do estado e do Brasil
Uma delegação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns (Comissão Arns) participou na manhã de ontem, 20, de audiência com autoridades do Pará, no gabinete do procurador geral do Ministério Público do Pará, César Mattar. Na reunião, as autoridades presentes se comprometeram a realizarem, a partir de hoje, reuniões periódicas do Ministério Público do Estado com a recém-criada Secretaria de Direitos Humanos, liderada pelo secretário Jarbas Vasconcelos.
Participaram da audiência Ibrahim Rocha, procurador de Estado de Direitos Humanos, Ana Cláudia Pinho, promotora de Justiça do Ministério Público Estadual, que também esteve com a Comissão Arns nas ações desta semana e, Erika Menezes, chefe de gabinete da Procuradoria-Geral de Justiça.
Os integrantes da Comissão Arns Paulo Vannuchi, ex-ministro dos Direitos Humanos, Belisário dos Santos Jr., ex-secretário da Justiça de São Paulo, Luiz Armando Badin, advogado e ex-secretário de assuntos jurídicos do Ministério da Justiça e a psicóloga Leana Naiman iniciaram a visita ao Pará no sábado (15) e passaram por cinco municípios onde trabalhadores rurais, ribeirinhos e indígenas convivem com ameaças, violências e mortes.
O Pará soma uma série de casos graves de violência no campo, como a chacina de Eldorado dos Carajás, o assassinato de defensora do meio ambiente e dos direitos humanos, a líder religiosa Dorothy Stang, a escalada da tensão na terra indígena Parakanã e muitos outros casos emblemáticos.
Na quarta-feira (19), a Comissão Arns esteve com representantes do Ministério Público Federal (MPF) e do Ministério Público Estadual em Altamira, além de fazer uma escuta de relatos do Conselho Ribeirinho. Em seguida, já em Belém, a delegação esteve na sede do SDDH (Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos) para receber relatos de comunidades tradicionais ameaçadas, além de conversar com defensores dos direitos humanos que estão no programa de proteção estadual.
Relatório sai em 30 dias
A delegação da Comissão Arns que realizou a visita pelo Pará nesta semana tem grande expectativa do que será realizado após a reunião com as autoridades do estado. “Ouvimos muitos relatos pungentes durante as visitas aos cinco municípios, vimos pessoas protegidas pelo programa de proteção aos defensores e muitas mulheres nos relataram diversas situações preocupantes”, declarou o advogado Belisário dos Santos Jr, ex-secretário de Justiça de São Paulo..
Segundo Belisário, o que mais chamou a atenção dele foi o fato de as mulheres falarem mais que os homens. “Elas trazem as crianças para vermos as condições em que se encontram”, resumiu o advogado. A partir das informações coletadas em campo e dos relatos de vítimas, familiares e lideranças locais, a Comissão Arns concluirá um relatório em 30 dias, que será entregue a autoridades estaduais e federais.
O relatório da Comissão trará informações e observações sobre o que os integrantes da Comissão Arns constataram nos municípios onde estiveram. Veja, abaixo, alguns casos:
Terra Indígena Parakanã – casos de violência sem resposta e ameaça iminente
Na última segunda-feira, 17, a delegação da Comissão Arns esteve com representantes do povo indígena Parakanã. As 28 aldeias estão localizadas entre os municípios de Novo Repartimento e Itupiranga e somam mais de 1.500 habitantes. No ano passado, três jovens não indígenas foram encontrados mortos dentro do território e, desde então, moradores de Novo
Repartimento, município onde os rapazes moravam, vem acusando e hostilizando os indígenas, com ameaças de morte e até violência física.
No próximo dia 24 de abril, data que marca um ano do crime, está sendo organizada uma manifestação de familiares das vítimas que foram encontradas mortas. Eles pretendem bloquear a Rodovia Transamazônica. O povo Parakanã está apreensivo com a possibilidade de ataques violentos contra eles em razão do protesto.
Viagem e escutas começaram em Marabá
As visitas ao Pará começaram no município de Marabá, onde o grupo da Comissão Arns ouviu relatos feitos pelas comunidades do sul e sudeste do Estado, no Centro de Formação Cabanagem, que acolhe vítimas de trabalho análogo à escravidão no estado.
Segundo o advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Batista, o Pará é líder no Brasil de assassinatos, chacinas e trabalho degradante em fazendas no Brasil. Outros casos verificados em Marabá foram de chacina, assassinato de lideranças e ameaças a advogado de acampamento de trabalhadores rurais que ocuparam área grilada por fazendeiros de Pau D’Arco.
Matanças e impunidade em São Félix
Em São Félix do Xingu, pistoleiros amedrontam comunidade e município também é marcado pelo assassinato de Zé do Lago e sua família, em 2022. A Comunidade Divino Pai Eterno está tomada por pistoleiros. De 2011 a 2016, seis trabalhadores rurais foram assassinados. Em 2021, fazendeiro da região fez novas ameaças e foi proibido de voltar à área, por medida cautelar.
Em 2022, uma pessoa foi assassinada no domingo de Páscoa. Apesar de inquérito aberto, ninguém foi preso. Com mais de 60 assassinatos no campo em 40 anos, segundo dados da CPT, o município ganhou uma infeliz reputação de impunidade e terra sem lei.
Terror em Itupiranga
Representantes da comunidade ribeirinha Diamante, no município de Itupiranga, no sudeste paraense, relataram uma série de atentados que sofrem desde 2015, quando pistoleiros invadiram o acampamento onde vivem 172 famílias. Em 2018, as vítimas tiveram as casas queimadas e, em janeiro de 2019, pistoleiros da região invadiram o acampamento com trator para derrubar os sisais dos moradores.
