Linda era pediatra, psicóloga e doutora em filosofia. Aos 60 anos, um ano mais jovem do que Apolo Brito, aparentava 10 anos a menos. Casara-se com um empresário de Maracanã, cidade da costa paraense, dono de um pequeno estaleiro, três traineiras e um iate. Ela estava grávida quando, em um só dia, durante uma tempestade ao largo de Marajó, perdeu seu homem e abortou. Não quis mais saber de outro companheiro e passou a se dedicar inteiramente ao Lar do Pequeno Príncipe, que ela e o então vereador Fonteles criaram e mantinham com recursos da família dele, velha amiga dos Brito.
Dona Iracema tinha a mesma idade de Linda e foram criadas juntas. Deu à luz Esmeralda na mesma época em que Linda abortou. Assim, Esmeralda foi criada por duas mães e um pai, Apolo Brito, pois seu pai legítimo, um português, morreu de infecção intestinal de tanto comer restos de frutas, presunto e queijo, a fim de economizar. Iracema era uma negra alta, esguia, de grandes olhos doces. O português Antônio Nobre de Almeida era o padeiro-chefe da padaria e confeitaria do velho Apolo Brito. Iracema fora seduzida pelo padeiro, que morreu da infecção intestinal poucos dias depois. Esmeralda Silvestre de Almeida Brito tinha, agora, 30 anos. Apolo se instalara, com Esmeralda, na casa que pertencera a seus pais e onde Linda e Iracema moravam. O casarão, na Travessa 3 de Maio, em São Brás, era amplo, de dois andares, com imenso terreno arborizado. Uma mangueira majestosa, na frente, protegia do sol da tarde a casa.
A sensação de absurdo, de quando passamos muito tempo sem ver uma pessoa que amamos, ou a casa de nossos pais, ou uma cidade que de repente surge diante de nós como se estivéssemos sonhando, tomou conta de Apolo Brito. “É verdadeiro” – disse, para si mesmo. O Kalamazoo – bolsão de luz e merengue –, na Rua Gaspar Viana, bairro do Reduto, era bem o local para despertar. Estava lotado e continuava tão bom como sempre fora. Apolo Brito se encostou ao balcão, como fazia antigamente, degustando Cerpinha e observando os casais dançando. Uma orquestra interpretava La Mecha, de Luis Kalaff. Os casais dançando lembravam um set de filmagem.
– Apolo Brito? Venho da parte do Gilberto. Venha comigo – disse-lhe alguém que acabara de chegar. Apolo Brito telefonou para Gilberto. “Ele vai te levar ao Batista Campos” – disse-lhe Gilberto.
Saíram do Kalamazoo, e o homem se dirigiu para uma caminhonete negra no estacionamento e abriu a porta do banco de trás para Apolo Brito entrar. O carro era espaçoso e refrigerado. O homem se sentara ao seu lado. Era pequeno. Lembrava um esquilo de bigode como o de Clark Gable. – Vamos! – ordenou ao motorista, um sujeito cabeludo, que não se virou um só momento para trás. A Doca de Souza Franco estava agitadíssima. Cruzaram-na e em pouco tempo desceram a rampa do estacionamento de imponente prédio no Humarizal. Tomaram um elevador e saíram num hall exclusivo. Esquilo conduziu Apolo Brito até uma sala.
– Aguarde aqui. Há café na mesinha – disse e saiu.
Apolo Brito se serviu de café. Incrível como o requinte era o mesmo do seu escritório, em Brasília, e o café era também Três Corações, gourmet. A sala não tinha janela, mas a temperatura dentro dela estava agradável. O homúnculo reapareceu e o conduziu a um salão, iluminado pela fraca luz de um abajur. No fundo da sala havia uma grande escrivaninha e, atrás dela, estava Batista Campos.
