Prefeito de Belém afirma que obra é “aberração” e “estupro” contra a cidade. Atacadão diz que “seguiu todas as exigências das autoridades, incluindo as mudanças solicitadas pelos órgãos competentes” e assinala que já gerou “mais de 4 mil empregos no Pará“.
Dois prefeitos, uma obra privada e grande impasse. Motivo: a altura do prédio, cujo gabarito de construção na área previa 7,5 metros. Ocorre que a empresa dona da obra aumentou para 9 e depois, ainda mais, para 12,5 metros. Tudo com o aval da prefeitura de Belém. Para tumultuar o meio de campo, o Ministério Público, que ficou dividido no caso, apareceu com um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), legitimando a alteração feita na altura.
Esse TAC do fiscal da lei foi aprovado pela prefeitura e pela empresa, que pagou R$ 1,5 milhão à Secretaria de Urbanismo para que a construção passasse de 7 para 9 metros. A questão, por fim, foi transformada pelo MP em ação civil pública por improbidade administrativa contra o primeiro prefeito, Zenaldo Coutinho (PSDB) e outros agentes públicos que deram o aval para as alterações feitas na obra, quando ela passou de 9 para 12,5 metros, além de outros parâmetros da área urbana. Aí, para entornar o caldo, entrou em cena a Defensoria Pública do Estado, alegando interesse na causa das comunidades vulneráveis do entorno da obra.
Zenaldo e seus auxiliares deixaram o poder e a construção do prédio do Atacadão, na área conhecida como Portal da Amazônia, continuava a todo o vapor, sem susto. O prédio, enorme, foi erguido e a obra finalizada. Hoje, está pronta para inauguração e funcionamento. O Atacadão contratou funcionários e montou um estoque considerável de mercadorias. Estoque que vai aumentando a cada dia, com a chegada a Belém de carretas trazendo produtos de São Paulo, onde fica a sede da empresa, pertencente ao grupo Carrefour, um dos maiores da América Latina.
A chegada do prefeito Edmilson Rodrigues (PSOL) ao poder mudou o jogo político e as pressões aumentaram de tamanho – inclusive de diversos vereadores favoráveis à inauguração do empreendimento comercial, em contraposição à postura de vereadores de partidos de esquerda, visceralmente contrários – para liberação do “habite-se” ao Atacadão. Como não há nenhuma medida judicial embargando a obra, ela pode ser inaugurada. Depende, porém, de decisão administrativa. Em resumo, de canetada do prefeito Edmilson Rodrigues.
” É uma aberração essa obra, um estupro contra a cidade”, afirmou Edmilson com exclusividade ao Ver-o-Fato. O prefeito declarou ainda que, se depender dele, o grupo multinacional não terá o documento que o habilitaria a abrir as portas e funcionar no comércio atacadista da cidade. “Na gestão passada, não houve licenciamento ambiental, o Conselho não reuniu. Então, tivemos muitas situações para negar a concessão do habite-se”, explicou Edmilson, acrescentando que recente “fato novo” o deixou “mais à vontade” para tomar a decisão de não liberar o funcionamento do Atacadão.
O prefeito foi taxativo ao dizer que, agora, “a palavra está com o Ministério Público, que tem uma função muito importante, mas que às vezes tem extrapolado essa função”. No caso específico da obra do Atacadão, Edmilson argumenta que o MP não deveria ter aceitado “qualquer extrapolação de altura, porque um pavimento a mais já era um absurdo”. E mais: “de 7,5 metros foi para 12,5 metros. Aí, fica inviável. Eles teriam que demolir para adaptar a altura, se quiserem iniciar um novo processo de licenciamento. Fora isso, não tem como (liberar) “.
Recentemente, de acordo ainda com o prefeito, o Conselho Municipal do Meio Ambiente não aprovou o licenciamento da obra. “Deixamos isso claro no documento enviado à Justiça, porque não estamos concedendo o habite-se. Não tem como legitimar uma obra, mesmo que ela tenha sido feita obediente ao TAC”, resumiu.
Juiz: sem TAC e sem Defensoria
O tal “fato novo” ao qual Edmilson se refere é uma decisão do juiz da 2ª Vara da Fazenda da Capital, João Batista do Nascimento, lavrada no dia 8 de junho passado e obtida pelo Ver-o-Fato. Para rejeitar a entrada da Defensoria Pública no processo, o magistrado alegou que, com alteração da lei, feita por outra lei, “à Defensoria Pública foi conferida a legitimidade para a propositura de ações civis públicas, com a constitucionalidade reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 3943, mas a extensão dessa prerrogativa não alcança as ações de improbidade administrativa, seja porque para essas a legitimidade se restringe ao Ministério Público e/ou à Fazenda Pública, seja porque é imperioso a condição de vulnerabilidade dos representados/assistidos, nos exatos termos do art. 134, da Constituição Federal”.
Segundo ainda o juiz, o espectro mais amplo acerca da legitimidade da Defensoria Pública para entrar no caso como litisconsorte processual, sob a condição de fiscal dos vulneráveis, “reclama nova alteração legislativa a permitir a intervenção nas ações específicas de improbidade administrativa, com alteração, de igual modo, do texto constitucional para dar nova conformação às atribuições”.