Há um processo judicial contra os trabalhadores rurais para que desocupem a área, mas a reintegração de posse está suspensa. As famílias, no entanto, vivem sob constante ameaça, por isso há rondas policiais na região pelo programa de proteção a defensores de direitos humanos.
Eldorado, Canaã e Rondon do Pará
A delegação da Comissão Arns também conversou com moradores e lideranças dos acampamentos Hugo Chávez, em Marabá, Dalcídio Jurandir, em Eldorado do Carajás e Eduardo Galeano, em município de Canaã do Carajás, todos do Movimento Sem Terra (MST). O acampamento Eduardo Galeano existe há sete anos e fica em área pública da União, em uma região rica em minério. Cerca de 110 famílias de trabalhadores rurais convivem com atividades ilegais de garimpo de ouro e cobre e são frequentemente ameaçados de morte. O garimpo ilegal atua na região com escolta de segurança armada, inclusive com fuzis, segundo relato das vítimas.
No Acampamento Raio de Luz, na Fazenda Água Branca, em Rondon do Pará, os membros da Comissão Arns ouviram relatos sobre o assassinato do sindicalista José Dutra da Costa, Dézinho, morto em 2000. Ele foi ameaçado durante oito anos. O pistoleiro que executou o crime foi condenado, mas está foragido. Quanto aos dois fazendeiros acusados de serem mandantes, um foi absolvido por falta de provas e outro foi condenado, mas continua solto. A viúva da vítima também sofre ameaças e seu caso foi denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que concedeu a ela o direito de escolta da polícia militar durante 24 horas por dia.
No Acampamento Águas Boas, em Portel, 30 famílias são constantemente amedrontadas por pessoas armadas. No ano passado, o local foi invadido: os criminosos mataram os cachorros e queimaram barracos, motos e quadriciclos. Uma pessoa morreu e o caso teve repercussão nacional, mas sem efeitos para a comunidade local, que continua a conviver com o medo.
27 anos da chacina de Eldorado dos Carajás
Na segunda-feira, dia 17, a Comissão Arns participou de um ato no Acampamento Pedagógico da Juventude Oziel Alves, em Eldorado do Carajás, para homenagear os 21 trabalhadores rurais que foram assassinados por policiais militares na região, em 1996. Organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), a homenagem marca os 27 anos do crime, que ainda não foi completamente solucionado.
A manifestação aconteceu na Curva do S, local onde ocorreu o massacre, e recebeu integrantes do MST, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e de outros movimentos e organizações da sociedade civil.No local, a delegação da Comissão Arns conheceu o Memorial do Massacre dos Sem Terras, onde há uma cruz de madeira que simboliza o crime e uma placa com os nomes de todos os mortos. Em seguida, visitou a Casa da Memória do Massacre de Eldorado do Carajás, espaço idealizado pelo padre Luigi Muraro.
Anteriormente, o imóvel era a casa de uma senhora que abrigou crianças no dia do massacre para que não fossem atingidas pelos policiais. O local conta com documentos e fotos deste e de outros casos do sul e do sudeste do Pará, como a chacina de Pau D’Arco e a morte do sindicalista José Dutra da Costa, o Dezinho.
Assassinato de Dorothy Stang não cessou violência em Anapu
Na terça-feira, dia 18, a delegação da Comissão Arns conheceu o assentamento Irmã Dorothy Stang, no município de Anapu, em homenagem à missionária norte-americana referência na luta por justiça no campo, assassinada em 2005 por pistoleiros a mando de fazendeiros. A repercussão internacional do crime não cessou a violência na região: segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), apenas entre 2015 e 2019, 19 pessoas foram assassinadas em Anapu devido à disputa agrária.
No ano passado, mais violência: agressores queimaram duas casas e uma escola, e uma liderança local se viu obrigada a deixar o assentamento com medo de que seus filhos fossem mortos. O clima de tensão é agravado por um fazendeiro da região que alega ser proprietário da área do assentamento, argumentando que os lotes teriam sido comprados de um terceiro sem que ele soubesse do histórico de grilagem.
A disputa agrária leva a um terceiro problema, que impede a comunidade de ter fornecimento de energia elétrica. De acordo com relatório da CPT, mesmo antes de ser reconhecido pelo Incra, o assentamento foi incluído, em 2016, no programa federal
Luz para Todos. O trabalho de instalação pela empresa de energia caminhou a passos lentos e, em 2020, quando as instalações estavam quase concluídas, o fazendeiro local entrou com uma ação de reintegração de posse na Justiça, que paralisou todo o processo.
Em 2022, a distribuidora de energia Equatorial Pará, responsável por garantir fornecimento para o município de Anapu, promoveu uma ação ostensiva no assentamento, narrado em relatório da CPT: “Na manhã do dia 29 de novembro, cerca de 14 viaturas da Polícia Militar entraram na área onde o Incra pretende assentar as referidas famílias, junto com um oficial de Justiça da Vara única de Anapu, uma viatura do corpo de bombeiros, uma caminhonete Triton, da empresa PDRSX, dez caminhões Munck, quatro caminhonetes da Equatorial, duas carretas e uma caminhonete do Poder Judiciário de Anapu.
O oficial declarou que a ação tinha como justificativa o cumprimento de uma decisão judicial, a qual determinava a retirada de toda a rede elétrica do assentamento. Nenhum documento foi oficialmente entregue às famílias e a energia foi desligada. A comunidade não estava ciente do processo, nem da ação e muito menos foi ouvida.”
Atualmente, as casas do assentamento não têm energia elétrica – isso em um país, que segundo o IBGE, tem quase cobertura universal de energia para a população.