Em 31 de março de 1964, eu tinha 9 anos de idade e vivia na minha terra natal, Macapá, cidade ribeirinha na margem esquerda do estuário do maior rio do mundo, o Amazonas, na esquina com a Linha Imaginária do Equador. Era a capital do então Território Federal do Amapá. Daquela época, lembro-me de prisões políticas na Fortaleza de São José de Macapá e da minha mãe queimando livros do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, leitor voraz, poeta e líder estudantil, o suficiente para que fosse jogado na Fortaleza.
Em 1968, aos 14 anos, comecei a frequentar uma roda de artistas, alguns dos quais tinham que se apresentar, de vez em quando, no quartel local do Exército. O poeta Isnard Brandão Lima Filho, pai da minha geração de escritores, foi preso tanto na Fortaleza quanto no antigo presídio São José, em Belém.
Em 1971, houve uma grande mudança na minha vida. Eu cursava o quarto ano do antigo ginasial no Colégio Amapaense quando, juntamente com três amigos, criamos o jornal estudantil A Rosa (Bonitinha, mas ordinária). Meus amigos eram o poeta e contista José Edson dos Santos (Joy Edson), o jornalista Walter Júnior do Carmo e o advogado José Nazareno Nogueira.
O pasquim só circulou uma vez. Na época, o diretor do Colégio Amapaense era o professor Tinilo e o vice, professor Edgar. Fui submetido, pelos dois, a um inquérito que durou cerca de uma hora, eles e eu, numa sala fechada. Queriam saber onde o jornal fora datilografado e mimeografado. Não disse nada e peguei 15 dias de suspensão.
O governador, na época, era o general mato-grossense Ivanhoé Gonçalves Martins. O Palácio do Setentrião era separado do Colégio Amapaense por uma praça descampada e o governador gostava de olhar de binóculo para o colégio. Diziam que ele estava vigiando os alunos. Certa vez, o jornalista Haroldo Franco publicou no seu jornal, do qual, mais tarde, fui editor, uma foto do general Ivanhoé montado num cavalo, com uma legenda mais ou menos assim: O governador Ivanhoé Gonçalves Martins (o de cima) sai para uma blitz. Haroldo Franco teve que se esconder até as coisas esfriarem. Pois bem, enviaram A Rosa para Ivanhoé.
Na Secretaria de Educação, um amigo meu, Montoril, pai do poeta José Montoril, impediu, não me lembro mais como, que o jornal caísse nas mãos do general. Mas, naquelas alturas, eu andava desestimulado com a vida estudantil, e com a cidade. Em Macapá, naquela época, artista era tratado pela sociedade local como vagabundo, marginal mesmo (não sei se isso mudou).
Em dezembro daquele ano, 1971, publiquei, com Joy Edson e José Montoril, um livro de poemas, Xarda Misturada, e peguei a estrada, com apenas 17 anos e sem sequer carteira de identidade. Rodei por aí, Rio de Janeiro, Buenos Aires, Manaus, onde vivem parentes do meu pai, João Raimundo Cunha. Quando eu cheguei em Manaus, tinha 21 anos; era 1975, auge do regime dos generais.
Antes de pegar o rio e partir para Manaus, para conhecer meus parentes paternos, dei uma parada em Santarém (PA), onde meu irmão, Paulo Cunha, estava morando. Em Santarém, trabalhei como redator da antiga Rádio Clube, de modo que já me sentia jornalista, e, ao chegar a Manaus, entrei no primeiro jornal que encontrei, o Jornal do Commercio, então sediado na Avenida Eduardo Ribeiro, onde, e nada é por acaso, havia uma vaga para repórter policial.
Comecei no dia seguinte. Rotineiramente, cobria o Tribunal de Justiça e as delegacias de polícia, principalmente a Central, um casarão no centro da cidade, do qual guardei na memória o fedor de urina e de tortura. Ali, perpetrava-se todo tipo de barbaridade.
No Jornal do Commercio, uma vez meu amigo Wanderley Fortaleza escreveu alguma coisa, não me lembro mais exatamente o que, e a redação foi invadida pela Polícia Militar. Fiquei por pouco tempo no Jornal do Commercio e fui para A Notícia. No dia 31 de março de 1976, o então presidente Ernesto Geisel e ministros foram a Manaus inaugurar o Aeroporto Internacional Eduardo Gomes.
Quase toda a equipe de A Notícia foi escalada para cobrir a permanência de Geisel e comitiva em Manaus, o dia todo. Fazia parte da minha pauta entrevistar o ministro da Educação, general de brigada Ney Braga, e perguntar a ele se o Decreto 477, editado em 1969 e que enquadrava estudantes e professores que contrariassem o regime, ainda era necessário.
