Camila Cetrone – jornalista
Uma prateleira aparece ocupada por dezenas de garrafas PET. Em vez de refrigerante, estão cheias de macarrão, feijão, farinha e muito arroz – são mais de 40 quilos distribuídos entre os recipientes. Em um ano de estoque, Ana Paula Marqueza conseguiu guardar o equivalente a dois anos de consumo de arroz, o que comemora em um vídeo divulgado em agosto de 2023 em seu canal no YouTube. Os grãos essenciais para a alimentação de sua família dividem espaço com enlatados empilhados, embalagens de café, temperos e passa até por biscoitos e potes de goiabada. “Louvo a Deus por isso, por ter despertado para começar meu estoque”, diz ela no vídeo.
Ana Paula é considerada uma preparadora, como são conhecidas as brasileiras que passaram a organizar estoques de alimentos, itens de higiene pessoal e até medicamentos dentro de suas casas; e a mostrá-los em vídeos publicados no TikTok e no YouTube. O primeiro aniversário de estoque dela foi visto por mais de 63 mil pessoas e recebeu mais de 300 comentários — incluindo elogios à sua dedicação e pedidos de bênçãos ao trabalho que vem fazendo.
A prática de estocar alimentos, considerada mais comum em países europeus e nos Estados Unidos (EUA), passou a ser aderida recentemente no Brasil e a viralizar nas redes. Nesses outros dois territórios a necessidade é mais voltada para a maior possibilidade de desastres naturais, como tornados e terremotos – nos EUA, por exemplo, é comum encontrar alimentos vendidos em balde ou em pó, que prometem durar 30 anos.
E por que seria necessário fazer um estoque emergencial de alimentos no Brasil? As explicações de quem adere ao movimento variam muito: vão desde a preocupação com a instabilidade financeira (recessões, por exemplo), alta variação de preços de mercadorias e o desejo de economizar; até a possibilidade (literal) de um fim do mundo. Nesse caso, o medo vai de mudanças climáticas abruptas a cenários políticos violentos (guerras) e motivos religiosos (aqui, a espera de um apocalipse não é um exagero).
Brasileiras estocam comida, água e itens de higiene pessoal para o fim do mundo
No Brasil, as mulheres são a maioria a fazer esse tipo de vídeo, enquanto homens lideram ao ensinar outros aspectos do sobrevivencialismo, como caça e acampamento. Na internet, elas não só mostram o progresso, mas também compartilham as compras do mês, dão dicas de armazenamentos mais duradouros e fazem tutoriais de como fazer as primeiras aquisições com apenas R$ 50.
Profecia, Venezuela e explosões solares
Vídeos de estoque de comida começaram a aparecer com mais fôlego na internet brasileira em 2023. Entre as razões citadas pelas preparadoras de alguns dos conteúdos mais assistidos estão o apocalipse, a eleição de Lula no Brasil em 2022 e os conflitos entre Rússia e Ucrânia e, mais recentemente, Israel e Hamas.
Em dezembro de 2022, um perfil no X (antigo Twitter) escreveu que a estocagem de água, alimentos e reserva de emergência seriam necessários “nessa época nebulosa”, referindo-se à transição entre o governo Bolsonaro e o governo Lula.
Desde dezembro de 2023, Daiane Marques usa seu perfil no TikTok (@daianemarques2perfil) para fazer alertas envolvendo um possível “aviso de Deus para guardar alimentos”, em que cita versículos bíblicos, diz ter sonhos premonitórios e alerta para o surgimento de novas pandemias e falta de alimentos.
“Aqueles que estiverem nas grandes cidades, guardem a maior quantidade de comida possível a partir de hoje. Uma guerra muito grande, da qual nenhuma nação já viu, vai começar. Virá uma fome muito grande sobre as nações, que não terão acesso a comidas”, diz em um de seus vídeos.
Em outro registro, a dona do canal Projeto Provérbio 31, do YouTube, remete a necessidade de estocar alimentos, exemplificando com a “crise alimentar na Venezuela”, causada por “mau governo, corrupção, falta de dinheiro” e um aumento de juros e inflação.
“Esse tipo de vídeo não é para gerar transtorno, mas deve ter um fundo de verdade porque são vários os pastores que estão tendo essa profecia. Crente não pode ficar desesperado, angustiado. Tem que se preparar. Deus manda você se preparar para o dia mau”, afirma Daiane.
Os impactos das mudanças climáticas, catástrofes naturais e o medo de atravessar mais uma pandemia como a de covid-19 também motivam esse planejamento. No entanto, as explosões solares aparecem como prioridade das preocupações neste ranking.
Há pesquisas científicas, por exemplo a do biólogo molecular alemão Peter Becker, que apontam para um possível pico na atividade solar neste ano – o que poderia resultar em explosões e tempestades tão potentes que alcançariam satélites, redes de energia elétrica e aviação; além de colapsar a internet.
Gabriela Pereira, por trás do perfil @californices do TikTok, vive na Califórnia, nos Estados Unidos, e mostra os preparativos para estocar baldes de alimentação, água e proteínas para ela, o marido e os pais. Os quatro também deixam mochilas preparadas com itens básicos, como documentos e kits de primeiros socorros, para caso precisem se deslocar.
