1. A crise do partidarismo como canal de representatividade democrática
Gilberto Valente Martins – procurador-geral de Justiça do Pará
A história dos partidos políticos no Brasil é marcada por sua fragilidade e encontra-se, atualmente, no epicentro da grave crise política que assola nosso país. Tendo sido extintos em outubro de 1965, pelo Ato Institucional n.º 2, de autoria de Castello Branco, os partidos ressurgiram timidamente com o Ato Complementar n.º 4 (editado logo em seguida), na forma do bipartidarismo controlado que perdurou, na prática, até a promulgação da Emenda Constitucional n.º 25, de 1985. O modelo anterior só foi definitivamente suplantado com a Constituição Federal de 1988, que encontrou no fortalecimento do pluripartidarismo um dispositivo de afirmação da democracia.
Segundo o art. 14, §2º, V, da CF/88, a filiação partidária é condição indispensável de elegibilidade para cargos políticos no Brasil, não sendo permitidas, portanto, candidaturas independentes ou avulsas. Não obstante, mesmo com o esforço de fortalecimento do sistema partidário presente na CF/88, a verdade é que o Brasil se encontra diante de uma notória crise de representatividade e de confiança nos partidos políticos, marcada pela abstenção eleitoral crescente, baixíssima taxa de filiação partidária e ausência de identificação dos eleitores com os partidos.
Como afirma Débora Galvão, “os vínculos estão debilitados, as filiações diminuíram significativamente, a volatilidade aumentou, os eleitores estão mais inseguros e incongruentes, bem como aqueles membros que ainda permanecem nos partidos são menos militantes, ativos e leais”[1]. De fato, diante de um cenário de corrupção, ruptura de acordos e incongruência dos programas ideológicos, o sistema político eleitoral brasileiro resulta sobremaneira degradado, contaminado e desacreditado – recorde-se que, nas últimas décadas, o país vivenciou dois impeachments e foram apresentadas seis Propostas de Emenda Constitucional contestando a obrigatoriedade da filiação política como requisito de elegibilidade.
É interessante notar que as seis proposições favoráveis à alteração constitucional para permitir as candidaturas avulsas foram provenientes de ambas as casas legislativas, tanto de partidos da oposição quanto da situação, alinhados à esquerda e à direita, por meio de representantes de cinco estados de diferentes regiões do Brasil[2], restando patente a desvinculação do tema de uma tendência ideológica específica ou de interesses particulares de determinado grupo. De um modo geral, em suas justificativas, os parlamentares que apresentaram as PEC, defenderam o apoio popular como requisito de validade da candidatura avulsa, substitutivo à filiação, por considerarem que o partido não é mais a figura garantidora da legitimidade da representação.
Ainda nesse sentido, as pesquisas de opinião são uníssonas em revelar um absoluto desalento dos brasileiros em relações às instituições, sendo os partidos políticos considerados entre as mais desacreditadas. As principais queixas giram em torno da incapacidade de o sistema partidário cumprir sua função de mediador entre representantes e representados, de selecionar os melhores candidatos e da inconsistência quanto às propostas apresentadas aos eleitores e da infidelidade àquelas mesmas propostas.
Como observa Mariza Pugliesi, em um Estado Democrático de Direito, caberia aos partidos políticos a representatividade social e política das demandas dos segmentos sociais que representam, devendo favorecer o processo de mudança social e política ansiado por seus representados, contudo essa não é a realidade da conjuntura partidária brasileira.
Decerto, contrariamente ao espírito constitucional, os partidos políticos brasileiros têm se tornado máquinas eleitorais sem qualquer programa de ideias, voltados à defesa de interesses particulares dos seus membros: “o que predomina no seio dos nossos partidos políticos são menos as respectivas linhas programáticas de ação política e mais as aspirações ao exercício do poder dos homens que os compõem”, conclui Pugliesi[3].
A visão do eleitorado é a de que a filiação partidária é apenas uma formalidade, não tendo a maioria dos candidatos identidade com o programa partidário, o que vem a ser ratificado pela existência de legendas fisiológicas ou partidos “de aluguel”, permeáveis ao ingresso ou à saída de mandatários, descompromissados com as propostas políticas que apresentam em suas campanhas.
Estaríamos, pois, diante do fim iminente dos partidos políticos e de sua progressiva substituição por novos instrumentos de representação? Independente da resposta, parece-nos que uma forma plural de representação, que ultrapasse a representação tradicional exercida exclusivamente pela intermediação dos partidos políticos, pode contribuir para renovar o cenário político brasileiro e originar novas espécies de lideranças políticas, mais alinhadas com os reais interesses dos eleitores.
Nesse sentido, a possibilidade da candidatura avulsa, amparada no apoio popular real e não na formalidade da filiação partidária, significaria o reconhecimento legal de uma mudança corrente, da incapacidade de os partidos políticos cumprirem sua função com exclusividade, uma vez que um número cada vez maior de representantes do povo já teria como referência grupos de eleitores e movimentos sociais diversos e não as siglas partidárias, cuja influência e legitimidade são cada vez menos efetivas.
Nesse contexto, o presente artigo visa apresentar argumentos favoráveis à revisão do monopólio dos partidos sobre a representação política no Brasil e sua condição de canais praticamente exclusivos da representação, bem como busca defender as candidaturas avulsas como um direito humano e fundamental, indiscernível da liberdade de consciência.
Além dos impasses derivados da desvirtuação do sistema, os cientistas políticos têm verificado profundas mudanças na própria substância da política. Segundo Maurice Duverger[4], por exemplo, na sua forma clássica, os partidos políticos tinham sua identidade marcada a partir de visões de mundo abrangentes, que vinculavam seus filiados em todos os seus aspectos, caracterizando-se como canais de representação em sociedades divididas em classes sociais cujo engajamento dos indivíduos na política ocorria de maneira integrada e completa.
Hoje, porém, haveria uma tendência de os cidadãos estruturarem as suas identidades e valores a partir de princípios diversos, centrados em questões relativas à nacionalidade, etnia, religião, gênero, idade, integridade física e preservação ambiental, que se tornaram, pouco a pouco, o núcleo da agenda política de muitos países, sobrepondo-se à clássica problemática da distribuição de renda e propriedade.
Com essa fragmentação do espaço político, os cidadãos buscam participar da política por meio de temas até então considerados menores, relacionados diretamente ao seu cotidiano. Por isso, Duverger acredita que a estrutura partidária teria se tornado inadequada para o cenário contemporâneo do multiculturalismo, onde a política é desenhada a partir de eixos como etnia, gênero ou identidade religiosa e a participação política ocorre por meio de movimentos que procuram institucionalizar canais de acesso alternativos ao mundo partidário. (Artigo originalmente postado no Consultor Jurídico – leia as partes 2 e 3, abaixo)
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