Às 17h30 de 11 de maio de 1982, o presidente João Figueiredo chegou à Blair House, a residência do secretário de Estado americano, Alexander Haig. Fazia 11 dias que os britânicos atacavam os argentinos nas Malvinas. Até então, o Brasil se equilibrara em uma neutralidade simpática à Argentina e buscava preservar as relações com o Reino Unido.
O episódio é relatado por João Roberto Martins Filho em seu livro O Brasil e a Guerra das Malvinas: entre dois fogos. Por meio de documentos ingleses e brasileiros, Martins Filho reconstrói um momento dramático da diplomacia brasileira: o alerta de Figueiredo aos EUA de que a posição brasileira poderia mudar em caso de ataque inglês à Argentina no continente.
“Naquele momento, o Brasil se comportou muito bem”, disse Martins Filho. O Estadão examinou o documento ultrassecreto do Itamaraty sobre o encontro de Figueiredo com Haig e a reunião, no dia 12, com o presidente americano Ronald Reagan. Acompanhavam Figueiredo o chanceler Saraiva Guerreiro, o general Danilo Venturini (titular da Casa Militar) e o embaixador em Washington, Antonio Azeredo da Silveira.
URSS. Além de Haig, ouviram Figueiredo os embaixadores Thomas Enders e Anthony Motley. Ele avisou que apreciava o estilo direto e disse que quem lucrava com a guerra era a URSS, que se aproximava da Argentina. “Não se pode perder a Argentina para a causa do Ocidente.” Figueiredo temia que o regime de Buenos Aires fosse desestabilizado, e o poder passasse aos peronistas e, depois, aos comunistas.
O presidente afirmou que era um erro os EUA ajudarem a Inglaterra, pois a Argentina, em seu direito à sobrevivência, apelaria ao Brasil. E também à URSS. “A ideologia tem força menor que a nacionalidade.” E prosseguiu: “O que temos de entender é que as Malvinas não podem ser motivo de uma crise mundial. Inglaterra e Argentina são países amigos e aliados. E ambos perderam a razão.”
Antes de se despedir, Figueiredo disse a Haig que só tinha uma preocupação: a Inglaterra atacar no continente, o que teria repercussão desastrosa na América do Sul. “É necessário que essa hipótese seja evitada a todo custo.” Haig disse que essa era a opinião americana e trataria disso com a primeira-ministra inglesa Margaret Thatcher. “Se acontecer o pior, certamente a solidariedade americana eclodirá”, afirmou o brasileiro.
No dia seguinte, Reagan disse que a disputa pelas Malvinas era “ridícula”. “Não vale a vida de um homem.” Ele contou a conversa com Figueiredo a Thatcher, mas evitou falar da ameaça do brasileiro. “Reagan deve ter achado que isso a ofenderia e arruinaria o diálogo”, escreveu Martins Filho. Em suas memórias Thatcher cita a conversa.
FROTA. Durante o conflito, o Brasil procurou se equilibrar entre os beligerantes. Quando os ingleses enviaram a força-tarefa para recuperar as ilhas, os ingleses temiam cruzar no Atlântico com um submarino brasileiro e confundi-lo com um argentino.
O embaixador inglês George William Harding procurou o chefe do Estado-Maior da Armada, o almirante José Gerardo Albano de Aratanha, em sua casa, em Brasília. Pediu que os submarinos brasileiros não se afastassem mais do que 500 milhas da costa. Martins Filho revela que o britânico registrou que Aratanha disse “sem hesitação que poderia assegurar que nenhum navio da Marinha operaria fora das 200 milhas do mar territorial brasileiro”.
Ao retirar as embarcações do caminho, o Brasil permitiu aos ingleses a certeza de poder identificar como inimigo quem estivesse na rota. Concedia essa vantagem tática aos ingleses, ao mesmo tempo que fornecia aviões Bandeirante de reconhecimento aos argentinos. Ou ainda permitiu que um avião cargueiro Ilyushin, com ajuda militar de Cuba, prosseguisse para Buenos Aires após interceptá-lo. Informou, porém, ao adido militar inglês o que ele transportava: material de comunicação. Assim o Brasil se equilibrou até o fim da guerra.
