É uma decisão histórica. A Justiça paulista – leia-se 18ª Vara Cível de São Paulo – decidiu nesta quinta-feira, 13, que a Apple vai ter de entregar um carregador para quem comprou algum modelo de iPhone que vem sem o acessório no Brasil. A sentença também condenou e estabeleceu uma multa de R$ 100 milhões à gigante de tecnologia — valor que será destinado a um fundo voltado à proteção dos direitos dos consumidores.
A ação foi movida pela Associação Brasileira dos Mutuários, Consumidores e Contribuintes (ABMCC). A Apple será obrigada a entregar adaptadores de energia do tipo USB-C com voltagem de 20W, 35W, 67W, 96W ou 140W a todos os consumidores brasileiros lesados.
Os donos do iPhone terão que fazer a apresentação física do aparelho ou respectiva nota fiscal, o que for mais fácil ao consumidor que tenha adquirido produtos após 13 de outubro de 2020. Cabe recurso da decisão e a Apple afirmou que irá, sim, recorrer da sentença.
Em setembro, o Ministério da Justiça já tinha aplicado multa de R$ 12,2 milhões pelo mesmo motivo e suspendido vendas nesse modelo. O TJ-SP, a partir da sentença, determinou que “somente efetue a venda de seus aparelhos telefônicos, em todos os modelos comercializados por ela em território nacional, desde que com a concessão dos respectivos adaptadores de energia, aos seus novos clientes”.
Na decisão, o juiz Caramuru Afonso Francisco afirma: “é evidente que, sob a justificativa de uma ‘iniciativa verde’, impõe a requerida ao consumidor a necessária aquisição de adaptadores que antes eram fornecidos juntamente com o produto”.
Para o juiz, a empresa “age de má-fé ao usar a defesa do meio ambiente para justificar a venda sem os carregadores e faz uma venda casada às avessas”. “Tem-se, portanto, nítida prática abusiva, pois há o condicionamento da aquisição de um produto para que se possa ter o funcionamento de outro, o que não é permitido pelo artigo 39, inciso 1 do Código de Defesa do Consumidor”, enfatiza o magistrado.
ÍNTEGRA DA DECISÃO
Processo nº: 1078527-71.2022.8.26.0100
Classe – Assunto Ação Civil Pública – Práticas Abusivas
Requerente: Associação Brasileira dos Mutuários, Consumidores e Contribuintes – Abmcc
Requerido: Apple Computer Brasil Ltda
Juiz de Direito: Dr. Caramuru Afonso Francisco
“Vistos, examinados e ponderados.
Trata-se de ação civil pública proposta por ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS MUTUÁRIO, CONSUMIDORES E CONTRIBUINTES em face de APPLE COMPUTER BRASIL LTDA em que se pretende a condenação da requerida a obrigação de restituir os valores indevidamente despendidos por
consumidores coagidos a adquirir carregadores para os modelos de iPhone 11 e seguintes após 13/10/2020 ou, alternativamente, a condenação da requerida a entregar os adaptadores de energia USB-C cuja voltagem (20W, 35W, 67W, 96W, 140W) garanta o desempenho e velocidade de recarga prometidos para cada aparelho, de modo que tal obrigação seja feita individualmente, por CPF ou CNPJ, mediante apresentação física do aparelho ou respectiva nota fiscal, o que for mais fácil ao consumidor e a seu critério e a condenação da requerida na obrigação de fazer, qual seja, que a partir de agora somente efetue a venda de seus aparelhos telefônicos, em todos os modelos comercializados por ela em território nacional, desde que com a concessão dos respectivos adaptadores de energia, aos seus novos clientes e a condenação da requerida na obrigação de pagar quantia certa, a título
de indenização por danos sociais, no valor de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais).
Alega a autora que a requerida, em 13/10/2020, em evento de lançamento de quatro novos modelos de iPhone 12, a empresa noticiou não apenas a inclusão de novas tecnologias, mas também a remoção delas e que, por isso, não seriam mais enviados adaptadores de carregador de energia na compra dos telefones recém-adquiridos, o que também valeria para novos modelos quantos para os que permaneciam no portfólio da empresa.
Assim, em disfarçada iniciativa “verde”, a empresa justificou a retirada de elemento essencial para o funcionamento do produto, fazendo com que se tivesse uma venda casada às avessas, o que é prática abusiva a ser reprimida, tanto que órgãos administrativos de defesa do consumidor sancionaram a prática, tendo havido pedido de tutela de urgência (fls.1/42).
O pedido de tutela de urgência foi indeferido (fls.73), decisão contra a qual se interpôs agravo de instrumento (fls.85/86). A requerida apresentou contestação (fls.110/197), alegando ilegitimidade ativa “ad causam”, litispendência, impugnou o valor da causa e, no mérito, haver decisão que reconhece a legalidade da prática da Apple, a inexistência de prejuízo ao consumidor com a venda separada dos adaptadores de tomada, o cumprimento de dever da informação ao consumidor, a inexistência de venda casada, requerendo a improcedência do pedido.
Em réplica (fls.637~/73), a autora rechaçou as preliminares e reiterou suas razões. O Ministério Público rechaçou as preliminares e opinou pela
procedência do pedido (fls.746/52).
É o relatório.
D E C I D O.
Os fatos são incontroversos, havendo alegações que se provam documentalmente, prova cujo momento procedimental já foi superado, a permitir-se, pois, o imediato julgamento da lide. A preliminar de ilegitimidade ativa “ad causam” é de ser afastada.
A autora tem mais de um ano de constituição, em seu objeto se encontra a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos de
consumidores, que é o caso da presente demanda, havendo, assim, pertinência temática, agindo como substituta processual e não como representante de seus associados, satisfazendo, assim, todo os requisitos legais.
