O Ver-o-Fato traz detalhes sobre a operação realizada hoje pela Polícia Federal em vários estados do país para apurar as falcatruas de organização criminosa que agia no Pará, desviando verbas públicas – o valor alcança R$ 1,2 bilhão -, enquanto milhares de paraenses morriam acometidos pela Covid-19. O que o leitor verá abaixo é baseado em documentos extraídos da investigação policial e dos fiscais da lei, além de decisão do juiz federal Antônio Carlos Campelo, de Belém. O governador Helder Barbalho, principal investigado, responde separadamente em outra apuração, por possuir foro privilegiado em razão do cargo que ocupa.
O inquérito contra Helder corre em sigilo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cujo relator é o ministro Francisco Falcão. Uma fonte da PF adiantou ao Ver-o-Fato que o material apreendido na operação de hoje se juntará ao já obtido durante a operação S.O.S, que ano passado esteve no gabinete do governador, colhendo provas contra o chefe do executivo. Ou seja, o que foi coletado hoje irá servir de base para o afastamento – ou não – de Helder do cargo e até mesmo a prisão dele.
Um dos focos da investigação é Nicolas André Tsontakis Morais, conhecido por “Gordo”, que para a PF tem um patrimônio avaliado em R$ 600 milhões. Ele usava a identidade falsa e chegou a sair candidato a vereador pelo município de Peixe-Boi. Outros figurões também estão envolvidos, segundo a decisão do juiz da 4ª Vara Federal do Pará, Antônio Carlos de Almeida Campelo, que decretou no despacho a prisão preventiva de Nicolas André e de Cleudson Garcia Montali, Gilberto Torres Alves Júnior, José Arnaldo Izidoro Morais, José Bruno Tsontakis Morais e Regis Soares Pauleti, dirigentes de organizações sociais que geriam hospitais públi9cos no estado.
O trabalho da PF tem como alvos 12 contratos assinados entre o governo do Pará e organizações sociais ligadas a integrantes do Executivo no estado entre agosto de 2019 e maio de 2020 para gestão de hospitais públicos. Segundo a PF, a maior parte dos R$ 1,2 bilhão sofreu “processo de lavagem”, engordando fortunas pessoais. Nicolas André, preso preventivamente hoje, cumpria prisão domiciliar. Outro foco é a Associação da Irmandade da Santa Casa de Pacaembu, que administrou o Hospital Abelardo Santos , de 2019 a 2020. O governador Helder Barbalho cancelou o contrato com a OS após o estouro do escândalo.
O mais engraçado é que Nicolas André declarou ao Tribunal Eleitoral, quando foi candidato a vereador, ter um patrimônio de R4 60 mil, incluindo uma casa no valor de R$ 50 mil e uma motocicleta Honra Bros, avaliada em R$ 10 mil. O volume de bens citados na decisão do juiz Antônio Carlos Campelo, hoje, é totalmente diferente do que André declarou ao TRE e espanta pela quantidade, incluindo casas, apartamentos, carros e fazendas.
Veja os principais trechos da decisão do juiz Antônia Carlos Campelo sobre Nicolas André e os outros envolvidos, alguns com prisões temporárias decretadas pelo prazo de cinco dias. São cerca de 60 envolvidos:
” Trata-se de representação do delegado de Polícia Federal José Eloísio dos Santos Neto, pela adoção das medidas de prisão temporária, prisão preventiva, busca e apreensão e outras medidas cautelares diversas da prisão, no interesse do IPL 2020.0051065 – SR/PF/PA, que apura supostos crimes de lavagem de capitais (Lei nº 9.613/98) e organização criminosa (Lei nº 12.830/13), praticados por empresários que vem atuando no Estado do Pará, promovendo desvio de recursos públicos em um contexto de corrupção sistêmica”.
Narra que o Inquérito nº 1033977-37.2020.4.01.3900 foi resultado do desmembramento das investigações movidas no INQ 1434-STJ, sendo mantida na Superior Tribunal de Justiça apenas
a parte da investigação que diz respeito ao Governador do Estado do Pará. Pretende, por meio de tais medidas, robustecerem o que já vem sendo constatado no bojo do referido IPL, bem como apurar a materialidade delitiva, o volume das operações fraudulentas, e, ainda, a identificação de todos os envolvidos nessa empreitada criminosa, visando também cessar o risco de reiterações criminosas. Arguiu que esta Representação visa alcançar o “núcleo empresarial” do esquema criminoso. Instado a manifestar-se, o Ministério Público Federal opinou pelo deferimento integral da Representação Policial.
