Nos anos em que aconteceram os fatos, décadas de 70 e 80, a empresa alemã contou com recursos públicos e benefícios fiscais da SUDAM e BASA
A Volkswagen do Brasil foi processada na quarta-feira (4) por trabalho escravo em fazenda da empresa no município de Santana do Araguaia, no sul do Pará, durante as décadas de 1970 e 1980. Na ação civil pública, o Ministério Público do Trabalho (MPT) pede que a empresa assuma a responsabilidade pelos casos e pague R$ 165 milhões por danos morais coletivos.
De acordo com investigações do MPT, os fatos ocorreram na Fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida como Fazenda Volkswagen. A propriedade pertence à Companhia Vale do Rio Cristalino Agropecuária Comércio e Indústria (CVRC), uma subsidiária da Volkswagen.
Após apurar os fatos, o MPT realizou cinco audiências com representantes da empresa entre 2022 e 2023 para discutir a reparação da empresa pelos casos e a assinatura de um termo de ajuste de conduta (TAC). A Volkswagen do Brasil se retirou da mesa de negociação em março de 2023 e demonstrou não ter interesse em firmar o acordo com o MPT.
Na ação, o MPT também pede que a empresa implemente medidas de combate ao trabalho escravo, tráfico de pessoas e demais violações dos direitos humanos dos trabalhadores em suas cadeias de suprimentos. Além disso, a instituição pede a criação de mecanismos de coleta e apuração de denúncias disponível a trabalhadoras e trabalhadores da empresa e prestadores de serviços. “Não há dúvidas de que os responsáveis pelos ilícitos cometidos agiram deliberadamente, com motivação discriminatória, atacando sistematicamente um grupo social vulnerabilizado da população civil brasileira”, apontou a instituição no documento.
Segundo o procurador do Trabalho Rafael Garcia Rodrigues, que coordenou as investigações realizadas pelo GEAF “Fazenda Volkswagen”, o MPT promoveu profunda e exaustiva análise sobre os fatos ocorridos na Fazenda Volkswagen nas décadas de 1970 e 1980. “Os documentos e depoimentos obtidos pela instituição comprovaram as gravíssimas violações aos direitos humanos na fazenda naquele período. Foi constatada a submissão dos trabalhadores à condição semelhante à escravidão por meio de jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e servidão por dívida”, destacou o procurador.
A ação civil pública foi elaborada por grupo integrado pelas procuradoras e procuradores do Trabalho Christiane Vieira Nogueira, Rafael Garcia Rodrigues, Silvia Silva da Silva e Ulisses Dias de Carvalho.
Situação degradante
Em 2019, o MPT recebeu documentação impressa relacionada a situações de submissão de trabalhadores a condições degradantes de trabalho na propriedade. O material foi reunido pelo padre Ricardo Rezende Figueira, que, à época, era coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) para a região do Araguaia e Tocantins da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para apurar as denúncias, o MPT criou o GEAF “Fazenda Volkswagen”.
Segundo depoimentos, trabalhadores da fazenda de cerca de 140 mil hectares – equivalente à área da cidade de São Paulo – viviam no local em situação degradante de trabalho, sob violência e violações de direitos humanos. De acordo com as investigações, essas violações incluiriam falta de tratamento médico nos casos de malária, impedimento de saída da fazenda, em razão de vigilância armada ou de dívidas contraídas (servidão por dívidas), alojamentos instalados em locais insalubres, sem acesso à água potável e com alimentação precária.
Nos anos em que aconteceram os fatos, o empreendimento contou com recursos públicos e benefícios fiscais que ajudaram a alavancar seu negócio de criação de gado fazendo com que se tornasse um dos maiores polos do setor. Para a instituição, isso acentua a necessidade de reparação à sociedade brasileira.
Além da escravização por dívida, a entrada e saída da fazenda eram controladas por seguranças armados, que revistavam os trabalhadores e confiscavam os pertences. Os funcionários que tentavam fugir eram perseguidos, capturados e, em alguns casos, amarrados e espancados.
Segundo relatos de testemunhas e vítimas, havia casos de tortura, assassinato e desaparecimento de trabalhadores para além de ameaças e agressões caso não trabalhassem ou se o trabalho fosse considerado malfeito.
