A bola do empate que caiu no pé direito de Lincoln e foi por cima da meta de Alisson no final da prorrogação foi o último sinal de que o Flamengo fizera muito mais do que o possível na final do Mundial de Clubes em Doha contra o Liverpool. O time titular, já na história do clube, igualou mais do que o esperado em 77 minutos o confronto com a melhor equipe da Europa e do planeta.
Os Reds perderam chances cristalinas com Firmino, uma na trave no início do segundo tempo, e Keita. Mas os comandados de Jorge Jesus responderam como nenhum outro brasileiro campeão sul-americano neste século em agressividade, qualidade técnica e organização para atacar e defender. Nem mesmo o Corinthians de Tite que venceu há sete anos o Chelsea em crise de Rafa Benítez, apresentou algo parecido.
A partida, porém, mostrou que alguns problemas do futebol brasileiro pesam a mão e puxam para baixo qualquer equipe do país que queira estabelecer um patamar mais próximo das principais equipes do mundo. A começar pelo calendário que colocou o Flamengo em seu 74º jogo oficial no ano justamente no desafio mais complicado. São 76 se contarmos os dois pela Flórida Cup. Quinze deles no estadual, que é sempre o que desequilibra a balança e, pior, atropela a temporada no segundo semestre. Ainda mais em ano de Copa América.
Não adiantou muito a “intertemporada” que ajudou Jorge Jesus assim que assumiu o comando técnico. O desgaste foi absurdo, até pela sequência de jogos no returno do Brasileiro emendados com Libertadores que fizeram o Flamengo entrar em campo, na média, uma vez a cada quatro dias. Sem os quatro meses dedicados a algo que só existe no Brasil, aquele gás que faltou na prorrogação poderia ter deixado o duelo com o gigante europeu menos desigual por mais tempo.
Assim como um elenco mais equilibrado. A chance desperdiçada por Lincoln – que não tem culpa de nada e procurou contribuir sempre, inclusive com gol importante na vitória sobre o Botafogo no Nilton Santos – poderia ter caído em pés mais experimentados saindo do banco. O time já sentira a queda de produção depois das trocas de Everton Ribeiro e De Arrascaeta por Diego e Vitinho.
O milagre do encaixe de quatro contratações em janeiro com outras quatro no meio do ano, mais o treinador estrangeiro, não foi suficiente para compensar a reposição com muitos garotos e “heranças” do passado que até surpreenderam pela recuperação e reinvenção, como Diego Ribas. Mas é preciso planejar melhor o ano e, de preferência, começar a temporada com o grupo mais completo.
E também escolher com mais critério o técnico para não precisar fazer a troca durante a temporada. Resultado também da prática habitual de trabalhar por etapas, pensando no primeiro semestre de estadual e fase de grupos de Libertadores e depois nas principais competições. Mas o que poderia ter feito o Flamengo de Jorge Jesus com pré-temporada decente, calendário digno e elenco completo desde o início do ano?
A esperança dos rubro-negros é que isso seja possível em 2020. Só que outro obstáculo intransponível do futebol nacional ameaça se impor no ano que vem: o mercado volátil e sujeito a propostas sedutoras em moedas bem mais fortes que o real. Como garantir a manutenção de Gabriel Barbosa, Bruno Henrique e outros destaques da temporada se até mercados alternativos, como China e o “mundo árabe”, podem desmanchar o que foi feito?
O Liverpool nada tem com isso e alcançou o título inédito. Mesmo sem ser prioridade, a celebração foi grande. Até pela dificuldade da conquista. Consolidada no belo gol de Firmino em contragolpe letal na prorrogação. Depois de um primeiro tempo que quase levou Jurgen Klopp à loucura e deixou todos cientes de que não estavam enfrentando qualquer um.
Mas venceram. Porque têm um trabalho de quatro anos. Aperfeiçoando processos e acertando mais nas contratações. Talvez o Flamengo tivesse melhor sorte contra Karius na meta, ou mesmo Adrian. Desta vez havia Alisson, que venceu o duelo particular com Gabriel Barbosa. Há dinheiro e planejamento para preservar o que funciona e gastar no intuito de minimizar problemas. Mesmo com os desfalques na zaga e no meio-campo, o time segue fortíssimo.
O Flamengo fez o que pôde. Foi uma ilha de excelência no Brasil e no continente, mas nos detalhes que atrapalham o futebol do país há décadas – e o time mais popular também carrega sua responsabilidade por não se insurgir, de fato, contra o que é possível mudar – não conseguiu dar o salto definitivo. Há muito do que se orgulhar, mas também refletir para seguir crescendo e tentar “o mundo de novo” sem precisar esperar mais 38 anos. (André Rocha)
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