O diretor de redação de A Notícia, Bianor Garcia, foi claro comigo. Eu teria que perguntar ao general sobre até quando haveria necessidade da vigência do Decreto 477. Talvez porque não vivesse na sala do Bianor, puxando saco dele, eu sentia que ele queria se livrar de mim, pois a missão era impossível.
À noite, Ney Braga participaria de um encontro em um clube da alta sociedade no centro de Manaus, o Ideal Clube. Fui para lá com um gravador. Sentia-me meio condenado, mas com o estímulo do tudo ou nada. Posicionei-me num local por onde sabia que Ney Braga passaria e fiquei de campana. Não lembro quanto tempo esperei, mas o homem veio na minha direção e quando chegou a uma distância segura dei o bote.
Os seguranças foram pegos de surpresa, pois não dei tempo a ninguém. O gravador na mão, avencei para cima de Ney Braga, com a serenidade dos que não têm nada a perder, identifiquei-me como repórter de A Notícia e sapequei a pergunta. Jamais esquecerei aquele sujeito me olhando quase na minha cara como se quisesse me fuzilar com os olhos de gelo. Sustentei o olhar dele. Deus, como eu precisava do meu emprego.
– O Decreto 477 ainda tem razão de ser? – perguntei mais ou menos isso.
Os olhos dele tinham a opacidade dos olhos de tubarão, e guardavam uma espécie de tédio, o tédio do poder.
– Você é jornalista? – ele me perguntou. Eu não era jornalista de direito. Tinha parado na quarta série ginasial e só estava trabalhando como repórter porque naquela época ninguém ligava para diploma de jornalista, bastava que soubéssemos escrever. Eu sequer tinha o ensino básico completo. Só em 1982 é que, depois de fazer o Supletivo, comecei a cursar jornalismo, por pressão das empresas jornalísticas e do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Pará.
– Sou repórter de A Notícia – repeti.
– E o que é que você acha? Você acha certo a anarquia? – ele disse algo mais ou menos assim. – Por que você está preocupado com isso?
– Quero saber sua opinião, ministro – insisti.
– O que você acha do decreto? – ele redarguiu.
– Eu, nada, a pergunta é para o senhor – repliquei.
– Não se preocupe com isso – ele disse. Lembrava os generais do cinema, sempre acompanhados de uma comitiva.
A entrevista, que foi curtíssima, caiu na burocracia. O general, e seu labirinto, foram-se logo. Creio que ele encerrou a entrevista mais por enfado do que por pressa. Voltei iluminado para o jornal. Havia compreendido várias coisas, entre as quais é que quem está na chuva é para se molhar. Escrevi um boxe curto com a entrevista e conservei meu emprego, que, aliás, não durou muito tempo, pois me mudei para o jornal A Crítica, levado pelo futuro senador Fábio Lucena, que conheci no Clube da Madrugada e bebíamos no bar Caldeira.
Falar nele, depois que se elegeu senador e antes de se suicidar, certa vez eu estava em Brasília e fui procurá-lo no Senado. Ao me aproximar dele, um capanga que o acompanhava já ia sacar o revólver para me alvejar quando Fábio Lucena fez um sinal para ele avisando que eu era seu amigo. O próprio Fábio me disse que o capanga tinha ordem para matar quem se aproximasse dele sem ser convidado. Não passou muito tempo para que a paranoia se agravasse e ele se matasse.
Anos depois, o sargento paraquedista do Exército, Abílio Teixeira, que foi segurança de vários generais, me ensinou que um general é um homem como outro qualquer. A única coisa que o diferencia é seu uniforme. E um uniforme é só um uniforme. Aquela entrevista foi uma das melhores que já fiz, porque comecei, naquele momento, a entender, intuitivamente, que jornalismo é mais do que profissão; é a missão de desmitificar a realidade, essa dama escorregadia, que se move no pântano das trevas.
Foi em A Notícia que tive meus melhores momentos em Manaus como repórter. Certa vez, escrevi uma nota sobre rodoviários atacados por waimiris-atroaris na BR-174, a Manaus-Boa Vista. Por conta da nota, o Bianor Garcia foi chamado para dar explicações no Comando Militar da Amazônia. Não foi; mandou a mim.
Lembro-me que o coronel que chamara o Bianor Garcia não gostou de ver apenas o repórter, e de 21 anos, para dar explicações sobre uma “questão de segurança nacional”, mas me fez algumas perguntas e me liberou. Recriei esse episódio no conto A Grande Farra, publicado em livro homônimo, em 1992, em Brasília.
