A última vez que vi Heitor Andrade foi pouco antes de ele morrer, em 2017. Ele estava morando na Editora Thesaurus, no Setor Gráfico. Fomos andando, naquela tarde, até a Pães e Vinhos, uma cafeteria na Quadra 103 do Sudoeste, a menos de um quilômetro da Thesaurus. Comemos pão torrado com manteiga e café com leite, e conversamos, como sempre, sobre tudo. Ele estava com 80 anos, mas era um garoto.
Curtia tudo, como só os poetas sabem fazê-lo. Adorava a noite, as luzes, as bebidas, as mulheres, o sol, e tinha aquele charme dos poetas que conseguem sentir cheiro de mulher trazido na aragem de leste. Heitor Humberto de Andrade, H2A, nasceu em Salvador, em 21 de junho de 1937, e morreu em Brasília, a cidade que adotou como sua, em 1 de dezembro de 2017.
Deixou publicados os livros: Corpos de concreto (Salvador, Imprensa Oficial da Bahia, 1964); Sigla viva (Rio de Janeiro, Grupo de Planejamento Gráfico Editores, 1970); 3×1: a matemática do poema (Brasília, Senado Federal, 1978 – Coleção Machado de Assis, 14); Nas grades do tempo (Brasília, André Quicé, 1994); Minha moldura é o Universo (Brasília, Siglaviva, 2012); O cão selvagem (Brasília, Siglaviva, 2013); Corpos de concreto (Brasília, Siglaviva, 2014); e Probabilidade do jogo (Brasília, Siglaviva, 2016).
A partir de 1970, são publicados os seguintes pôsteres-poemas: Sigla Viva e Só amo (1970; arte: Sami Mattar), Lirismo (1985; arte: J. L. Paula), Pequena Revolução Burguesa (1989; arte: Simone Queiroz), Vislumbre (1994; arte: Mônica Indig), A Mulher dos Meus Sonhos (2006; arte: Beto Sá), A Mario Quintana (2010; arte: Ilva Araujo), Momento (2010; arte: Marcos Design) e Delicadeza de Lorena (2013; arte: Renato Cunha).
Em 8 de março de 1985, o poema Lirismo foi ofertado pela Mane do Brasil, com tiragem de mil peças, distribuídas em todas as filiais da empresa no mundo, oferecidas aos grandes clientes como brinde da inauguração da fábrica. A matriz, francesa, foi fundada em 1871 e hoje é administrada pela quarta geração da família Mane.
Especializada na criação de essências aromáticas do perfumismo e produção de bebidas destiladas, a filial brasileira é sediada no bairro de Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro. O designer J. L. Paula criou, em 1960, para a Mane do Brasil, a arte para Lirismo.
No cartaz, o poema flutua juntamente com uma grande balança, frascos, garrafas e um almofariz: Havia um jasmineiro/lá em casa/florescia todo ano/Nem a fumaça que o envolvia/obscurecia sua alvura/aos olhos da rua /Ele brincava de florir/cuspindo todo mundo/com suas pétalas de perfume.
Em 2008, Heitor Andrade apresentou o monólogo dramático Teatro do Imprevisto, no Café com Letras, em Brasília.
Foi editor da revista O Pioneiro, do Clube dos Pioneiros de Brasília – dez edições, de 2000 a 2009, sempre em abril, mês de aniversário de Brasília. Diversos jornais e revistas publicaram reportagens, artigos, resenhas e poemas dele.
Desconfio que não sabia da sua idade, e nem queria saber. Parecia um monge. Era pequeno, seco, sua pele era rosada e seus olhos verdes. Escrevia poemas o tempo todo e tirava seu sustento do jornalismo. Amou muitas mulheres lindas e todas pelejaram para retê-lo, mas ele era indomável. Contudo, legou filhos e livros para o mundo. O fato é que só tinha compromisso mesmo era com a poesia. Lembra-me Pablo Picasso.
Não conheci Picasso, que nasceu em Málaga, Andaluzia, Espanha, onde veio à luz em 25 de outubro de 1881, e, aos 91 anos, em 8 de abril de 1973, após uma noite de trabalho, de infarto, em Mougins, na Côte d’Azur, França. Pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo, foi criador inesgotável, artista incansável e amante intenso da vida. Sei apenas, além do que li sobre Picasso, que ele, como Heitor, podia sentir o cheiro de mulher nua trazido pela aragem de leste.
Criador do cubismo, ao lado de Georges Braque, e inventor da escultura construída e da colagem, era prolífico como seu nome de batismo: Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno María de los Remedios Cipriano de la Santísima Trinidad Ruiz y Picasso. Era também bom marketeiro de si mesmo. Contava que nasceu morto, mas o médico, Don Salvador, o salvou, trouxe-o de volta à vida soprando-lhe fumo de um charuto na face, que o fez chorar, e viver. Gênios são assim mesmo, têm que viver.
Em 1968, aos 87 anos, já então uma das maiores celebridades do mundo, produziu em sete meses uma série de 347 gravuras, inclusive com temas da juventude. Aos 90 anos, o Museu do Louvre comemora o aniversário de Picasso com exposição na grande galeria. Era a primeira vez que que dispensavam esse tratamento a um artista vivo.
Na véspera de morrer, aos 91 anos, brindou com os amigos: “Bebam à minha saúde. Vocês sabem que não posso beber mais”. Depois foi pintar, até as 3 da manhã, antes de ir dormir. Acordou na manhã seguinte com dores no peito e não conseguiu se levantar. Poucos minutos depois sofria um infarto fulminante. Foi sepultado no Castelo de Vauvenargues, na Costa Azul, sul da França.
Marina Picasso, neta de Pablo, disse: “Ninguém na minha família conseguiu escapar do domínio da sua genialidade. Ele precisava de sangue para assinar cada uma de suas pinturas: o sangue do meu pai, do meu irmão, da minha mãe, da minha avó e o meu. Ele precisava do sangue daqueles que o amavam”. Picasso: “Para mim, existem apenas dois tipos de mulheres: deusas e capachos”.
Para Marina, o tratamento que seu avô dispensava às mulheres era parte vital de seu processo criativo: “Ele as submeteu à sua sexualidade animal, as domou, as embrulhou, as ingeriu e as esmagou em suas telas. Depois de ter passado muitas noites extraindo sua essência; uma vez que foram sangradas, ele iria se livrar delas”.
Cada homem vê a vida, e as mulheres, a seu jeito. São o que são. As mulheres que voam em torno desses homens o fazem por alguma razão. Há homens apagados em torno de quem nenhuma mulher sobrevoa. Outros, brilham tanto que matam as mulheres que voam na sua direção. E há homens que eles é que voam em direção a mulheres de luz. Como se vê, há todo tipo de voo.
Os gênios são sempre luminosos, mas sua luz não é necessariamente a dos santos e pode queimar, porque o sol, se nos expusermos a ele em um local muito alto e por muito tempo, ninguém resiste ao seu calor.
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