– Sente-se, Apolo Brito – disse, meneando levemente a mão direita. Sou o líder supremo da Confraria Cabanagem – fez uma pausa. – A elite belenense continua escravizando os caboclos. Nossa missão é alterar o rumo da história do Pará, e isso só poderá ser feito, neste momento da História, por um homem, o senador Fonteles – fez nova pausa. – O senador Fonteles não sabe da nossa existência. Seja como for, o senador Fonteles deve, se for eleito governador, tomar posse, e governar. Garantir isso é nossa missão – disse o homem, na penumbra.
– E se ele não vencer? – Apolo Brito perguntou.
– Se ele não vencer, continuará sendo senador, presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, e, principalmente, continuará vivo. Nossa preocupação é, primordialmente, com a vida do senador; ela deve ser mantida, custe o que custar. Para isso, precisamos abortar um plano, urdido para ser perfeito, de eliminar o senador Fonteles. É fatal que descubramos como o senador Fonteles deveria ser morto. Só assim eliminaremos o mal pela raiz – disse o homem, na penumbra, escolhendo, visivelmente, com propriedade, as palavras, e as pronunciando, em meio a pausas dramáticas, com voz rica, e irrepreensível sotaque da elite belenense.
– Não se trata de paranoia? – Apolo Brito questionou.
O homem se mexeu na poltrona.
– Não – disse. – Depois que Dashiell Hammett entreouviu Jarbas Barata conversando com o Arigó Italiano, eles foram grampeados, totalmente grampeados. Tomei providências, e Jarbas Barata, bem como o Arigó Italiano, passaram a ser vigiados mais de perto do que jamais suspeitaram; suas vidas e seus comportamentos são observados 24 horas por dia. Não desprezamos qualquer indício, qualquer detalhe. Uma palavra ali, outra acolá, encontros aparentemente fortuitos, tornaram evidente que há um complô para matar o senador Fonteles. E há indícios, também, de algo… estarrecedor.
– Ainda não percebi nenhuma evidência de que ele seria morto – disse Apolo Brito, achando retóricas as palavras de Alexandre Cunha Silva e Silva.
– Cabe a ti matar a charada. Concordo que pode ser apenas intuição… o que já é algo que devemos levar em conta, considerando o que está em jogo. Por isso é que precisamos da certeza, digamos, científica, de que nada de mal, nem um resfriado, acontecerá ao senador Fonteles. Tu foste convocado devido a tuas qualidades especiais: intuição, profissionalismo, discernimento, discrição, conhecimento da história do Pará e patriotismo.
– O que foi descoberto de tão estarrecedor? – perguntou Apolo Brito.
– Ainda não temos certeza. Jarbas Barata comandaria o tráfico de cocaína no Pará. Os volumes são grandes, muito grandes, e desconfiamos que a cocaína provenha de um verdadeiro parque industrial, instalado aqui no Pará. – Fez-se silêncio. Não se ouvia nada na sala. Nem som de ar refrigerado. Aquele prédio deveria ter uma central de ar condicionado nova e bastante moderna. – Jarbas Barata está se cercando de cuidados excessivos – disse o homem, na penumbra, mexendo-se novamente na poltrona e meneando a mão direita. – Jarbas Barata é, também, intuitivo. A intuição, aliás, é algo muito forte nos ditadores; creio, mesmo, que a intuição é o principal instrumento que garante o verdadeiro poder aos ditadores; contudo, a intuição não nos permite ver tudo claramente, mas apenas uma parte, como nesta sala mal iluminada. A intuição é, digamos, a informação que nos chega por uma antena especial, que poucas pessoas possuem. É a partir dessa informação, dessa intuição, que a coisa começa. Aí, entra o trabalho propriamente dito de lapidar a intuição. As descobertas significam somente um por cento de intuição e 99 por cento de transpiração; acredito nisso – disse o homem. A bela cabeleira branca lembrava a juba de um leão.
“Ele sabe argumentar” – pensou Apolo Brito.
– De qualquer modo, é muito dinheiro para fazer essa investigação – disse.
– De qualquer modo, esse dinheiro só terá valor se tu entenderes plenamente do que se trata.
“Ele é engraçadinho” – pensou Apolo Brito.