Brasil montou rede de espiões na Argentina na Guerra das Malvinas
O governo militar brasileiro montou em 1982 na Argentina, durante a guerra, uma “Rede de Busca de Informações” sobre o confronto entre o país vizinho e o Reino Unido, indicam documentos do Estado-Maior das Forças Armadas guardados no Arquivo Nacional (AN).
O País também aproveitou o pouso de bombardeiro britânico Vulcan, no Rio, para se apossar de um míssil antirradar Westinghouse AGM-45 Shrike, desmontá-lo e examiná-lo antes de devolvê-lo aos britânicos.
Nos documentos do Estado-Maior das Forças Armadas fica claro que o objetivo do esquema montado na Argentina – quase um mecanismo de espionagem, envolvendo adidos e oficiais do Brasil que faziam cursos em escolas castrenses argentinas – era burlar a censura da ditadura local que, ironicamente, é criticada pelos brasileiros em relatório. Na época da disputa bélica pelo arquipélago no Atlântico Sul, que faz 40 anos, brasileiros e argentinos – estes sob estado de sítio – viviam em ditaduras. Na Argentina, toda informação era controlada pelo governo.
“Para contornar esse óbice é que se estabeleceu, além dos contatos normais com os setores de Inteligência (Informações) dos E.M. (Estado Maior) de cada uma das Forças argentinas – normalmente evasivas e reticentes -, um entrosamento mais estreito com outros adidos militares confiáveis, que se mostravam mais ativos e dinâmicos no acompanhamento do conflito”, diz o documento 1982/1983 – Operação Rosário (cont ) – Retomada das Ilhas Malvinas. Rosário era como os argentinos designavam a invasão das Ilhas Malvinas (Falkland, para os britânicos), Sandwich do Sul e Geórgia do Sul, em 2 de abril de 1982.
O documento descreve a rede: “Contou-se com a valiosa colaboração dos nossos oficiais-alunos matriculados nas escolas de Estado-Maior do Exército e da Aeronáutica da Argentina, do oficial do SNI junto à Side (Secretaria de Inteligência), bem como de jornalistas brasileiros e estrangeiros, representantes de jornais e revistas do Brasil e outros países, os quais acorriam à nossa embaixada, para avaliação de suas análises e estimativas do conflito”.
EUFORIA. Foram oficiais-alunos brasileiros que fizeram chegar ao Brasil, então comandado pelo general João Figueiredo, informações sobre a euforia que tomou a Escola Superior de Guerra após a ação argentina. Na escola, diz o documento, “professores não conseguem esconder seu entusiasmo e chegam a dizer que o governo revolucionário havia sido legitimado pela derrota ao terrorismo e pela recuperação das Malvinas”.
Um mês após a invasão, começou a operação inglesa de retomada das ilhas. O Brasil ajudou os argentinos, com inteligência e armas, mas procurou manter um bom relacionamento com o Reino Unido. O relatório conta que, na noite de 26 de março de 1982, a Junta Militar se reuniu. Seus membros eram o general Leopoldo Galtieri, chefe do Exército e presidente da República; o brigadeiro Basilio Lami Dozo, pela Aeronáutica; e o almirante Jorge Isaac Anaya, pela Marinha. O ministro das Relações Exteriores, Costa Méndez, participou do encontro secreto.
Nele, foi tomada a decisão de desencadear a operação para retomar as Malvinas. O arquipélago estava sob domínio do Reino Unido desde o início do século 19. Mas os argentinos o reivindicavam. “O plano era um ‘segredo do Estado’, só conhecido pelo Estado-Maior Conjunto e pelos Comandantes em chefe”, relata um adido da Força Aérea Brasileira (FAB), que descreve problemas de planejamento, questões políticas e até um pouco do ambiente de sonho vivido pelos argentinos com a invasão.
“Nem os oficiais-generais dos Estados-Maiores das Forças Singulares tinham ciência. A falta de conhecimento, por parte dos demais escalões das Forças, foi um fator muito negativo, pois uma série de providências deixaram de ser tomadas.”