Afasto, pois, tal preliminar.
A preliminar de litispendência é de ser igualmente repelida, pois as ações civis públicas trazidas à colação pela requerida, temos distinção de “causae petendi”, porquanto aqui se está a questionar a prática comercial de venda dos aparelhos celulares sem o seu respectivo adaptador, na mudança abrupta de fios, ao passo que as outras duas demandas se baseiam única e exclusivamente na retirada da venda do adaptador de tomada.
A litispendência exige a identidade de demandas e tal identidade não se verifica. Afasto, pois, tal preliminar.
A impugnação ao valor da causa é de ser afastada, pois corresponde ela ao benefício econômico pretendido e o valor há de ser fixada tendo por base a pretensão.
Assim, se a autora entende que o valor dos danos sociais é o que apresentou, e não o faz aleatoriamente mas com fundamentação, é este o valor da
causa. Indefiro, pois, a impugnação, mantendo o valor.
No mérito, invoca, por primeiro, o julgamento pela improcedência em ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina como obstáculo à análise desta pretensão. Ora, além de não ter havido trânsito em julgado, já se disse que não há identidade entre as demandas, de modo que não há obstáculo algum ao julgamento da presente causa por conta daquela decisão.
Como bem afirmou o Parquet em seu parecer: “…verifica-se ser necessário que os carregadores de aparelhos celulares antigos sejam compatíveis
com celulares de modelos novos para permitir que o consumidor use o carregador antigo, isto é, não seja obrigado a comprar o adaptador para carregar a bateria do celular.
Oferecer um novo carregador em separado para o consumidor, além de ser oneroso contraria a tese de consumo ambientalmente sustentável…” fls.750). É evidente que, sob a justificativa de uma “iniciativa verde”, impõe a requerida ao consumidor a necessária aquisição de adaptadores que antes eram fornecidos juntamente com o produto.
Inexiste a “alternativa” preconizada pela requerida em sua resposta, pois a alternativa é, ou comprar o adaptador, já que ele não é mais fornecido, ou, simplesmente, não mais utilizar o aparelho a contento, máxime os modelos antigos. Tem-se caso evidente de venda casada, ainda que às avessas,
pois não se vende o produto mediante a aquisição do outro, mas, o que, na prática é o mesmo, somente se pode utilizar o produto se se adquirir o outro.
Tem-se, portanto, nítida prática abusiva, pois há o condicionamento da aquisição de um produto para que se possa ter o funcionamento de outro, o que não é permitido pelo artigo 39, inciso I do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, ao se invocar a defesa do meio-ambiente para tal medida, demonstra a requerida evidente má-fé, a ensejar quase que uma propaganda enganosa, o que se revela, também, uma prática abusiva, visto que até
incentiva e estimula o consumidor a concordar com a lesão de que está a sofrer com a cessação do fornecimento dos carregadores e adaptadores, o que deve ser coibido já que, nas relações contratuais, em especial as de consumo, deve prevalecer o princípio da boa-fé e da probidade.
Ademais, como bem se demonstra nos autos, a requerida insiste em manter esta deletéria atitude em relação aos consumidores, atitude que já foi
devidamente apenada pelos órgãos administrativos de defesa do consumidor, a demonstrar efetivamente como a prática é contrária à legislação consumerista, com ênfase a própria decisão da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor trazida pelo Parquet às fls.754/5.
Assim, não há como deixar de reconhecer a procedência da pretensão deduzida em juízo pelo substituto processual. Dentro dos princípios vigentes no direito do consumidor, tem-se que o pedido alternativo seja o que melhor corresponda à reparação dos danos sofridos, pois permite individualmente que cada consumidor seja devidamente reparado, sem maiores transtornos e delongas.
Quanto aos danos sociais, são eles presentes, já que a requerida, consciente e dolosamente, procurou criar esta circunstância, sob a justificativa da
“iniciativa verde”, para lesar seus consumidores, sendo que o valor apresentado pela autora se encontra devidamente justificado e vinculado ao próprio proveito econômico experimentado pela requerida que, como é fato público e notório, controla boa parte deste segmento da economia que é dos mais rentáveis do planeta.
Pelo exposto, julgo PROCEDENTE o pedido e CONDENO a requerida a entregar os adaptadores de energia USB-C cuja voltagem (20W, 35W, 67W, 96W, 140W) garanta o desempenho e velocidade de recarga prometidos para cada aparelho, de modo que tal obrigação seja feita individualmente, por CPF ou CNPJ, mediante apresentação física do aparelho ou respectiva nota fiscal, o que for mais fácil ao consumidor, que tenha adquirido produtos após 13/10/2020, e a seu critério. CONDENO, também, a requerida na obrigação de fazer, qual seja, que, a partir do trânsito em julgado da sentença, somente efetue a venda de seus aparelhos telefônicos, em todos os modelos comercializados por ela em território nacional, desde que com a concessão dos respectivos adaptadores de energia, aos seus novos clientes. CONDENO, por fim, a requerida na obrigação de pagar quantia certa, a título de indenização por danos sociais, no valor de R$ 100.000.000,00 (cem milhões de reais), em valores da data do ajuizamento da ação, com juros de mora de 1% (um por cento) ao mês, capitalizados anualmente, a partir de 13/10/2020 (data do evento danoso), com atualização monetária pela
Tabela Prática do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
CONDENO a requerida no pagamento do custo do processo e honorários de advogado que arbitro em dez por cento do valor da causa. P.I.
São Paulo, 13 de outubro de 2022. Caramuru Afonso Francisco.”