O juiz Lucas do Carmo de Jesus, da Vara Única da Justiça Militar do Pará, decretou a prisão preventiva dos cabos da Polícia Militar André Pinto da Silva, Dionatan João Neves Pantoja, Wagner Braga Almeida e Ismael Noia Vieira, acusados pelos crimes de sequestro e tortura contra o jovem Mateus Gabriel da Silva Costa, de 18 anos, no dia 3 de fevereiro deste ano, em Xinguara, no sudeste paraense. O jovem está desaparecido. O juiz atendeu a pedido fundamentado na denúncia apresentada pelo promotor militar , Armando Brasil.
O jovem saiu de casa em sua moto para jogar bola e nunca mais foi visto. As investigações da Polícia Civil revelaram que o rapaz fugiu de uma abordagem policial militar, por estar com o escapamento da moto aberto, fazendo barulho, e acabou alcançado, sendo agredido e sequestrado pelos quatro cabos, em uma viatura da PM.
A denúncia contra os quatro cabos da Polícia Militar foi feita pelo promotor de justiça militar Armando Brasil, com base em depoimentos de testemunhas e de imagens de câmeras de segurança juntadas ao processo.
“Recebo a denúncia oferecida pelo Ministério Público em face dos denunciados para que respondam pelos crimes de tortura e sequestro, tipificados, respectivamente, nos artigos 1º, I, “a”, § 4º, I, da Lei 9.455/97, e 225, § 1º, III, do Código Penal Militar. Havendo prova da materialidade e indícios de autoria, como garantia da ordem pública, por conveniência da instrução criminal, em razão da periculosidade dos denunciados e para manter as normas e princípios da hierarquia e disciplina militares, com fundamento nos artigos 254 e 255, alíneas “a”, “b”, “c” e “e”, decreto a prisão preventiva dos mesmos”, decidiu o magistrado.
Também a pedido de Armando Brasil, o juiz autorizou a busca e apreensão dos celulares pertencentes aos denunciados, com acesso imediato aos dados relacionados aos seus conteúdos, incluindo acesso a conversas de aplicativos de comunicação, fotografias, áudios, inclusive o que estiver em “nuvem”, do que for de interesse da investigação. A decisão é do último dia 29 de março.
O inquérito policial foi instaurado pelo delegado José Orimaldo Farias, da Polícia Civil de Xinguara, município da Região do Araguaia, para investigar o desaparecimento de Mateus Gabriel Costa, em 3 de fevereiro deste ano, por volta de 23 horas.
Dois dias depois do desaparecimento, a mãe do rapaz, Zeli Aparecida Ribeiro da Silva, procurou a Delegacia de Xinguara e registrou um boletim de ocorrência, noticiando o fato,
O delegado iniciou as investigações e descobriu que no dia do seu desaparecimento, por volta de 23h30, o jovem foi preso por policiais militares no beco da Baiana, que liga a rua Gorotire com a rua Duque de Caxias, na sede do município.
Em depoimento à polícia, os moradores Maria Helena da Silva Lopes, Lucas da Silva Lima e os irmãos Franciel e Francilei da Silva Caixeta e Wdson Francisco Abreu dos Santos, além de um menor de idade, falaram que o jovem foi visto saindo de um jogo de futebol, com um amigo na garupa da moto, e sendo perseguido, interrogado e agredido pelos policiais militares.
Imagens mostram viatura da PM
Câmeras de segurança de prédios comerciais e de residências localizadas pela Polícia Civil mostram Matheus Gabriel Costa, por volta de 00:20 da madrugada de 4 de fevereiro, deixando o carona da moto na casa dele (amigo), tendo em seguida partido pela rua Gorotire. As imagens também mostram ele sendo seguido por uma viatura da PM até ´beco.
Em outra imagem é possível ver, segundo a denúncia, a mesma viatura passando novamente pela rua Gorotire, por volta de 00h36 daquela madrugada, desta vez com o jovem dentro, sendo agredido.
Constam ainda do processo imagens de uma câmera instalada na casa de um morador da rua Gorotire, que revelam que, por volta de 00:41h, uma viatura da PM passa pelo local, acompanhada de duas motocicletas.
Diante de dificuldades enfrentadas pelo delegado de Xinguara, houve pedido de auxílio à Delegacia de Homicídios de Marabá, cujo delegado, Toni Rinaldo Vargas, obteve novos elementos comprobatórios do envolvimento dos quatro militares nos crimes.
No local de crime foi possível ter a percepção do ambiente dos acontecimentos narrados pelas testemunhas, assim como notória a possibilidade da captação de gritos e pedidos de socorro, o que foi de forma unânime apresentado pelas pessoas inquiridas.
Violência para extração de informações
“Da análise dos elementos, concluiu a autoridade policial, conclusão esta compartilhada por este órgão ministerial, na presente peça exordial acusatória, que, de fato, na data de 03/02/2021, a vítima cruzou com a viatura policial e, tendo sido vista, a GU começou acompanhamento para abordagem devido à utilização de cano de escapamento de motocicleta aberto, popularmente conhecido como “cadron”, que produzia excessivo ruído”, diz a denúncia de Armando Brasil.
O promotor percebeu que “tais rotas foram consubstancias em degravação das imagens captadas pelas câmeras de vigilância colhidas pela equipe policial local, as quais demonstram claramente o acompanhamento da viatura policial à motocicleta pilotada por Mateus Gabriel da Silva Costa, o qual, ao entrar no beco, com a finalidade de fuga, acabou por ser capturado pela GU em questão”.
Há também áudios da dinâmica dos fatos, gravados por pessoa não identificada, que foram compartilhados em diversos grupos de WhatsApp de moradores da região, que foram colhidos e degravados pela equipe da Delegacia de Homicídios de Marabá.