– Mas já estou investigando – disse o detetive.
– Tu desconfias de alguém, alguém com perfil para matar o senador Fonteles? – disse o homem, na penumbra.
– Só uma pessoa se aproxima desse perfil: Eleonora.
– Eleonora já foi exaustivamente investigada, grampeada, vigiada, bem como sua família, seus amigos e subordinados; não encontramos nada. Daí a razão que me levou a chamá-lo. Tu vês onde ninguém vê.
Apolo Brito pensou um pouco.
– Intuição! – disse.
– A velha e boa intuição – disse o homem, na penumbra, e Apolo Brito sentiu súbita simpatia por ele.
Batista Campos se levantou e estendeu a mão para Apolo Brito. Depois, Esquilo entrou na sala e conduziu-o para a porta, de onde o detetive se voltou para o homem na penumbra. “Dramático” – pensou. “Esse tipo deve ser ator, mas a peça é real.”
O Kalamazoo continuava feérico, noite adentro. José Maria Trindade, o dono, velho amigo de Apolo Brito, reativara a antiga mesa do policial aposentado. Tratava-se de um ponto estratégico, de onde se tinha uma visão geral do salão sem se ser visto. “O suposto carrasco do senador Fonteles também é invisível. Ou irreal” – pensou, e pensou em Juliane. Lembrou-se que havia um pátio interno na casa do senador Fonteles, que dava para um jardim prenhe de rosas vermelhas, jasmineiros floridos, orquídeas, tajás, samambaias e uma profusão de flores.
Lembrou-se, na sua prodigiosa memória, das medidas de Juliane. Apolo Brito tinha o dom de saber, matematicamente, as medidas das pessoas: ela pesaria 55 quilos em 1,65 metro de altura. “Seus olhos continuarão verdes escuros, úmidos, saturados de clorofila?” Juliane lembrava-lhe um arbusto, confiante, rindo, de dentro de sua incauta juventude. Seus cabelos eram um ninho de parasitas, enraizados sobre o crânio oval, encaracolando-se, avermelhados, sobre seus estreitos ombros e tapando, às vezes, com sua claridade ruiva, os olhos de clorofila, até que, semelhante a uma potra, meneava a cabeça e expulsava a crina, o caos dos cabelos alcançando-lhe as costas, descendo até a cintura, tão estreita, em contraste com as nádegas, redondas, misteriosas na contextura de cútis de pétala e mel.
A família do senador Fonteles vinha de uma linhagem de colonizadores que se perdia na Península Ibérica. Sua primeira esposa fora uma marajoara, filha de um fazendeiro holandês com uma crioula da Guiana Francesa, que encantou, com seu porte de potranca renascentista e voz de pintassilgo, as plateias do Teatro da Paz. Marina Monarcha, que é como se chamava, morreu ao dar à luz Juliane, que herdara do avô os olhos de clorofila e, da mãe, o porte de modelo renascentista negra, a nuança de mel da pele ebânea, acetinada, sem mácula, e os lábios de rosa colombiana; de ambos seus pais herdou longas mechas de cabelos encaracolados, com nuanças entre o negro e o vermelho, jorrando como ervas daninhas do alto de estreita testa, descendo até a cintura.
Ela teria 21 anos, dois anos antes do acidente, quando houve um flerte entre eles, que começou numa visita ao Lar do Pequeno Príncipe. Apolo Brito fora lá, naquela manhã, não se lembrava para fazer o quê, mas havia uma solenidade, com a presença do então vereador Fonteles. “De vereador, ele foi eleito senador com a maior votação jamais imaginada no estado” – pensou Apolo Brito. Juliane estava ao lado do pai; trajava um vestido de seda amarela, estampado com rosas colombianas, em pinceladas expressionistas. Apolo Brito ficara hipnotizado.