Ele também considerou que a ação na qual a Defensoria pretende ingressar se limita “à alegação de descumprimento de normas de cunho estritamente administrativo, sem alcançar direitos de vulneráveis, não havendo justificativa para a intervenção da Defensoria Pública, por isso indefiro o pedido’.
Sobre o TAC, o juiz assim se manifestou: “também rejeito a homologação do acordo, tanto pelo fato de não ter sido entabulado com nenhum dos réus, como pelo teor da Cláusula Décima Quarta que lhe nega vigência ao transferir sua validade ao acatamento das razões contidas nas defesas preliminares, que obviamente não pode vincular o Juízo”.
Resumo da ópera
Se a obra era ilegal desde o começo, cabe a pergunta: por qual razão, antes do aparecimento do TAC, ela foi liberada pela gestão anterior, inclusive aceitando as mudanças na altura do prédio? Por conta disso, hoje, pronta para inaugurar e sob grande expectativa de geração de centenas de empregos, além de renda para pequenos e médios comerciantes, numa época de economia combalida, por quê manter o embargo administrativo?
Mais do que qualquer motivação política, o que está em jogo é o interesse social e os impactos, passíveis de contrapartidas, do empreendimento. De resto, que a Justiça cumpra seu papel de dizer se houve irregularidades e, em caso positivo, quais punições a aplicar aos supostos infratores.
Com a palavra, o Atacadão
O Ver-o-Fato procurou a direção do Atacadão, em São Paulo, para saber qual a posição da empresa diante do imbroglio provocado pela obra no Portal da Amazônia. Veja, abaixo, a resposta:
“O Atacadão informa que a nova unidade em Belém encontra-se pronta para iniciar a operação, com todos os colaboradores já contratados, resultando em mais de 600 empregos diretos e indiretos. A empresa segue avançando nas tratativas com a prefeitura para realizar a abertura da loja o mais breve possível.
Durante todo o processo de construção da nova unidade, o Atacadão seguiu todas as exigências das autoridades, incluindo as mudanças solicitadas pelos órgãos competentes após apresentação do Estudo de Impacto da Vizinhança (EIV). Desde 2013, o Atacadão emprega mais de 4 mil pessoas direta e indiretamente no Pará, alocados em 9 unidades da rede, e contribuindo para o desenvolvimento da economia local, para o crescimento de empreendedores e produtores locais e para a geração de empregos.
Em Belém, onde a empresa já conta com 1 loja de autosserviço e um centro de distribuição, serão mais de 1500 empregos gerados com abertura desta nova unidade do Atacadão, que atualmente emprega mais de 60 mil colaboradores em 233 unidades de autosserviço e 31 atacados de entrega, presente em mais de 160 cidades no país.”
Entenda as tramitações do caso:
- Em 20/10/2020 foi firmado Termo de Ajustamento de Conduta entre Ministério Público e Atacadão S.A, SEURB e FUMBEL;
- Licença de Instalação nº 181/2020 emitida em 14/12/2020
- Alvará de Obra nº 0495/2020 emitido em 21/12/2020
- Em 17/02/2021 manifestação da SEURB, mediante o Ofício nº 157/2021, encaminhou a Nota Técnica nº 001/2021 do Departamento de Análise de Projetos e Fiscalização, evidenciando que foram cumpridas as exigências e atendidos os índices normativos da LCCU; cumprido o Plano de Logística, Licença de Instalação nº 181/2020 da SEMMA; efetuado o pagamento da compensação ambiental; e emitido o alvará de obra, em favor do Atacadão S.A.
- Em 07/05/2021 o setor de engenharia do Grupo de Apoio Técnico Interdisciplinar do MP ao analisar o projeto arquitetônico, o plano de logística de abastecimento, os comprovantes de depósito, a licença de instalação e o alvará de obras do empreendimento, expediu análise técnica concluindo que o compromissário Atacadão S.A cumpriu as obrigações previstas no Termo de Ajustamento de Conduta celebrado junto ao órgão ministerial e ao Município de Belém.
- Em 14/05/2021 a PGM manifestou que será sobrestada a liberação do habite-se até que haja a análise do licenciamento pelo CONSEMMA e aprofundamento do exame do zoneamento ambiental pela SEMMA, bem como em razão da ACP movida pela Defensoria Pública.
- ACP proposta pela Defensoria Pública – com pedido liminar para embargo da atividade; para que não seja expedida Licença de Instalação; suspensão da exequibilidade do TAC; e pedido de apresentação de documentos pelo município – a liminar está pendente de apreciação e o juízo se julgou incompetente remetendo ao juízo da Ação de Improbidade Administrativa.
- Na Ação de Improbidade Administrativa o juiz rejeitou a homologação do acordo, por não ter sido firmado com nenhum dos réus e por não ser possível vincular a validade do TAC ao acatamento das razões contidas nas defesas preliminares, que não pode vincular o Juízo.