“Por sua escuta percebe-se violência para extração de informações, ao que parece, acerca de drogas, o que teria perdurado por cerca de vinte minutos, conforme testemunhas, demonstrando, assim, atos de verdadeira tortura para com a vítima em questão”, aponta a denúncia.
Testemunhas anônimas, que mantiveram as identidades preservadas, afirmaram que a abordagem policial realizada em Mateus Gabriel Costa teria sido por excessivo ruído da moto e suspeita de roubo, além dos policiais militares perguntarem onde o jovem teria se “desfeito de drogas”.
Estas testemunhas, num depoimento mais esclarecedor, afirmam que escutaram muitas agressões, gritos, gemidos, pedidos para parar, inclusive com barulho da utilização de instrumento que foi chamado de estaca (pedaço de madeira) por cerca de 20 minutos.
Por fim, segundo as testemunhas, o rapaz foi colocado no camburão, a motocicleta saiu na frente, pilotada por um policial militar e a viatura seguiu atrás, saindo do beco da Baiana com destino à rua Raul Bop, em direção à BR 155. Nunca mais o jovem foi visto. Também a moto sumiu.
O caso teve repercussão nacional, ganhando destaque na revista Piauí.
Veja alguns trechos da matéria publicada pela revista Piauí:
Passava pouco das 21h30 horas quando Mateus Gabriel Silva Costa, 18 anos, pegou sua moto Honda CG Start, comprada após poupar quase dois anos de salário como funcionário do posto de gasolina Primavera, e avisou a mãe que ia jogar bola no setor Jardim Tropical, periferia de Xinguara (PA). Corria 3 de fevereiro de 2021. Foi a última vez que Zely Aparecida Ribeiro da Silva, 41 anos, viu o filho. Depois do futebol, Mateus deu carona a um amigo e, na sequência, iria para casa. Desapareceu sem que até hoje se tenha notícia dele.
Seu caso é mais um dos 76.418 registros de pessoas desaparecidas que constam do Sistema Nacional de Localização e Identificação de Pessoas (Sinalid), produzido pelo Ministério Público brasileiro, o maior banco de dados do tipo no país. Os dados mostram o acumulado de casos reunidos no sistema desde 2010, quando o Sinalid passou a ser sistematizado, até o dia 24 de março deste ano. Há desaparecimentos ocorridos antes desse início da coleta de dados, e o mais antigo é de 1945. Dos desaparecidos listados no banco, 60,95% são homens, 55,61% são negros (pretos e pardos) e 43,89% são brancos. As faixas etárias em que há mais registros de desaparecidos são de 12 a 17 anos (31,73%) e de 36 a 65 (24,22%). A faixa etária de Mateus (18 a 25 anos) corresponde a 17,6% dos registros.
No estado do Pará, segundo o monitoramento, há registro de apenas 37 pessoas com paradeiro desconhecido. Em São Paulo, o Ministério Público fala em mais de 38 mil desaparecidos desde 2010. O Sinalid estima que, em dez anos, mais de 700 mil pessoas tenham desaparecido no Brasil, o que torna o banco um recorte de um problema muito maior. Segundo a Coordenadoria do Plid (Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos) do Ministério Público do Rio de Janeiro, que integra o Sinalid, a base depende da colaboração das secretarias de Segurança Pública dos estados. Até 23 de março deste ano, 58.003 casos ainda estavam sob investigação e 11.414 tinham sido finalizados, seja com a localização da pessoa ou do corpo.
Em sua versão 2019, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública também usou os dados do Sinalid para tratar do desaparecimento de pessoas. Indicava que 79.839 pessoas foram declaradas desaparecidas naquele ano, e 39.120 foram encontradas. A taxa nacional de desaparecidos é de 38,2 a cada 100 mil habitantes. Os estados com as maiores taxas de sumiços eram Rondônia (115,3), Distrito Federal (93,8) e Rio Grande do Sul (77,2).
Na manhã de 5 de fevereiro, depois de 36 horas sem ver o filho, Zely Silva registrou na Delegacia de Polícia de Xinguara o desaparecimento dele. O boletim de ocorrência foi lavrado pelo delegado José Orimaldo Silva Farias. O amigo de Mateus, que voltou de carona com ele para casa, disse em depoimento que, ao fechar o portão, viu o rapaz ser seguido de carro por policiais militares do 17º Batalhão da PM. Segundo a investigação, na viatura 1703 estavam os policiais militares Wagner Braga Almeida, André Pinto da Silva, Dionatan João Neves Pantoja e Ismael Noia Vieira. No inquérito, testemunhas afirmaram que Mateus teria sido abordado por volta das 23h30, espancado e colocado dentro do carro policial.
Uma moradora da região enviou dois áudios a uma amiga pelo WhatsApp em que é possível ouvir, ao longe, gritos desesperados. As gravações acompanham a seguinte mensagem: “Aqui do lado nesse beco mesmo. Vai bater no homem de estaca. Parece que roubou a casa de um policial em Rio Maria. O trem tá feio aqui do lado de fora. Misericórdia”. Os áudios e as mensagens foram juntados ao inquérito. Além de Mateus, o paradeiro da moto também é um mistério.
Apesar de o Brasil ser signatário dos tratados internacionais e do histórico de desaparecimentos – em tempos de ditadura e de democracia – até hoje esse tipo penal não é apontado pelo Legislativo brasileiro. Em linguagem legal, diz-se que o crime não é tipificado no Brasil. A falta de tipificação dificulta não só a investigação dos casos como a construção de uma base de dados sobre as vítimas. A partir da cobertura jornalística de alguns casos, é possível inferir que as vítimas são preferencialmente jovens negros e pobres de periferia.
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