“Organização criminosa”
Diante das provas carreadas aos autos do correspondente Inquérito Policial, bem como das consistentes razões apresentadas pela autoridade policial nesta Representação – afirma o juiz federal na decisão -, “não restam dúvidas acerca da existência de uma organização criminosa, supostamente integrada pelos investigados aqui citados, que vem ocasionando o desvio de recursos públicos destinados à saúde, educação e transporte, bem como a sua ocultação e dissimulação”. Os recursos desviados, segundo a autoridade policial, totalizariam R$ 455.625.150,55 (quatrocentos e cinquenta e cinco milhões, seiscentos e vinte e cinco mil, cento e cinquenta reais e cinquenta e cinco centavos), que seriam oriundos de repasses efetivados pelo Governo do Estado do Pará, por meio da celebração de contratos de gestão, nos anos de 2019/2020, às Organizações Sociais (Instituto Panamericano de Gestão – IPG, Associação da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Pacaembu, Instituto Nacional de Assistência Integral – INAI e Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Birigui), com a finalidade de promover a administração dos 9 (nove) hospitais, a seguir: Hospital Público Geral de Castelo dos Sonhos (Itaituba), Hospital de Campanha de Santarém, Hospital de Campanha de Breves, Hospital Regional Abelardo Santos (HRAS), Hospital de Campanha de Belém, Hospital de Campanha de Marabá, Hospital Público Regional de Castanhal, Hospital Público Geral de Castelo dos Sonhos, e Hospital Regional dos Caetes.
“Nos termos das informações acostadas, as citadas Organizações Sociais pulverizaram estes recursos por meio da subcontratação de mais de 200 (duzentas) pessoas jurídicas, havendo
fortes indícios de que a maior parte delas integra o esquema criminoso. Conforme relatado, de forma exaustiva, pela autoridade policial, o desvio dos recursos ocorria com a prática de “quarteirização”, que consiste nas subcontratações de diversas empresas pertencentes ao grupo criminoso, realizadas pelas Organizações Sociais – por meio do repasse financeiro efetuado pelo Governo do Estado do Pará – a pretexto da prestação de serviços relacionados às unidades de saúde. Contudo, tais vínculos contratuais eram superfaturados e, ocasionalmente, nem ocorria prestação do serviço contratado ou a aquisição dos bens adquiridos”.
Ressalta ainda o inquérito a existência de indícios em que as Organizações Sociais, em alguns momentos, “transferiam os recursos públicos diretamente aos integrantes do suposto esquema criminoso, sem, sequer, efetuar repasses dissimulados às empresas subcontratadas. Arguiu a realização de pagamentos através de boletos bancários, em favor dos integrantes da, em tese, Organização Criminosa, cujos valores eram debitados diretamente das contas pertencentes às Organização Sociais e empresas subcontratadas. Referido modus operandi,
conforme bem explicado na Representação, o que possibilitava não só o desvio dos recursos, como almejava dificultar o rastreamento dos valores ilicitamente locupletados”.
“A divisão de valores “
Mais adiante, o relatório da investigação trata sobre o crime de lavagem de capitais. ” A lavagem de capitais ocorreria justamente com a subcontratação dessas empresas para a prestação dos serviços ou aquisição de bens, uma vez que dificultava a fiscalização da execução dos contratos e o repasse das verbas públicas, assim como de eventuais superfaturamentos contratuais. E, justamente na celebração de tais contratos e na ineficácia de suas fiscalizações, era onde atuariam servidores públicos, de modo a facilitar a efetivação da dissimulação e/ou ocultação de tais valores”.