Sempre que a via era como se fosse a primeira vez, e a via sob aquele ângulo onírico, quando, às vezes, estamos em um grande aeroporto, de madrugada, e somos despertados por uma mulher que nos parece a mais bela do mundo. Tentamos vê-la direito, mas ela acabara de ultrapassar uma porta inacessível a nós, e só nos resta vê-la através da parede de vidro. Ajustamos o rosto à vidraça e os olhos nela e só distinguimos seu trote, com a percepção de uma nitidez desconcertante de que perdemos alguma coisa, algo que nunca foi nosso e que nunca teremos – o detetive delirava, enquanto aguardava Juliane.
Uma aragem varreu o jardim. Folhas secas assentavam-se, docemente, sobre a relva. Uma folha caiu sobre os cabelos sempre assanhados e negros de Apolo Brito. Juliane estendeu a mão para tirar a folha. Apolo Brito pegou a mão de Juliane, aspirou o perfume, os olhos fechados. Ainda era a mesma Juliane de outrora; balzaquiana, lembrava mais do que nunca uma modelo renascentista. Abraçaram-se. Apolo Brito aspirou Chanel número 5. Sentaram-se à mesa. Olharam-se longamente, naquele silêncio rico em comunicações. Haviam conversado ao telefone e escolheram aquele local, onde se vê e não se é visto, para conversar.
– Eleonora é uma mulher extraordinária. Uma das empresárias e executivas amazônidas mais competentes, especialista no mercado de minerais, geóloga, poliglota, e ama meu pai – disse Juliane. – A suposição de que pudesse fazer algum mal a papai está definitivamente descartada, porque quando Eleonora conheceu papai ela já era rica, pois, como tu sabes, ela herdou uma mineradora.
– Atolada em dívidas – disse Apolo Brito.
– Concordo. Meu pai teve que socorrê-la – volveu Juliane. – Mais um motivo para ela não agir como um escorpião.
– Mas pode agir como uma rã – disse Apolo Brito.
– Quê?
– Quis dizer muiraquitã… ela é encantadora como um muiraquitã, pelo visto. Ela viaja muito para a Colômbia? – disse o detetive.
– Colômbia? Não! O que ela iria fazer na Colômbia? – disse Juliane, se impacientando.
– Digo, alto Paru de Este – Apolo Brito corrigiu.
Juliane pensou um pouco.
– Para as terras do meu bisavô? – perguntou. – Não! Na verdade, ela se interessa por aquelas terras porque meu pai vai transformá-las numa reserva ecológica.
– Ouvi dizer que há uma fabulosa província mineral, ali, e que haveria tanto ouro que rebaixaria Serra Pelada, no auge da sua produção, a uma ninharia.
– É boato. O eldorado das fantasias dos espanhóis e portugueses na Amazônia. A Amazônia tem uma riqueza fantástica em pedras e minerais preciosos, mas o que guarda de mais precioso, na verdade, é a riqueza biológica inestimável – disse Juliane. – E depois, acho que essa tese de que papai pode ser assassinado para não assumir o governo do Pará é paranoica; não vejo como eliminar uma pessoa nessas circunstâncias impunemente – disse Juliane.
– Tens razão – respondeu o detetive. – Mas há muito dinheiro em jogo. Descobri que a Icomisa é a fachada de um outro negócio, que envolve madeira, biotecnologia e também água.
– Água?
– Sim, água. Há, em terras ao norte do Pará, água mineral cristalina, além da água do próprio rio Amazonas. A dessalinização da água do mar é duas vezes mais cara do que tirar a turbidez da água do rio Amazonas, água que, por exemplo, no Oriente Médio, vale mais do que petróleo. A madeira seria contrabandeada numa escala que deixaria longe os portugueses, mesmo considerando 400 anos de envio regular de toras para Portugal e a Europa toda. Quanto à biotecnologia, somente a região do rio Paru, uma fração do continente amazônico, guarda incalculável tesouro em matéria-prima. Isso, sem falar em ouro. Haveria mais ouro, ali, do que o lastro do dólar americano – disse Apolo Brito.
Juliane olhou Apolo Brito nos olhos.
– Tudo isso é inacreditável – disse, com certa impaciência.