Durante todo o tempo em que trabalhei em A Notícia, o jornal esteve sob censura prévia. Todas as noites, um casal de agentes federais, casados mesmo, ia para uma sala contígua à redação e lia tudo o que sairia na edição do dia seguinte, cortando o que achasse que pudesse ofender o regime.
A Notícia foi uma escola para mim. Lá, conheci José Marqueiz, Prêmio Esso de 1973, por cobrir para O Estado de S.Paulo a expedição dos irmãos Villas-Bôas de contato dos índios kranhacarores, no Mato Grosso. Marqueiz era correspondente do Estadão e redator de A Notícia. Ele foi o primeiro a pavimentar meu texto jornalístico.
O Marqueiz e eu nos tornamos amigos. Batíamos muito papo no bar Amarelinho, na Avenida Getúlio Vargas, centro de Manaus. Quando fez a reportagem que lhe daria o Esso, ele contraiu malária e para combater o frio bebia. Tornou-se alcoólatra. Bebia pequenos tragos de Pitú, seguidos de chopp.
Certa noite, pernoitei na casa dele e no dia seguinte saímos cedinho. Paramos no bar de um português, no centro de Manaus, que Marqueiz frequentava, e ele me convidou para fazer o desjejum: um copo de Pitú na cintura, que ele sorveu de um só trago. Recusei. O máximo a que cheguei foi fazer desjejum com a maravilhosa Antarctica manauara.
Apesar de eu só ter 21 anos de idade, assinava uma coluna semanal em A Notícia, No Mundo da Arte. Nessa época, entrevistei muito artista importante, alguns em início de carreira, como Márcio Souza e Fafá de Belém, que era um exuberante furacão. Entrevistei vários monstros sagrados, como Grande Otelo, Nara Leão, Roberto Carlos. E conheci Jorge Amado, num encontro fortuito, nos arredores de Manaus. Roberto Carlos me marcou porque foi a pior entrevista que fiz na minha vida.
A produção do jornal conseguiu entrevista exclusiva com Roberto, que fora apresentar-se em Manaus, em 1976, e estava hospedado no Hotel Amazonas, centro da cidade. O chefe de reportagem instruiu-me a perguntar ao Rei se ele usava meia de mulher como touca, antes dos shows. Pergunta bizarra, mas que satisfaria o suposto perfil dos leitores do jornal, que tendia ao sensacionalismo. Tudo bem! O problema era que o gravador estava falhando, e isso foi meu terror, porque se chegasse à redação sem a entrevista meu destino estaria selado.
Fui fazer a entrevista. No hotel, fomos conduzidos, o fotógrafo e eu, ao corredor do apartamento do Rei, onde fomos recebidos por dois seguranças. Roberto não nos recebeu no apartamento, mas, depois de se arrumar, saiu do apartamento e me deu a entrevista no corredor.
O Rei é um sujeito carismático. Ele me deixou à vontade e eu me senti como se fosse velho amigo dele. Perguntei-lhe sobre o negócio da meia, assunto que fora objeto de revista de fofoca. Ele me respondeu numa boa. Eu prestava mais atenção ao gravador do que a Roberto, pois estava preocupado, vigiando o rolo de fita girando. Era um velho gravador de tamanho médio. Mais tarde, na redação, degravando a entrevista, vi o quanto ela foi burocrática. Mas tudo bem! Restou uma fotografia com o Rei, por insistência do fotógrafo, que se tornara amigo meu e queria me dar um presente.
Em 1977, mudei-me para Belém, onde trabalhei em O Liberal e depois em O Estado do Pará. Nessa época, trabalhei com dois mestres, um deles nada menos que Octávio Ribeiro, o Pena Branca, um dos maiores repórteres policiais do país. Em 1978, Pena esteve em Belém promovendo seu livro Barra Pesada, quando foi convidado pelo Oliveira Bastos, que foi um dos editores do Jornal do Brasil, para ser editor de polícia de O Estado do Pará, de Oliveira Bastos, mesmo que fosse por pouco tempo.
Na época, eu trabalhava em O Liberal e fui pautado para entrevistar Pena Branca. Ele gostou tanto da entrevista que me convidou para integrar sua equipe como redator. Para completar, o diretor de redação de O Estado do Pará era Walmir Botelho, um verdadeiro irmão para mim e meu mentor, outro mestre, com quem vim a trabalhar, mais tarde, no Correio do Brasil, em Brasília, e novamente em O Liberal.
Além da oportunidade de trabalhar com uma lenda, que era Octávio Ribeiro, e com um mago do jornalismo, Walmir Botelho, meu salário dobrou. Assim, deixei O Liberal, no qual voltei a trabalhar anos depois, quando o Walmir assumiu como seu diretor de redação, e fui para O Estado do Pará.