Narrou que “as empresas subcontratadas, após receberem os recursos das Organizações Sociais, pulverizavam os valores por diversos meios, a fim de promover o retorno do dinheiro, de
forma dissimulada, para os integrantes do esquema criminoso.”. Aduziu as condutas tipificadas na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98) e inseridas no contexto da organização criminosa: “…após a “criação da sobra de recursos” por meio de fraude nas subcontratações, as Organização Sociais repassam os valores às empresas subcontratadas e estas, por sua vez, devolvem os valores aos integrantes da Organização Criminosa, ocorrendo o que os participantes do esquema chamam de “volta”. A “volta” pode se dar de várias maneiras, tal como: 1) Transferências bancárias para outras empresas e/ou pessoas físicas conhecidas vulgarmente como “laranjas/testas de ferro”; 2) Saques vultosos com posterior distribuição do dinheiro em espécie a fim de dificultar o rastreamento pelos órgãos de persecução penal (follow the Money); 3) Pagamento de boletos bancários cujos beneficiários são os membros do esquema criminoso (boletagem); 4) Compra de bens móveis e imóveis em nome de interpostas pessoas; 5) Introdução do dinheiro desviado em atividades econômicas lícitas, misturando dinheiro ilícito com lícito (mescla)” (fls. 18/19)”.
Alegou que Nicolas Moraes (Nicholas Freire) detinha a função de “operador financeiro”, que é a pessoa responsável por transitar em vários núcleos da Organização Criminosa, funcionando como verdadeiro elo de interesses espúrios. Outra função seria, segundo a Autoridade Policial, “evitar que agentes políticos e servidores públicos tenham contato direto com membros do grupo empresarial, dado que tal situação poderia potencializar a exposição deles em uma eventual investigação, circunstância que dificultaria a alegação de ausência de vínculo entre seus integrantes.”.
A investigação busca constatar a “prática da técnica de smurfing, consistente basicamente na ação do agente dividir o total dos valores em diversas quantias menores do dinheiro que estejam de acordo com o limite permissivo da legislação, conforme se depreende, exemplificativamente, nos trechos que seguem: “Dentro do contexto de lavagem, tem-se que o Auto Posto foi destinatário de vários depósitos em dinheiro feitos na sua conta bancária. Somente Nicholas Freire fez 58 depósitos, totalizando R$ 1.258.529,47 (…) José Arnaldo, por sua vez, fez 51 depósitos em favor da empresa, totalizando R$ 1.829.017,64, ao passo que José Bruno fez 30 depósitos, que totalizaram R$ 244.550,00, e Carlos Guimarães, funcionário do posto, realizou 95 depósitos, no valor global de R$ 3.297.483,00”.
Constatou-se, também, que a Minotauro realizou 31 depósitos para o Auto Posto que, somados, representam a quantia de R$ 3.114.550,00 (…) Além disso, observa-se que o Auto Posto João Paulo II também remeteu valores suspeitos para contas que são provavelmente utilizadas no processo de lavagem de capitais, conforme imagem abaixo: R$ 561.500,00 para
Minotauro Group, em 2 (duas) transações, nos dias 27/05/2019 e 31/07/2019; R$ 9.044,00 para Manoel Rodojalma, no dia 31/07/2020; R$ 3.500,00 para José Bruno Tsontakis Morais, no dia 18/07/2019”.
Muito dinheiro em sacos plásticos
Outro detalhe, contido na representação policial, é a citação de algumas pessoas que supostamente estariam envolvidas nos ilícitos em apuração, e que estariam sendo pagas, conforme se verifica na seguinte transcrição que narra que: “o local onde funciona o posto (Auto Posto João Paulo II), ao que tudo indica, também é utilizado para sediar encontros entre membros da Orcrim e fazer repasses de dinheiro em espécie. Nesse contexto, apurou-se que, no dia 17/06/2020, Nectaria (mãe de Nicolas ) encaminha para José Arnaldo, pelo WhatsApp, imagens que são das câmeras de segurança do posto.
Nelas é possível perceber a presença de Nicolas, Cleudson, José Arnaldo e Ana Caroline (esposa de Nicolas). Na ocasião, Cleudson e José Arnaldo mexem em algo que, provavelmente, trata-se de dinheiro em espécie, conforme é possível ver a seguir disponibilizado via QRCODE (…) Reforça-se ainda mais a suspeita de que
no local há grande movimentação de espécie quando observamos que Carlos Augusto da Silva Guimarães, no dia 04/09/2020, também envia para José Arnaldo as fotos abaixo tiradas no posto. Seguem as imagens para comparação.”. Por ocasião das imagens, é possível detectar vultuosa quantidade de cédulas espalhadas em vários sacos plásticos. Até o momento, conforme as apurações e informações da autoridade policial, existem já indícios suficientes para indicar os participantes do Núcleo Empresarial”.
