Empreendimentos na região vêm sendo licenciados sem estudos dos componentes indígena e quilombola
O Ministério Público Federal (MPF) realizou, neste mês, duas reuniões com lideranças indígenas e quilombolas, representantes de empresas, da Secretaria de Estado dos Povos Indígenas do Pará (Sepi) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). O objetivo dos encontros foi discutir e buscar soluções para os conflitos que vêm ocorrendo entre as comunidades tradicionais de Tomé-Açu, no norte do estado, e empresas que atuam naquela região.
No último dia 5, participaram da reunião lideranças da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará (Aitva) e da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto-Acará (Amarqualta), além de representantes da empresa Hydro, da Funai e da Sepi. Durante o encontro, as comunidades tradicionais manifestaram preocupação com os impactos das atividades de mineroduto das empresas Hydro e Imerys sobre os seus territórios e modos de vida. O conflito com a Hydro levou inclusive à ocupação de um dos pátios da empresa por membros das comunidades indígenas da região.
Segundo os procuradores da República Felipe Palha e Nathalia Ferreira, que conduziram a reunião, foi expedido ofício para a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas), solicitando cópia dos processos de licenciamento dos minerodutos da Imerys e da Hydro em Tomé-Açu, além de informações sobre o estudo dos componentes indígena e quilombola nas áreas dos empreendimentos. Também foram oficiadas a Imerys e a Hydro para que apresentem o projeto executivo dos minerodutos e se manifestem sobre o início das negociações com as comunidades tradicionais do município.
Na segunda reunião, realizada no último dia 10, o MPF recebeu lideranças indígenas da etnia Tembé, integrantes da Aldeia Acará-Mirim e representantes da empresa Belém Bioenergia Brasil (BBB), da Funai e da Sepi. A discussão foi sobre a ocupação da Fazenda Colorado (onde a BBB produz dendê) por indígenas da etnia Tembé, que a consideram território tradicional. Além disso, as lideranças da Terra Indígena Tembé relataram que a atividade da fazenda lança materiais poluidores nos rios e igarapés, prejudicando a caça, a pesca e o uso da água do rio que banha a comunidade.
Como encaminhamento da reunião, o MPF oficiou a Semas, solicitando cópia do processo de licenciamento dos empreendimentos da BBB, além de informações sobre o estudo dos componentes indígenas nas áreas dos empreendimentos. Também foi expedido ofício para a Funai, solicitando manifestação sobre a situação de conflito relacionada aos empreendimentos da BBB no município de Tomé-Açu.
De acordo com a procuradora Nathalia Ferreira, o papel do MPF é o de defesa das comunidades tradicionais, e o órgão tem constatado, em diversas ocasiões, a ausência do estudo de componentes indígena e quilombola nos empreendimentos instalados por empresas privadas no Pará. “A posição institucional do MPF é de que, se os empreendimentos afetam os povos tradicionais da região, as comunidades devem ser consideradas na expedição das licenças, em territórios demarcados ou não, uma vez que a presença dos povos já é suficiente para exigir proteção”, afirmou, na reunião.
Nathalia também deixou claro que licenças expedidas para empreendimentos instalados em áreas que afetam povos tradicionais, sem a realização dos estudos de componentes indígena e quilombola, não são válidas, já que foram realizadas sem participação da Funai e sem o necessário diálogo com as comunidades da região. “No Pará, o MPF vai envidar todos os esforços para enfrentar a questão do licenciamento de empreendimentos sem consulta e estudo de componentes indígena e quilombola, inclusive com a adoção de medidas em âmbito judicial, se necessário”, concluiu a procuradora.
Violência contra os Tembé
O MPF vem acompanhando e tomando providências para investigar os casos de violência contra os indígenas da etnia Tembé e para evitar que novas agressões ocorram na região de Tomé-Açu.
Em maio deste ano, dois pistoleiros atiraram contra o cacique Lúcio Tembé em Tomé-Açu. A vítima foi alvejada no rosto e precisou ser encaminhada às pressas para atendimento em UTI na região metropolitana de Belém.
No dia 4 de agosto, durante a abertura do evento Diálogos Amazônicos, em Belém, houve um atentado contra a vida do indígena Kauã Tembé, alvejado por um tiro no momento em que ele e a comunidade estavam na ocupação da Aldeia Bananal, na zona rural de Tomé-Açu.
Poucos dias depois, no dia 7, houve mais um ataque. Os indígenas Felipe Tembé, Daiane Tembé e Eliane Tembé foram alvejados por armas de fogo durante os preparativos para o recebimento da visita do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Nesses episódios, o MPF requisitou providências urgentes à Polícia Federal, à Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social e ao governador do estado para elucidar os crimes e identificar os responsáveis. Em agosto, o MPF conseguiu que o Ministério da Justiça e Segurança Pública autorizasse o emprego da Força Nacional de Segurança Pública nos municípios de Tomé-Açu e Acará para conter o agravamento dos riscos às comunidades tradicionais. Fonte: Ascom do MPF no Pará.