Passei a redigir a manchete de polícia e, às vezes, do jornal, assim como algumas chamadas de capa, a pedido do Walmir. Com Pena Branca aprendi a escrever de maneira objetiva e clara. Obrigado, Pena!
Mas, inquieto, não demorei muito em O Estado do Pará, e naquele mesmo ano, 1978, fui para Rio Branco, trabalhar no jornal Gazeta do Acre, comandado pelo Elson Martins, editor também do Varadouro, o mais famoso jornal de resistência ao regime militar produzido na Hileia. Tive, também, rapidíssima passagem pelo Varadouro, para o qual escrevi, em março de 1979, a matéria Roteiro da Prostituição, publicada, com chamada de capa, na edição 14 do Varadouro.
De volta a Belém, permaneci lá até 1987, quando me formei em Jornalismo pela Universidade Federal do Pará e mudei para Brasília. Em 2005, a Editora Cejup, de Belém, publicou meu romance A Casa Amarela, ambientado em Macapá, a partir de 1964.
Durante breve período, fui redator-chefe do semanário DF Notícias, em Brasília, onde conheci o sargento da reserva do Exército, Abílio Teixeira, que, em 2002, foi candidato a deputado federal. Fluminense, sargentão, paraquedista, assessor de ministro do Exército durante o regime militar, Abílio Teixeira não tem papa na língua. Escrevia uma coluna na qual descia o cacete no então presidente Lula Rousseff, que submetia os militares a um salário de fome. E também porque Lula não estava nem aí para a Amazônia. Os amazônidas que se lascassem. E ainda porque a infraestrutura do país estava desabando.
Um dia, um tenente do Comando Militar do Exército ligou para a redação e pediu para falar comigo, marcando a visita de um major. Eu sabia que era por causa dos artigos do Abílio. Na manhã combinada, recebi o major e seu ordenança na minha sala. A certa altura o major me perguntou se poderia ler, de antemão, os artigos do Abílio. O sangue subiu à minha face.
– Censura? – perguntei, irritado.
O major escorregou do galho, mas era bom de comunicação e, com habilidade, conduziu a questão para outro lado, perguntando se poderia consultar o arquivo do jornal. Sim, é claro que poderia, mas pus, de propósito, um obstáculo.
– É claro. Basta que o Exército encaminhe uma carta solicitando isso – disse.
O major se mexeu na cadeira. Não demorou a ir embora, dizendo que providenciaria o documento, e nunca mais soube dele.
Tive longos papos com o Abílio sobre assuntos da caserna, e me sinto grato a ele, porque foi decisivo no exorcismo do medo que eu acumulei acompanhando como repórter o regime dos generais, de modo a valorizar, a zelar, a lutar pela democracia plena, sempre.
Mas compreendo também que os militares atenderam a um pedido de socorro, pois os comunistas tupiniquins estavam prestes a sair do ovo da serpente nos moldes da extinta União Soviética, totalitária; de Cuba, que agoniza; e da Venezuela, que começava a enveredar por um caminho que a levaria à tragédia – hoje, o povo venezuelano, vítima do bolivarianismo, um engodo de Hugo Chávez Maduro, já comeu todos os seus cachorros e gatos e já pensa em comer cadáveres.
Foi nesse cenário que surgiu Lula Rousseff, que, nos anos 1990, instalou o Foro de São Paulo, reunindo hienas como Fidel Castro, e lançando as bases para começar uma ditadura comunista no Brasil. Em 2003, foi eleito presidente da República e começou, imediatamente, seu plano, por meio do patrimonialismo, do paternalismo, do populismo e do aparelhamento do Estado, aliando-se a todas as excrescências que rastejam, do Oiapoque ao Chuí; desqualificando as Forças Armadas, as escolas e as universidades; e assaltando a Petrobras e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
O movimento militar de 1964 recebeu o chamado e o apoio da maioria da sociedade brasileira, receosa de um golpe comunista, que é sempre totalitário e genocida. Mesmo assim, 21 anos depois, os ovos da serpente, infiltrados em todos os estames da sociedade, eclodiram, gerando corrupção em metástase. Hoje, a democracia está em perigo. Faz-se urgente impedir qualquer tipo de ditadura, principalmente a dos fabianos, que agem à sombra da legalidade.
A grande lição que aprendi nas duas décadas de um regime sufocante, mas que evitou algo pior, é que devemos lutar com unhas e dentes pela democracia, que é, em última instância, um exercício individual de amor ao próximo. Quando tomamos atitudes justas e altruístas, toda a Humanidade melhora, pois nenhum homem é uma ilha; somos, todos, um continente.
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