– Obtive dados confidenciais, um levantamento informal, secreto, na comunidade de informação, que, após análise contextual, levou-me a essa conclusão – disse Apolo Brito.
– Queres dizer que a Eleonora pode estar fazendo jogo duplo? – Juliane perguntou.
– Estaria escalada para eliminar o senador Fonteles. Simples assim – disse Apolo Brito, falando com firmeza, ante a surpresa de Juliane com a afirmação convicta de Apolo Brito. – O Pará é um estado sem lei, ou melhor, vige, aqui, a lei do mais forte. É, talvez, a unidade da federação onde o patrimonialismo foi mais longe, provavelmente atrás somente do Maranhão. No Pará, as coisas continuam como eram no auge do colonialismo português. A elite nunca largou o osso, exceto durante a Cabanagem, quando, a primeira, e única vez no Brasil, gente pobre chegou ao poder, não como marionete para representar a banda podre que sempre pilhou o país, a canalha política, empreiteiros, banqueiros, empresários, que fazem de suas empresas balcão de negócios. Não, na Cabanagem o povo chegou ao poder para se livrar do jugo imperialista, colonialista, então imposto por Lisboa, ou pelo Rio de Janeiro, e, agora, por Brasília – disse Apolo Brito, sentindo que estava falando mecanicamente.
A orquestra atacou Cada Tierra Com Su Ritmo, de Luiz Kalaff. Apolo Brito mergulhou nos olhos verdes escuros, prenhes de clorofila, da mulher. Pareciam duas esmeraldas – premiação de anos e anos na selva em busca de pedras preciosas. Os olhos estavam ali, à sua espera, a abarcá-lo na sua eternidade. Juliane deixou sua mão na mão do detetive. Já não podiam mais recuar, a menos que um raio caísse ali, o raio de uma voz.
– Olá! – ouviu-se a voz de Gilberto Soares Fonteles. Ele se sentou e depois de algum tempo de conversa disse que Juliane havia investigado Eleonora mais a fundo. Apolo Brito olhava desolado a mão de Juliane, que acabara de perder em tão pouco tempo.
– Muito bem… – disse Juliane, e contou o que descobrira.
Retirara, cuidadosamente, o quadro, a Catedral de Macapá, de Raimundo Peixe, da parede oposta à mesa de Eleonora, no seu escritório domiciliar. Depositou o óleo no chão. Sob a pintura havia a porta de um cofre. Sabia onde a chave era guardada. Abriu-o. O nicho devia ter um metro quadrado. Havia uma pilha de dólares, notas de mil dólares, um relicário transbordando de pedras preciosas e papéis. Observou melhor e viu um interruptor. Acionou-o e uma lâmpada iluminou o cofre. Notou, então, no fundo, uma pasta. Abriu-a. Havia dentro um caderno com o seguinte título: “Propriedades do veneno da Phyllobates terribilis”.
– Por acaso não havia também um muiraquitã? – Apolo Brito perguntou, referindo-se ao selo que encontrara no documento pardo, em Brasília. Juliane olhou estupefata para o detetive.
– Sim, havia um muiraquitã no cofre. Um sapinho de jade e olhos de esmeralda. Acho que aquilo vale uma fortuna – disse. – Mas o que isso tem a ver com o meu pai?
Gilberto degustava a Cerpinha enevoada e comia camarão pitu. A orquestra tocava Ahora Me Viene Llorando, de Dalla Rajas.
– Ainda não sei bem o quê – ele disse, mergulhando na clorofila do olhar dela.
“Receio que ele tenha enlouquecido, minha Nossa Senhora de Nazaré” – ela pensou. “Ele não envelheceu; é o mesmo, fisicamente, mas está também com essa fixação, essa paranoia do Gilberto, e voltou por isso, só por isso.” A orquestra atacava La Salve de Las Antillas, de Luis Kalaff e F. Miller.