De acordo com o entendimento do juiz Antônio Carlos Campelo, “inúmeras e graves foram as irregularidades apuradas até então no Inquérito Policial nº 2020.0051065-SR/PF/PA, indicando a existência de uma vigorosa organização criminosa, que vem promovendo vultosos desvios de recursos públicos oriundos de contratações formalizadas pelo Governo do Estado do Pará com Organizações Sociais de Saúde, no contexto da pandemia de COVID-19, para a prestação de serviços relacionados à gestão de hospitais de campanha”.
Nesse contexto, assevera o magistrado, justificam-se plenamente as medidas cautelares ora requeridas pela autoridade policial, propondo a custódia preventiva dos principais integrantes do “núcleo empresarial” da referida organização criminosa, bem como a prisão temporária de pessoas relacionadas aos crimes, além da busca e apreensão nos endereços indicados, visando a apreensão de produtos do crime e de outros elementos probatórios. Assim, tenho como plenamente justificada a necessidade das medidas constritivas pleiteadas, posto que
demonstradas as materialidades delitivas, devidamente comprovadas pelos resultados da busca e apreensão anteriormente deferida em processo diverso e com os demais elementos probatórios acostados aos autos, restando bem delineados, além da materialidade, os fortíssimos indícios de autoria em direção a todos os investigados, bem como a premente necessidade de se resguardar a ordem pública e a ordem econômica, diante da formação de uma forte organização criminosa, com o caráter estável e organizado de suas ações, que vem causando enormes prejuízos aos recursos públicos destinados à saúde, e à sociedade em geral, ainda, em plena pandemia do COVID-19, onde o sistema de saúde mundial encontra-se necessitado de hospitais, equipamentos, profissionais habilitados etc”.
“Verdadeira ameaça à ordem pública”
]”Nem se pode cogitar que outras medidas cautelares diversas da prisão, se estipuladas isoladamente, seriam suficientes e/ou adequadas para garantir o andamento do processo, a
interrupção da atividade criminosa ou a utilidade de uma sentença penal, impondo-se a medida cautelar extrema aos principais envolvidos. A atuação concertada e habitual de todos os envolvidos na prática criminosa, induvidosamente, representa verdadeira ameaça à ordem pública e econômica, de forma a evidenciar que, continuando em liberdade, os investigados permanecerão delinquindo, fortalecendo ainda mais a indústria do crime, conforme bem demonstrado na presente representação, impondo-se a decretação das medidas cautelares sob comento. Esses constantes e graves delitos certamente prosseguirão se os seus protagonistas não forem custodiados cautelarmente, impondo-se a decretação das medidas”, argumenta o juiz.
Por fim, o juiz destaca que, demonstrados os pressupostos da medida cautelar pleiteada, relativos à prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, que constituem o fumus delicti, ou a aparência do delito, justifica-se plenamente a medida cautelar, principalmente para a garantia da ordem pública e econômica, tendo em vista a extensão dos crimes, a habitualidade e gravidade das condutas delitivas, bem como a quantidade de pessoas envolvidas. “Ademais, justifica-se também a prisão dos investigados para a conveniência da instrução criminal e para assegurar aplicação da lei penal. Os exaustivos e consistentes argumentos expendidos pelo ilustre Delegado de Polícia Federal, com detalhamento dos graves fatos investigados no bojo do correspondente Inquérito Policial, conduzem ao deferimento das medidas, pois, além de haver evidências da materialidade delitiva, fortes indícios existem contra os representados acerca da prática dos crimes previstos nos artigos §1º do art. 1º da Lei nº 9.613/1998 (crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores) c/c 1º da Lei nº 12.850/2013 (organizações criminosas), entre outros prováveis, a serem apurados com maior detalhe no decorrer e ao final das investigações em outros Juízos”.