MULTIDÃO. O cenário interno se agravava, com manifestações sindicais. Em 1.º de abril, poucos apostariam na permanência de Galtieri no poder. No dia seguinte, os argentinos foram surpreendidos. “Galtieri conseguiu reunir impressionante multidão na Plaza de Mayo e falou ao povo. (…) Congregou a Nação, e a fez crer que derrotar a terceira potência mundial era possível.”
Informações obtidas no Estado-Maior da Aeronáutica local apontavam, segundo a documentação, que, “no dia da invasão, 2 de abril de 1982, a operação (Rosário) estava prevista para maio ou junho, quando as condições climáticas seriam mais desfavoráveis aos ingleses”.
Na época, durante a Guerra Fria, os militares argentinos dedicavam-se à repressão política – estima-se que até 30 mil pessoas tenham desaparecido. Mas a precariedade dos meios militares para um confronto externo, especialmente com tropas profissionais de uma potência como o Reino Unido, era óbvia e desaconselharia a aventura. “Foi mal interpretada a posição dos EUA”, diz o documento.
“A colaboração da Argentina na conturbada região da América Central (assessores militares treinando os contras da Nicarágua) levaria a pressupor que o governo americano forçaria a saída diplomática.” Esperava-se que a ação sem derramamento de sangue fizesse o Reino Unido negociar. “Não foi estimada a reação inglesa.”
URÂNIO. Martins Filho trata de outra forma por meio da qual o Brasil obteve informações da Argentina. O País teria decifrado o código das comunicações criptografadas da chancelaria do país vizinho. Entre as principais preocupações estava obter informações sobre a ajuda da URSS, de Cuba e da Líbia de Muamar Kadafi à Argentina.
A Líbia teria se comprometido a enviar mísseis soviéticos SAM-6 e SAM-7 por meio da rota Trípoli, Ilhas Canárias, Recife e Buenos Aires. Cinco voos em Boeings 707 da Aerolíneas Argentinas foram feitos e mais de uma centena de mísseis, entregues. Os brasileiros vigiavam ainda o programa nuclear argentino. O Centro de Informações da Marinha informou que a negociação da Argentina com a URSS previa o envio de cem quilos de urânio enriquecido a Buenos Aires. Temia-se o estabelecimento de bases russas no país.
Ao mesmo tempo que vigiavam os argentinos, os brasileiros aproveitavam uma oportunidade única da guerra: a captura de um míssil AGM-45 Shrike, de fabricação americana. Ele estava em um bombardeiro Vulcan que pousou no Rio em 3 de junho por não conseguir se reabastecer em voo. O avião voltava das Malvinas, onde disparara dois mísseis e bombardeara o aeroporto de Port Stanley, capital da ilha, e ia à base de Ascensão.
A tripulação tentou se livrar de material sensível. Jogou no mar um Shrike, mas o outro ficou preso, com a ogiva ativada. Ao pousar no Rio, o avião foi retido, a pedido da Argentina. Após negociações, os brasileiros concordaram em liberar o Vulcan, desde que desarmado.
O míssil foi retido. À pressão inglesa para reavê-lo juntaram-se os EUA. Martins Filho mostra a razão da preocupação dos dois países: tratava-se de arma com sistema moderno de guiagem. E os brasileiros poderiam xeretá-lo. Foi o que aconteceu. Londres enviou mensagem ao seu embaixador no Brasil, George William Harding. “Você deve estar ciente das notícias de que podem estar mexendo com o míssil.” Cópias foram enviadas a Washington, ao Ministério da Defesa inglês e à Inteligência da Royal Air Force
Ou seja, o serviço secreto inglês estava sendo informado sobre a ação dos brasileiros, revelada pelo jornalista Roberto Godoy por meio de fontes da FAB. Godoy escreveu no Estadão que o míssil foi examinado por peritos da Aeronáutica. O equipamento foi desmontado em segredo – o Brasil buscava desenvolver seu primeiro míssil. Além de Harding, o embaixador americano, Anthony Motley, pressionou o País. Após vários adiamentos, a arma foi entregue em segredo à Inglaterra em 6 de julho, 22 dias após a rendição argentina. (AE)