Na Amazônia é comum se criar imagens fantasiosas sobre os nossos complexos problemas. Dizia o amigo e jornalista Jaime Bevilaqua que, ‘muita gente por aqui sobrevoa o território paraense e logo escreve um livro sobre a Amazônia’. Pessoas sem densidade acadêmica e experiência para discorrer sobre as complexas relações humanas, sociais e econômicas que se passam pelas bandas daqui, outras, ao contrário, trazem a investigação séria , como a professora Violeta R.Loureiro que na sua obra ‘A Amazônia no século XXI, novas formas de desenvolvimento’ faz uma abordagem profunda dos nossos problemas e desafios.
No caso do Marajó, cujo tema foi citado por uma jovem cantora gospel, comentando a trágica realidade da exploração e do abuso sexual de crianças e adolescentes nessa região nota-se que, apesar da boa fé em abordar um tema importante, ela não conhece a realidade local. O Marajó não é uma ilha, como diz a jovem.É um arquipélago constituído de mais de 2 mil ilhas e ilhotas que abriga 16 municípios.Ele não fica a 5 minutos de Belém e sim a mais de 15 horas em caso das cidades de Chaves e Afuá, na fronteira do Amapá.
Me atrevo comentar esse tema pelo fato de ter proposto e conduzido em 2009 uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Alepa que investigou esses crimes de abuso sexual no Pará e no Marajó motivado pelas denúncias do corajoso bispo do Marajó, D.José Azcona.
As investigações feitas pela CPI, ao longo de 18 meses de trabalho, puxaram o fio de um grande novelo, que revelaram 35 mil casos notificados de abusos de crianças entre 2005 e 2009, em todo o Pará, o que permite supor que nesse período, houve mais de 100 mil casos desse tipo de violação de direitos já que a subnotificação costuma ser de um para cada quatro casos que ficam silenciados.
Um dado alarmante revelado pela CPl é que cerca de 20% dos casos têm como vítimas crianças de zero a seis anos de idade. E mais, 75% do total desses crimes são cometidos por pessoas da família ou próximas delas, o que dificulta as denúncias e as investigações, sobretudo quando envolvem pessoas poderosas.
Foi graças à CPI e à pressão da opinião pública que pudemos condenar vereadores, deputados e empresários pelo abuso de crianças, o que pode ser constatado nos números: de 2005 a 2009, foram apenas 17 condenações por esse crime no Pará. Em 2010, após a CPI, houve um salto para 93 condenações de prisão em um único ano, ou seja, ao menos por um momento a cortina de impunidade foi levantada.
Entretanto este quadro trágico que merece toda a nossa atenção, está longe de transformar o Marajó e o Pará na região de maior incidência dos casos.O Brasil vergonhosamente registra 1,5 milhão de casos/ano de crimes dessa natureza e está entre os 3 piores índices de exploração sexual de crianças e adolescentes do mundo.
Segundo o Instituto Libertas e o Ministério.da Justiça, a cada 24h estima-se que 7 mil jovens são violadas nos seus direitos, negando o que preceitua a Constituição e o ECA. Entre 2019 e 2020 foram identificados, 3.651 pontos vulneráveis nas rodovias federais, sendo que 470 desses considerados gravíssimos.Neste quadro, as regiões de maior incidência desses crimes são, pela ordem decrescente: Sudeste, Nordeste, Sul, Centro-Oeste e Norte. Portanto o problema é de caráter nacional e temos que enfrentá-lo com prioridade, sem demagogias e sensacionalismo.
Temos inúmeros desafios pela frente, e um dos mais graves é o preconceito contra a educação sexual e a orientação que faz com que crianças denunciem seus abusadores. Nesse ponto, a escola deve ser uma referência e um porto seguro para as nossas crianças. A educação é fundamental para que ultrapassemos o estágio de barbárie e as famílias e as comunidades em geral devem estar envolvidas nesse processo de conscientização, para que não se considere natural situações escandalosas como a das crianças do Marajó que são levadas a abordar as balsas para trocar o corpo por uma mercadoria qualquer.
Precisamos fortalecer a rede de proteção que existe formada pelos conselhos tutelares, os centros de referência em assistência social (Cras), o Ministério Público, a Defensoria Pública,as polícias e o Judiciário, para que se cumpra o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a própria Constituição, em seu artigo 227, que estabelece que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com prioridade absoluta, os direitos das crianças e dos adolescentes.
Não podemos mais ficar apenas no denuncismo do problema.Temos que cobrar de todos mas, em especial do governo.do Estado mais investimentos principalmente na Educação, na geração de renda e na infraestrutura desta região que abriga 700 mil pessoas e clamam por dias melhores.
*Arnaldo Jordy é ex deputado federal