Promotora critica BBF: parte são terras públicas
Em ampla matéria publicada neste final de semana por O Estado de São Paulo, onde a BBF aparece mostrando seu projeto de R$ 2,2 bilhões da biorrefinaria em Manaus (AM), é dito que outros R$ 2,5 bilhões serão investidos no plantio de palma para extração de óleo, a promotora de Justiça, Ione Nakamura, do Ministério Público do Pará, argumenta que parte dessas áreas ocupadas pela empresa “são consideradas públicas – dado que não há um histórico de documentação – e reivindicadas pelas populações tradicionais”.
“Se eu compro uma terra, tenho de verificar quem comprou ela antes de quem até o primeiro proprietário, que a comprou do Estado. Se lá atrás houve algum problema, todos que a compraram depois compraram um documento viciado, com problema fundiário”, explica Ione. “A BBF comprou áreas, mas, quando se analisa a cadeia, algumas têm problema de origem”, acrescenta.
A promotora destaca que esse problema é crônico na região e não acontece apenas com a BBF. “Terras adquiridas pela BBF estão inseridas em glebas públicas federais. E também existe o pleito de ampliação do território indígena (em sobreposição a área da BBF) requerida pela etnia Tembé perante a Funai.” Duas associações quilombolas também pleiteiam o reconhecimento de seus territórios na região.
A companhia, porém, afirma que, de acordo com ofícios do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), não existe sobreposição de suas terras com territórios indígenas e quilombolas. Procurada, a Funai não se pronunciou. O Incra informou estar levantando dados para poder confirmar se há ou não sobreposição de “áreas da BBF com as do território pleiteados pelas comunidades quilombolas”.
Sem estudo de impacto ambiental
Além desse conflito fundiário, o MP do Pará aponta que deveria ter sido feito um estudo de impacto ambiental na área questionada e criada uma zona de amortecimento entre a fazenda da BBF e o território indígena. Há também preocupação com o futuro das comunidades devido ao empobrecimento da vegetação na região por causa da monocultura de palma e do uso de agrotóxicos que podem contaminar os igarapés. Todos esses problemas, porém, são anteriores a aquisição das terras pela BBF.
O clima na região é de tensão e, segundo fontes ouvidas pela reportagem, ambos os lados estão exaltados. Em agosto, poucos dias antes de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegar a Belém para participar da Cúpula da Amazônia, quatro indígenas foram baleados. A versão da BBF é que a empresa foi invadida e que fogo foi ateado em seus veículos. Os indígenas, por sua vez, dizem que estavam ocupando um território que entendem ser deles.
“Eles (os indígenas) foram baleados por segurança da empresa dentro da empresa. Eles estavam invadindo, furtando, pondo fogo nos veículos, atacando patrimônio da empresa. É a mesma coisa que uma casa aqui no Jardins (bairro de São Paulo), em que vai entrar uma pessoa e o segurança da casa reage à invasão. É uma questão de ação e reação”, diz o presidente da BBF.
O empresário afirma ainda que a relação com as comunidades tradicionais das áreas onde a BBF atua “sempre foi boa”. “O problema são aqueles que se infiltram nas comunidades e agem de forma diferente.” Na avaliação de Steagall, para o conflito ser resolvido, o Estado precisa ampliar a presença na localidade.
Óleo de palma, um dos mais poluentes
O presidente da BBF ainda pode enfrentar outra resistência para colocar seu ambicioso projeto em pé. O óleo de palma é um dos insumos mais controversos de combustível sustentável. Ele é considerado um dos mais poluentes, dado que desmatamentos costumam ocorrer previamente às plantações de árvores, sobretudo em florestas do sudeste asiático.
A companhia aérea KLM, por exemplo, já comunicou ao mercado que não usará SAF de óleo de palma. Na União Europeia, havia a intenção de acabar com o uso de combustíveis à base do produto até 2030. Após Indonésia, Malásia e Tailândia afirmarem que retaliariam o grupo europeu se a medida fosse adotada, as conversas apontam para uma regulamentação que permita o óleo quando for comprovado que sua produção não está ligada ao desmatamento.
Para Steagall, sem a palma ou a soja (outra possível importante fonte de SAF no Brasil), não deverá haver matéria-prima suficiente para produzir o combustível no volume que será necessário futuramente. “São os dois óleos mais produzidos no mundo. Sobra o que para esses caras?”, questiona.
Steagall afirma que essa posição da União Europeia foi tomada com base na realidade do sudeste asiático, onde estão os maiores produtores de óleo de palma do mundo e onde o desmatamento era regra no segmento. Para ele, quando o Brasil tiver uma produção relevante do óleo e provar que tem uma cadeia sustentável, poderá ser criada uma legislação específica para o País.
Hoje no Brasil, há uma lei de 2010, encaminhada ao Congresso pelo então presidente Lula, que permite o cultivo de dendê apenas em áreas que foram degradadas antes de 2008, o que, ao menos na teoria, impede desmatamentos. Antes de a lei ser implementada, um estudo da Embrapa mostrou que o nordeste paraense teria condições climáticas favoráveis para o plantio do dendê. A promotora do Pará, no entanto, destaca que não foi analisada, à época, a questão sócio-étnica-cultural da região. Fonte: Estadão.