É intrigante e desafiador, para as investigações sobre os 9 corpos encontrados em um barco à deriva no Pará, saber a origem exata de seus ocupantes e se é mesmo possível, como sugerem algumas hipóteses, uma frágil embarcação deixar a África, ganhar o oceano, enfrentar ondas às vezes gigantes e vir parar em Bragança, no nordeste do Pará.
Os documentos e objetos encontrados pelos agentes envolvidos na investigação, apontam que os tripulantes seriam originários do continente africano, da região da Mauritânia e Mali. Até aí, nada a opor. Eles poderiam estar em qualquer outro país, até mesmo próximo do Brasil, mas isso também é um mistério.
O barco, com mais de 13 metros de comprimento e 2 metros de largura, porém, não possuía nenhum mecanismo de propulsão como motor ou vela. Isso significa que o barco teria chegado ao Brasil apenas flutuando. Mas seria possível uma embarcação à deriva sair da África e chegar ao Brasil?
Segundo especialistas, é muito pouco provável que isso tenha ocorrido. Se a embarcação realmente tiver partido da Mauritânia, não teria como chegar ao nosso país, explica o professor de Oceanografia da Universidade Federal do Ceará, Carlos Teixeira, devido ao fluxo das correntes marítimas. Isso porque não há correntes que saem ao norte da linha do Equador e chegam ao Brasil.
No entanto, eles poderiam ter pegado uma corrente do norte da África até o sul do continente, e depois outra até o Brasil. O trajeto do sul da África até o Brasil levaria cerca de 180 dias, estima o oceanógrafo. Ainda assim, é uma possibilidade remota, já que o barco teria que enfrentar altas ondas e tempestades.
“Pelos sistemas de correntes marítimas, não tem como ter saído direto (da Mauritânia). As correntes ao sul da linha do Equador, vêm de leste para oeste. Ao norte, também há correntes de leste a oeste, mas pela posição não chegaria ao Brasil, e sim ao Caribe”, explica Teixeira. Ele afirma ainda que não seria possível que correntes tivessem levado o barco do norte do continente africano ao Caribe e então ao Brasil.
A ideia de que o barco saiu sem algum motor ou vela, no entanto, também é pouco provável, na visão de Teixeira e do doutor em Engenharia Naval e Oceânica e professor no curso de Engenharia Naval da UFSC, Ricardo Aurélio. Para Teixeira, o mais provável é que ele tenha saído com alguma forma de propulsão, mas a perdido em algum momento do trajeto.
Ajuda de reboque?
“Ondas e tempestades facilmente virariam um barco como esse. Temos naufrágios em barcos mais preparados do que este. Na minha opinião, é muito difícil eles terem chegado só flutuando”, afirma o oceanógrafo.
Já Aurélio pensa na possibilidade de terem recebido um reboque de outra embarcação motorizada. “Em uma situação como essa, é muito pouco provável que esse barco possa ser bem sucedido. Não tinha condição estrutural. Só se eles conseguissem pegar uma corrente marítima, a remo não tem como”, acrescenta o engenheiro naval.
Segundo os especialistas, existem casos passados em que navegações chegaram da África ao Brasil a remo, mas havia uma ótima estrutura e preparação. Eles citam Amyr Klink, que remou da costa da Namíbia, no sul do continente africano, até a Bahia em 100 dias, ajudado por uma corrente marítima que fez com que o trajeto fosse mais rápido.
Outra hipótese; Ilhas Canárias
As investigações da Polícia Federal apontam, preliminarmente, que o barco com nove corpos encontrados na costa paraense tinha como destino às Ilhas Canárias, na costa da África Ocidental. O arquipélago espanhol é usado como rota migratória para entrada no continente europeu.
“As investigações levam a entender que esse barco muito provavelmente saiu da Mauritânia com destino às ilhas Canárias. Há um fluxo intenso de imigração ilegal entre esses dois países”, informou o superintendente da PF no Pará, José Roberto Peres.
Segundo o superintendente, há contrabando ilegal de imigrantes da Mauritânia para as Ilhas Canárias. A PF vai apurar indícios da atuação de organizações criminosas que operam com imigração ilegal. A rota de migração África Ocidental-Atlântico é considerada uma das mais mortais do mundo. Pelo menos 543 migrantes morreram ou desapareceram nessa jornada apenas em 2022, de acordo com a Organização Internacional para Migração (OIM), agência da ONU para as migrações.
As tentativas de travessia geralmente ocorrem em embarcações improvisadas e superlotadas, que tornam a viagem perigosa e potencialmente mortal. “Provavelmente o barco se perdeu ao mar, deve ter pegado uma corrente marítima e chegou ao Brasil. Em 2021, foram localizados sete barcos idênticos com esse. A maioria no Caribe e um deles no Ceará”, disse José Roberto Peres.
Segundo o doutor em oceanografia Yuri Prestes, formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), é possível que o barco tenha chegado até o litoral paraense devido à embarcação não ter motor e ao sistema de correntes oceânicas. Conforme a marinha, o barco de 13 metros em que foram encontrados os corpos é artesanal, e não tinha motor, leme, nem sistema de direção
“Provavelmente teve alguma interação com a corrente da costa africana. Existem algumas correntes que têm alguns nomes, como correntes das Canárias e da Guiné. Provavelmente (a embarcação) foi sujeita ao fluxo da corrente equatorial, aqui no Oceano Atlântico”, explicou Prestes.
Em abril de 2021, três corpos em decomposição e 27 celulares foram encontrados em uma embarcação em alto-mar próximo à costa de Fortaleza, no Ceará. Uma das hipóteses levantadas pela PF à época, sugeria que os corpos poderiam ser de imigrantes que tentavam chegar à Europa.
A Polícia Federal acredita que ao menos 25 pessoas estavam no barco encontrado à deriva no Pará. Ao todo, nove corpos foram encontrados e documentos apontam que as vítimas são da África. No entanto, a investigação suspeita que o barco tinha mais ocupantes quando iniciou a viagem.
O que vai ser feito agora?
Agora, as atividades para identificar os corpos irão se basear em critérios do protocolo de identificação de vítimas de desastres da Organização Internacional de Polícia Criminal, a Interpol. Esse protocolo é geralmente aplicado em situações de desastres naturais, ataques terroristas e acidentes aéreos, por exemplo. O trabalho é realizado em quatro etapas principais.
Fase 1 – Exame do local: Recuperação das vítimas e dos bens;
Fase 2 – Dados post-mortem: Os restos mortais são examinados por especialistas para detectar o máximo possível de dados biométricos. Isso pode incluir: impressões digitais; dados odontológicos; indicações físicas como tatuagens e cicatrizes que possam ser exclusivos da vítima
Fase 3 – Dados ante-mortem: Os familiares mais próximos são entrevistados sobre o familiar desaparecido para coletar informações sobre a pessoa. Dados biométricos também podem ser coletados para complementar a investigação da fase 1, principalmente com impressões digitais, DNA, dados odontológicos e médicos;
Fase 4 – Reconciliação: Uma vez recolhidos os dados das fases anteriores, uma equipe de especialistas compara e reconcilia os conjuntos de informações para identificar as vítimas. A identificação só é possível se houver 100% de correspondência entre os dados da Fase 2 e 3, do DNA e/ou dados odontológicos e/ou impressões digitais. (Do Ver-o-Fato, com informações complementares de O Estado de São Paulo e G1 Pará)