Enquanto líderes globais debatiam o futuro do planeta na COP 29, no Azerbaijão, a Amazônia arde sob ameaças cada vez mais severas. A Ferrogrão (EF-170), uma obra monumental do agronegócio para exportar grãos, não é apenas uma ferrovia; é um símbolo de um modelo de desenvolvimento que destrói biomas, desrespeita povos tradicionais e privilegia lucros de grandes empresas.
No painel “Infraestrutura sustentável na Amazônia: caminhos para a transição energética e ecológica”, vozes como a de Alessandra Korap Munduruku e Cleidiane Vieira ecoaram a indignação de um povo que assiste ao desmantelamento de sua casa, de sua história e do seu futuro. “Não deixem a Ferrogrão destruir o Tapajós”, clamou Alessandra, ganhadora do Prêmio Goldman em 2023.
O projeto da Ferrogrão pretende construir 933 quilômetros de trilhos conectando Sinop (MT) a Miritituba (PA), com a promessa de eficiência logística para exportação de soja e milho. Mas o que significa essa “eficiência”? Para os povos da Amazônia, significa dragagens, explosões de pedrais sagrados, desmatamento e a ameaça de extinção cultural.
“São hidrovias, hidrelétricas, portos e ferrovias que não servem ao bioma amazônico, mas apenas aos interesses econômicos de poucos”, criticou Alessandra Munduruku. No Rio Tapajós, por exemplo, existem 41 projetos de portos. Destes, 27 já estão em operação, mas apenas cinco possuem licença ambiental.
“O modelo de desenvolvimento adotado no Brasil saqueia a Amazônia e deixa o povo no escuro”, denunciou Cleidiane Vieira, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Apesar de abrigar gigantescas hidrelétricas, as comunidades da região sofrem com a falta de energia e tarifas absurdamente altas.
Diante de uma plateia interessada em saber o que está acontecendo na Amazônia, Munduruku não poupou palavras ao denunciar a hipocrisia das políticas ambientais que desconsideram os povos originários. “Quem destrói o planeta não somos nós, os povos indígenas. São as grandes empresas, a monocultura, as mineradoras. Nós só queremos viver com dignidade.”
E mais: “Nossa riqueza está no rio limpo, na floresta em pé. Que cada um de vocês tenha a responsabilidade de salvar o planeta, porque não há um planeta dois.”
Desenvolvimento para quem?
Ricardo Baitelo, do Instituto de Energia e Meio Ambiente (IEMA), ressaltou as consequências da falta de planejamento inclusivo. “Ainda temos quase mil unidades básicas de saúde sem eletricidade, um terço delas no Pará. Corredores logísticos como a Ferrogrão são decididos sem que as comunidades possam incidir de verdade”, afirmou.
O modelo proposto pela Ferrogrão é a ponta de um iceberg de destruição, que não apenas ameaça o meio ambiente, mas reforça desigualdades históricas. Cleidiane Vieira foi incisiva: “Nada para a Amazônia sem os amazônidas.”
Vozes no rio Tapajós
A construção da Ferrogrão, projetada para ser um corredor logístico estratégico para o agronegócio brasileiro, enfrenta forte oposição de movimentos sociais e comunidades indígenas no Pará. No último sábado (16), cerca de 400 manifestantes paralisaram o transporte de cargas no Rio Tapajós, exibindo um imenso cartaz com os dizeres: “Não deixe a Ferrogrão destruir o Tapajós”.
A ação, pacífica e simbólica, foi organizada como parte do 7º Grito Ancestral do povo Tupinambá, no Território Tupinambá do Baixo Tapajós, na Reserva Tapajós-Arapiuns, a oito horas de barco de Santarém, oeste do estado.
Das 9h às 15h, o rio foi tomado por uma frota de cinco barcos e 15 bajaras conduzidos por povos indígenas e comunidades ribeirinhas. Representantes dos povos Tupinambá, Munduruku, Arapiun, Kumaruara, Jaraqui, Tapajó, Tapuia, Apiaká e Kayapó se uniram para denunciar os efeitos devastadores do corredor logístico do Arco Norte.
Os participantes alertaram sobre os impactos negativos causados pelos portos, terminais e comboios de balsas que transitam no rio, essenciais para o escoamento de soja e milho.
Indígenas subiram em balsas e comboios para divulgar uma petição contra o projeto da Ferrogrão, disponível no site www.ferrograonao.com. Segundo os organizadores, 39 movimentos e organizações da sociedade civil já se uniram à campanha.
Raquel Tupinambá, coordenadora do Conselho Indígena Tupinambá do Baixo Tapajós (CITUPI), destacou as ameaças ao rio e à subsistência das comunidades. “Estão nos impedindo de pescar e matando o Rio Tapajós para exportar soja para a China e Europa. Se a Ferrogrão for construída, a situação vai piorar ainda mais”, afirmou.
A manifestação ocorreu simultaneamente à COP 29, a Conferência da ONU sobre o Clima, no Azerbaijão. Para Pedro Charbel, coordenador de campanhas da Amazon Watch, o momento é estratégico para pressionar contra o projeto. “Nosso país será sede da COP no ano que vem, e os olhos do mundo estão voltados para o Pará. Não podemos ceder aos interesses de grandes empresas como a Cargill. Temos que cancelar o projeto da Ferrogrão pelo bem do futuro do planeta”, declarou.
Manifesto denuncia crimes ambientais
Ao fim do protesto, os indígenas lançaram um manifesto que denuncia a degradação do Tapajós. “Minhas águas já mudaram de cor por causa do garimpo e estou cheio de mercúrio que envenena os peixes e os humanos. Minha querida Praia da Vera Paz foi destruída pelo ferro e cimento dos silos de soja do porto da Cargill. Construído há 21 anos sem licença e sem consulta, esse porto marca o início de um ciclo de destruição”, diz o documento.
O projeto da Ferrogrão, com quase mil quilômetros de extensão, ligará Sinop (MT) a Miritituba (PA), permitindo um aumento significativo na exportação de grãos pelo Rio Tapajós. Estudos indicam que o fluxo de cargas pode crescer mais de seis vezes até 2049.
Porém, lideranças como Raquel Tupinambá alertam para as obras de dragagem e explosão de pedrais sagrados aos povos indígenas, que seriam necessárias para viabilizar a hidrovia. “A ferrovia vai aumentar o desmatamento e a destruição do rio. Até agora, não fomos consultados”, criticou.
Karanhin Metuktire, do Instituto Raoni, reforçou a urgência de respeitar os direitos indígenas. “Querem construir essa ferrovia ignorando os protocolos de consulta das nossas comunidades, como manda a Convenção 169 da OIT”, afirmou.
A advogada Bruna Balbi, da Terra de Direitos, também defendeu uma análise ampla dos impactos cumulativos da logística na região. “Mais de 40 portos, a hidrovia do Tapajós e a BR-163 compõem o Arco Norte. É preciso respeitar o direito à consulta de todos os povos afetados”, concluiu.
Os protestos no Tapajós reforçam que, enquanto a expansão do agronegócio avança, as vozes das comunidades locais seguem firmes na defesa de seus territórios e do meio ambiente.
VÍDEO EM BAKU, AZERBAIJÃO