Quem teve a paciência de ler uma crônica publicada anteriormente neste espaço deve lembrar do personagem atormentado com uma ameaça particular: a de desaprender a escrever satisfatoriamente. Segundo ele, a ameaça havia surgido com a dispensa de suas obrigações como jornalista e acadêmico, depois de muitos anos de exercício dos dois ofícios. O personagem temia que a ameaça se concretizasse caso usufruísse por tempo indefinido da desobrigação que lhe fora oferecida como prêmio por aqueles anos.
Ainda atordoado com aquele prêmio, ele demorou a lembrar que, muitos anos antes, fora dispensado da mesma obrigação. E, curiosamente, isto não trouxe nenhum prejuízo a seu desempenho como produtor de texto. Ao contrário, deu-lhe liberdade para explorar melhor aquilo que conseguia fazer com as palavras.
Foi quando, o personagem teve de se afastar das obrigações de um repórter para poder cursar uma faculdade. E teve de trabalhar como revisor nos jornais.
Naquela oportunidade, ele havia encarado com ousadia a dispensa daquelas obrigações. Pois, estava livre da necessidade de escrever dentro dos ditames rígidos do Jornalismo, como se pode observar neste texto autobiográfico que escreveu, na época:
“Sem a obrigação de escrever, eu pude refletir na faculdade sobre aquele que – eu sabia – seria sempre o meu instrumento de trabalho, a linguagem verbal.Pela primeira vez eu via que podia trabalhá-la até alcançar um nível inadequado ao Jornalismo. Impressionado com a descoberta da especificidade da linguagem verbal poética (sua ambiguidade, seu poder de insinuação), eu comecei a fazer experiências. Por exemplo, escrevi numa resposta a um poema que uma colega, com quem flertava, mandara para mim:
Estas mãos trêmulas / que acendem os teus cigarros / esboçando no ar / figura de uma quase-vida, / inábeis, inquietas, despidas / de outras mãos / talvez, não percorreram / em teu corpo / o itinerário do amor, / mas serão sempre incapazes / de atirar algum adeus.”
Encantado, percebi que aos 25 anos de idade, havia conseguido criar um texto lírico.
Animado, quis afinar meu instrumento. Tentei o difícil caminho da densidade com concisão absoluta.
Sobre a necessidade das pessoas de se libertarem dos julgamentos que fazem delas, com frequência, escrevi ‘Sursis:
Despojar a / epiderme de / todos os olhares. / Trincar esta malha / de juízes, / e aflorar n’outra face’.
E, sobre a falta de expressividade de certos rostos bonitos
‘Rosto de Boneca.
Não desenha / emoções, / não ampulheta / o tempo. / As borboletas / pousadas num / rosto de boneca / fogem / com um simples bater-pestanas’.
Aquelas experiências não fizeram do personagem um poeta, embora seus textos tenham sido publicados por Álvaro de Farias no Suplemento Literário do “Diário de São Paulo”.
Mas, pelo menos, nestes textos, ele pôde encontrar ânimo, 50 anos depois, para ousar, em vez de se angustiar, com a desobrigação de escrever.
- Oswaldo Coimbra é escritor, jornalista e pesquisador