O documento ainda detalha que os trabalhadores viviam em barracos precários, sem paredes e expostos ao mau tempo, animais selvagens e peçonhentos. A falta de saneamento básico e higiene era frequente, e os funcionários utilizavam água de córregos contaminados para beber, cozinhar e se lavar.
Eles eram submetidos, principalmente, a atividades de roçagem e derrubada da mata amazônica para a formação de pastos e exploração de madeira, mas também obrigados a realizar outras tarefas, como construir alojamentos, cozinhar, realizar tarefas domésticas e, até mesmo, matar onças.
Por causa das más condição, a maioria dos trabalhadores contraiu malária e muitos sofriam acidentes de trabalho sem receber a assistência médica adequada.
Responsabilidade da Volkswagen
O Ministério Público do Trabalho, após analisar as provas, concluiu que a Volkswagen do Brasil é responsável pelas violações de direitos humanos ocorridas na Fazenda Vale do Rio Cristalino porque a empresa se beneficiou diretamente do trabalho escravo e do tráfico de pessoas na fazenda.
De acordo com o MPT, a responsabilidade da Volkswagen se configura pelos seguintes motivos:
Controle das atividades: a empresa definia as áreas de trabalho, fiscalizava os serviços, aprovava os pagamentos aos “gatos” (empreiteiros) e controlava a entrada e saída de pessoas da fazenda. A empresa também exigia que os “gatos” mantivessem um livro de ocorrências, que era periodicamente conferido e assinado por um fiscal da Volkswagen, demonstrando que a empresa tinha conhecimento das atividades realizadas na fazenda;
Conhecimento dos abusos: segundo relato de trabalhadores, a gerência da fazenda sabia das condições degradantes de trabalho e da escravidão por dívida. Relatórios de visitas e entrevistas com diretores da CVRC, subsidiária da Volkswagen que era proprietária da fazenda, também expuseram o envolvimento da empresa nos abusos;
Benefício econômico: a Volkswagen lucrou com a exploração do trabalho escravo, utilizando mão de obra barata para a formação de pastos e extração de madeira na fazenda, um dos maiores empreendimentos rurais da região amazônica na época. A fazenda foi instalada em Santana do Araguaia, no Pará, e recebeu subsídios do governo militar por meio da SUDAM e do BASA;
Omissão e encobrimento: a empresa se omitiu diante das denúncias, negando os fatos e tentando encobrir sua responsabilidade. A empresa se recusou a firmar um acordo com o MPT para reparar os danos causados aos trabalhadores e alegou a prescrição dos crimes para se eximir de responsabilidade;
Responsabilidade pela subsidiária: A Volkswagen era a controladora da CVRC e, portanto, responsável pelas ações da subsidiária.
Durante a investigação, a Volkswagen do Brasil negou o conhecimento dos abusos ocorridos entre 1974 e 1986 e alegou que os abusos eram de responsabilidade exclusiva dos empreiteiros (“gatos”) contratados para recrutar e gerenciar os trabalhadores.
A empresa ainda se baseou em argumentos técnicos para tentar se eximir de responsabilidade, como a impossibilidade de resgatar documentos antigos e a prescrição dos crimes.
Segundo o procurador do Trabalho Rafael Garcia Rodrigues, que coordenou as investigações, o MPT promoveu profunda e exaustiva análise sobre os fatos ocorridos na Fazenda Volkswagen nas décadas de 1970 e 1980.
“Os documentos e depoimentos obtidos pela instituição comprovaram as gravíssimas violações aos direitos humanos na fazenda naquele período. Foi constatada a submissão dos trabalhadores à condição semelhante à escravidão por meio de jornadas exaustivas, condições degradantes de trabalho e servidão por dívida”, destacou o procurador.
Volks: não notificada
A Volkswagen do Brasil “informa que ainda não foi formalmente notificada, razão pela qual não teve acesso ao teor da ação iniciada pelo Ministério Público Federal do Trabalho, e não comenta processos em andamento”. (Do Ver-o-Fato, com informações do MPT no Pará e Amapá e Portal Metrópoles)
Processo 0001135-97.2024.5.08.0118
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