Marilene Carneiro Matos – advogada *
A aprovação do Projeto de Lei 10.887/2018 no dia 16 de junho pela Câmara dos Deputados, com o objetivo de alterar a atual Lei de Improbidade Administrativa – LIA – tem gerado discussões apaixonadas tanto por parte dos seus críticos quanto pelos seus apoiadores. São muitos os aspectos que ora rodeiam as discussões dos juristas e da população em geral, os quais, no entanto, guardam um ponto em comum: a necessidade de atualização do diploma normativo, após quase 3 décadas de sua existência, ante problemas observados no seu manejo, o qual nem sempre atendeu aos objetivos republicanos que motivaram o legislador.
Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é trazer à reflexão um ponto específico objeto do projeto de alteração da LIA: a participação do particular nas condutas que caracterizam a improbidade administrativa. A LIA, ao regulamentar as condutas, as sanções e o procedimento da improbidade administrativa, tem como ponto de partida o objetivo precípuo de impor duras sanções aos atos de corrupção dos agentes públicos, às quais engloba perda da função pública, indisponibilidade de bens, ressarcimento ao erário, suspensão dos direitos políticos, multa civil e proibição de contratar ou receber subsídios e incentivos fiscais por parte dos diversos órgãos do Estado. Tudo isso, sem prejuízo das demais sanções a que o agente estará sujeito, como as previstas no Código Penal.
Assim, protagonista ou sujeito ativo da improbidade é definido pelo artigo 2º , como agente público, servidor ou não, cujo conceito mereceu a mais ampla abrangência da norma: todo aquele que, ainda que transitoriamente, e mesmo que sem remuneração, desempenhe atribuições públicas, o que engloba: servidores públicos, agentes políticos, mesários e mesmo estagiários. Nesse particular cabe ressaltar também a amplitude das entidades que podem figurar como vítimas dos atos corruptivos: todas as entidades da Administração Direta e Indireta de todos os Poderes de todas as entidades federativas e inclusive entidades privadas que recebem algum tipo de auxílio ou subvenção estatal.
Já o particular sem qualquer tipo de vínculo com o Estado pode vir a responder pelas mesmas sanções da improbidade em uma das três formas previstas pelo artigo 3º, ou seja, é pressuposto do enquadramento do particular na LIA as condutas de “beneficiar-se”, “induzir” ou “concorrer” para o ato de improbidade, sempre atuando em conluio com um agente público. Assim, vimos na época do escândalo relativos à operação lavajato que as empresas e seus dirigentes foram enquadrados por atuarem sempre em conluio com um agente público – em geral, induzindo ou concorrendo – para a execução das condutas tipificadas como improbidade administrativa.
E o particular que causa um dano ao erário intencionalmente e sem a contribuição do agente público? Estes responderão com base em diversas normas protetivas do patrimônio público, como o Código Penal, a Lei de Ação Civil Pública, as ações ressarcitórias, dentre outras. Então, para a improbidade, é condição sine qua non a participação do agente público.
Entretanto, a norma da Lei de Improbidade em relação ao particular acarretou ao longo dos anos um problema relevante, mais especificamente na parte da participação na forma de “beneficiar-se” da conduta de improbidade, problema este relacionado a outro não menos importante e também objeto de alteração na forma proposta pelo projeto: o dolo, a intenção de atuar desonestamente em prejuízo da Administração Pública. É que nem sempre o beneficiário do ato de corrupção tem a ciência da ilicitude da conduta do agente público.
Neste contexto, não raro ocorre de o particular receber a contraprestação de serviços prestados à Administração sem a ciência de possíveis irregulares tanto do procedimento licitatório, quando da aplicação das verbas orçamentárias, quanto de normas atinentes à formalização contratual, dentre vários outros exemplos recorrentes da prática administrativa.
Tal problema é ainda mais comuns no âmbito de Estados e Municípios em que há carência de assessoria jurídica qualificada nos diversos órgãos públicos. E daí, os erros na aplicação de normas pelos gestores, no âmbito preparatório ou interno das contratações coloca o particular, o empresário, em situação muito delicada, de ter que responder por improbidade administrativa a partir de atuação interna dos gestores na administração pública. Teria o particular que se transformar em bedel da conduta de gestores públicas em relação ao cumprimento das normas de funcionamento da administração pública?
A se manter tal raciocínio, ademais de se admitir a modalidade culposa de improbidade, já discutível, defrontamo-nos com a possibilidade de responsabilização objetiva, sem o elemento subjetivo, de particulares pelo mero fato de contratarem com o Estado. Foi esse o objetivo do legislador quando editou a Lei 8429/92? Não parece ser esta a melhor interpretação da norma.
Ademais, quando a LIA somente admite a improbidade administrativa na forma culposa na modalidade que causa prejuizo ao erário, quando o particular é incluído nas demais formas de atuação ímproba – enriquecimento ilícito e lesão a princípios da administração pública – na forma de mero beneficiário, restará configurada punição mais severa em relação ao próprio agente público, já que este só responderá por tais conduta na forma dolosa.
A admitir-se a participação do particular como mero beneficiário nas formas em que a LIA somente admite a forma dolosa para o agente público, inegavelmente estará admitindo que o particular pratica a improbidade culposa. Porque se o empresário ou a pessoa física são apenas benefíciários da improbidade, significa que não induziram ou concorreram para a improbidade, o que os coloca na posição de sujeitos ativos por culpa por improbidade em hipóteses em que a LIA excluiu até mesmo o agente público.
Diante de tal inconcistência, o projeto de lei aprovado pela Câmara dos Deputados, ao excluir a modalidade culposa de improbidade, ao entendimento de que não é possivel imaginar-se a desonestidade “por descuido”, de forma coerente restringiu a participação do particular apenas para as condutas de Induzir ou Concorrer para os atos ímprobos. Ou seja, a se imaginar a improbidade, a desonestidade do agente público apenas quando há consciência e vontade livre de atuar desonestamente, de forma distinta o particular em concluio somente responderá ante a configuração de sua vontade, do seu dolo, de atuar como partícipe do ato desonesto.
Importante ressaltar, neste sentido, que a responsabilideade objetiva empresarial já é objeto da Lei Anticorrupção, denominada por alguns de Lei da Improbidade Empresarial, a qual já prevê a penalização de condutas empresariais indepentemente da comprovação de dolo ou culpa em prejuízo do erário e dos princípios da Administração Pública.
Tal linha é mais assente com o nosso sistema jurídico sancionador, o qual pressupõe que a conduta humana punível é aquela que se concretiza a partir de uma vontade, do elemento subjetivo do agente, na forma no mínimo culposa. A responsabilidade objetiva é de forma geral afeta a condutas de entidades, de pessoas jurídicas, às quais, por se configurarem como ficção jurídica dispensam o elemento da vontade para gerar uma resposta de caráter sancionatório do Direito.
- Marilene Carneiro Matos é advogada, presidente da Comissão de Direito Administrativo da ABA e mestre em Direito Público pelo Instituto Brasiliense de Direito Público