“Nosso objetivo não é só [de estocar] por causa da tempestade solar, porque aqui tem muito desastre natural. Tem vários outros motivos nos EUA, país que é potência mundial e vive em guerra. Moro aqui há nove anos e nunca levamos a sério. E agora com todo esse papo sobre a China vir fazer um ciberataque, do Sol, do terremoto esperado há muito tempo da faixa de San Andreas... [Vejo que] tem vários motivos do porquê eu deveria estar estocando.”
O vídeo, publicado em fevereiro, conseguiu mais de 150 mil likes e foi assistido 1,8 milhão de vezes.
‘Estamos nos preparando para qualquer coisa’
A decisão de manter um estoque emergencial também foi adotada por mulheres que viram no método uma maneira de contornar dificuldades financeiras – ou, em meio a um mercado de trabalho e cenário econômico instável, se precaver em casos de demissões para que não falte comida na mesa.
É o caso da agente de saúde Rubiana Paiva, 35 anos. “Sempre comprei coisas em grande quantidade, mas do ano passado para cá os valores ficaram absurdos. Com um estoque, não preciso ficar comprando todo mês”, ela explica a Marie Claire por telefone. Atualmente, ela conta com um estoque de 20 kg – o que equivale a três meses de alimentação para ela, o marido e o filho pequeno.
“Mesmo assim, sempre aproveito promoções e faço reposições. Não gosto de deixar acabar. Além disso, compensa mais fazer essa compra de alimentos básicos do que uma reserva de emergência em dinheiro, que geralmente se gasta com outras coisas que não são tão essenciais”, pensa.
Já Agnes Antunes, autônoma de 28 anos e dona do perfil @familiadailha no TikTok, passou meses pesquisando muito sobre o assunto até tomar a decisão de que estocar comida era uma forma de garantir a alimentação dos filhos, de dez e dois anos, caso ela ou o marido, Luiz Cláudio, fiquem desempregados ou impossibilitados de trabalhar por doença.
“Minha decisão foi baseada em segurança familiar. Moro em Florianópolis e, aqui, vi uma grande oscilação nos preços. Antes enchia o carrinho com R$ 1.300. Hoje a realidade é outra”, conta. “Já ouvi muito de familiares e no próprio TikTok sobre essa ser uma reação exagerada. Questionam se estou me preparando para o apocalipse zumbi.”
Parte do porquê aceitou se tornar uma preparadora veio da influência do marido, que se identifica com o sobrevivencialismo. “Sempre achei uma bobeira, mas ele foi me mostrando canais no YouTube sobre o assunto, me dizia que seria bom aprender. Hoje, acho necessário.”
Quando conversou por telefone com Marie Claire, havia iniciado a estocagem há 26 dias. O objetivo, segundo ela aprendeu com sobrevivencialistas na internet, é ter comida para três meses. A meta dela, no entanto, é de seis meses.
Mas há uma parte de Agnes que escuta com atenção as preocupações relacionadas a uma nova pandemia, a mudanças climáticas ou a uma possível tempestade solar. “Antes passar por uma pandemia era algo fora da realidade, e nós vivemos isso. Penso que, se acontecer, vou estar preparada. De certa forma, estamos nos preparando para qualquer coisa.”
‘Não é bom divulgar seus estoques, principalmente para familiares e amigos’
Marie Claire tentou contato com dezenas de mulheres responsáveis por esses vídeos, por meio do YouTube, das redes sociais e e-mail. Além de Agnes e Rubiana, não obteve mais nenhum retorno. O que pode explicar essa dificuldade de contato é a desconfiança das próprias preparadoras e do público que consome esse conteúdo.
“Vigiem seus estoques. Não fiquem mostrando na mídia sempre”, escreveu uma pessoa na sessão de comentários do vídeo de aniversário de estoque de Ana Paula Marqueza, citado no início desta reportagem.
Em outro vídeo, um segundo usuário reforça: “Não é bom divulgar seus estoques. Quando realmente ocorrer uma situação que for necessário ter os estoques, as pessoas que não fizeram suas preparações vão se lembrar de quem fez e irão atrás. Se divulgar, faça com um perfil e vídeo de forma que as pessoas não saibam quem é você. Principalmente familiares e amigos.”
O tom alarmista tem gerado pressões e abalos na saúde mental; inclusive de quem está dentro dessa comunidade, que nunca tem a impressão de ter alimento estocado o suficiente ou não tem condições de fazer compras tão generosas.
“Não acompanho mais tantos canais a respeito dessa parte de sobrevivência e estoque, porque percebi que isso acaba me gerando uma certa ansiedade. Às vezes, a gente não tem tantas condições de poder atender o que a gente espera”, afirmou a administradora do canal Diário de uma Preparadora em um de seus vídeos. Enquanto mostra suas conservas e grãos engarrafados, ela conta que precisou parar de investir no estoque por motivos financeiros. (Por Camila Cetrone, da revista Marie Claire)