Apolo Brito retornou às 5 horas para casa. Abriu o criado-mudo e dele retirou uma folha de papel A4, onde se lia: “Phyllobates terribilis. Rã amarela, de 3,5 centímetros de comprimento, da família dos Dendrobatidae (150 espécies). Só existe naturalmente na Colômbia, onde seu veneno, que pode matar 1.500 pessoas, é utilizado pelos índios Embera Choco. Um dardo contaminado serve para que um índio cace durante um ano. Basta alguém tocar numa dessas rãs para sentir no corpo todo contrações musculares irreversíveis, que levam a ataque cardíaco”.
“Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque. Criado em 23 de agosto de 2002. Mede 38.670 quilômetros quadrados, ou 3,867 milhões de hectares, ou campos de futebol, como diria o jornalista Lúcio Flávio Pinto. É o maior do mundo nos trópicos. Representa 27% do Amapá. Supera, portando, o Parque Nacional Salonga, na República Democrática do Congo (antigo Zaire), com 3,6 milhões de hectares. O Parque Nacional Kaalya, na Bolívia, mede 3.441.115 hectares. O Parque Nacional do Jaú, no Amazonas, mede 2,272 milhões de hectares. O Parque do Tumucumaque é maior do que Sergipe e Alagoas juntos, ou do tamanho da Holanda. Diga-se, a região da fronteira entre o Amapá e o Pará, a Guiana Francesa e a Guiana, forma uma fantástica província mineral, além de biológica. Guarda desde ouro a urânio, de ferro a nióbio. Boa noite, tio! Esmeralda.”
Apolo Brito depositou a folha sobre a cama e começou a tirar a roupa. “Essa menina é muito inteligente” – murmurou, pensativo. Foi ao banheiro e tomou banho. A água estava ótima. “Eleonora, Eleonora, Eleonora” – disse, em voz alta. “Basta a ponta de um alfinete embebido em Phyllobates terribilis na nuca do senador Fonteles, durante uma massagem da sra. Eleonora, para o senador conhecer o paraíso, de onde não sairá mais. E ninguém, nem o mais experiente legista, descobrirá o que de fato acontecera. E o Pará estará perdido, vendido, pilhado, saqueado, juntamente com a Amazônia, que já está entregue ao capital estrangeiro. Pilharão os diamantes e o nióbio de Roraima, o urânio do Amapá, o ferro do Pará, da mesma forma que pilharam o manganês do Amapá, devastarão os açaizais e os transformarão em chula e palmito em Tóquio e Nova Iorque, rasparão o chão da Terra do Meio e a transformarão na maior fazenda de vaca do mundo, monopolizarão a pesca de frutos do mar na costa amapaense, transformarão Manaus num hotel de selva exclusivo para gringos, ocuparão os portos, farão de Belém um prostíbulo e instituirão uma bacanal amazônica” – pensou.
Preparou-se para se deitar. Apanhou um livro de capa verde, de 288 páginas, um dos vários que furtara da biblioteca do senador Fonteles, em Brasília, intitulado Contra o Poder – 20 Anos de Jornal Pessoal: Uma Paixão Amazônica. Abriu-o. Na primeira página havia uma dedicatória: “Para o senador Fonteles, nosso representante no Planalto. Com o abraço do Lúcio. 22-02-08”. Tratava-se de uma edição do autor, de novembro de 2007. “Preciso conhecer a história recente do Pará e não tenho muito tempo para isso. Ou o suposto assassinato do senador Fonteles é apenas delírio desses cabanos ou realmente a quadrilha de Jarbas Barata já tomou conta do Pará e agora está tratando de vendê-lo como commodity para multinacionais” – pensava Apolo Brito enquanto lia o título do primeiro capítulo: Por que um Jornal Pessoal? Pulou-o e leu o título do capítulo seguinte: O Crime Esclarecido. Fora Lúcio Flávio Pinto quem elucidara o assassinato do ex-deputado Paulo Fonteles, que não era da família do senador Fonteles, mas que fora morto por contrariar interesses de tubarões do Pará. Apolo Brito pôs-se a ler.
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