O berro de porco arrastado para o cepo vibrou na floresta. Os guaribas cessaram subitamente sua algazarra, como que regidos por um maestro. Aves fugiram para o espaço, espavoridas pelo som terrificante, eternizado em um instante de agonia, e só ficou a vibração do grito de porco arrastado para ser morto.
O escravo, um negro que já nascera sozinho, sentia-se mais solitário do que nunca e seu cérebro lhe ordenava uma obsessão: que não se empenhasse mais pela vida. Era um negro que fora belo como Apolo – nascera com glândulas que produziam um odor que enlouquecia as mulheres. Fora seduzido por uma cunhantã que o coronel Fonteles aguardava ficar no ponto que ele considerava de abate. Fora agarrado já dentro das águas do Canal do Sul, que separa as ilhas Marajó de Mexiana.
Levado de volta à fazenda, foi castrado, na presença do pequeno Fonteles, único filho varão, como treinamento, segundo seu pai. O menino Fonteles jurou, num grito silencioso, do alto dos 7 anos, que dedicaria sua vida a combater a infâmia. Essa informação se formou na sua cabeça não no nível intelectual, mas como uma mensagem muito mais completa, com dimensões além das do pensamento – um estado de espírito.
À noite, na solidão do seu quarto e na intimidade do seu travesseiro, chorou como um adulto. Geronço, o trabalhador, o escravo, órfão, sem certidão de nascimento, analfabeto, fora despojado da sua identidade completamente, e de belo animal jovem se transformara num morto-vivo, uma massa informe, como um tumor gigantesco, atirado no chão.
O câncer começou a intumescer a próstata do coronel Fonteles com a mesma determinação assassina com que ele se dedicava a matar onças no município de Almeirim, entre os altos rios Jari e Paru de Este. Matara 70 onças, contadas por meio de mechas de pelos de cada uma delas, que guardava num relicário.
Desde a primeira, o método fora o mesmo, aprendido com o coronel Morte Fonteles, seu pai, de quem foi aluno aplicado. Punha-se irresistível corte de carne fresca de macaco dentro de uma gaiola de acapu. Quando a onça abocanhava a carne, disparava a armadilha e ficava presa na gaiola. A fera tentava escapar, inutilmente. Passada a fúria, devorava a carne. Vencida pelo calor, dormia, as patas para cima, abandonada, a bocarra aberta.
Então o coronel Morte Fonteles aparecia, aproximava-se, sorrateiro, mirava seu rifle a pequena distância do ouvido da onça, para não estragar o couro, e disparava um tipo de bala que não causava estragos externos.A onça dava um esturro aterrador, que fazia os cães fugirem para o barracão, tremia, e era tudo.
Morte Fonteles contratara um taxidermista e vendia para um americano as onças empalhadas, inteiras, ou só a cabeça, ou o couro, ou patas, ou garras e presas. Os índios e caboclos que viviam nas terras griladas pelo coronel Morte Fonteles, à margem do rio Paru, tratava-os a fogo, que ateava nas suas roças e nas suas choupanas e aldeias. Num desses incêndios torrou um bebê.
Fonteles tinha 18 anos quando a próstata do coronel atingira o tamanho de uma laranja e ele urinava sangue. O coronel Fonteles se recusara a se submeter a uma cirurgia quando o câncer foi diagnosticado, pois não queria ser emasculado. No dia da morte do coronel Fonteles, no Hospital Beneficente Português, em Belém, nada fazia passar a dor, e ele morreu berrando como Geronço.
Quando jovem, assim que herdou a fortuna de seu pai, o senador Fonteles navegou, durante meses, no iate da família, de Belém até Iquitos. Retornando a Belém, costeou até São Luís do Maranhão, retornou a Belém e foi a Macapá, demorando-se nas ilhas Marajó, Mexiana e Caviana. De Macapá, seguiu para as Guianas, Venezuela, Colômbia, costeou os países da América Central até o México, passou pelos estados americanos de Louisiana e Flórida, retornando pelas Antilhas.
Praticava pesca oceânica. Certa vez, na altura da ponta de Sucuriju, na costa do Amapá, capturou um marlim-azul que daria água na boca a Ernest Hemingway, pois pesou 636 quilos. Essas navegações lhe mostraram o quanto a Amazônia, especialmente o Pará e o Amapá, é rica e bela como um Caribe sem cataclismos, e contém o trópico em toda a sua plenitude, a Linha Imaginária do Equador, o mar, o legado africano, merengue, jasmineiros chorando perfume em noites tórridas, o maior rio do mundo, o Amazonas, que penetra o Atlântico e o fertiliza com o húmus da Hileia.
Quando a sede de perambular pela Amazônia e pelo Caribe serenou, o senador Fonteles se transformou no maior exportador de açaí e piramutaba, e no maior criador de búfalos do país. E começou a semear milhões de pés de açaizeiros no Baixo Tocantins e no Marajó, e castanheira, mogno e pau-rosa na Terra do Meio, santuário entre os rios Xingu e Iriri, e começou a doar somas consideráveis, anualmente, para a Fundação de Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa, da Universidade Federal do Pará, e criou o Lar do Pequeno Príncipe.
Agora, chegara o momento da sua grande obra: fazer do Pará o estado mais desenvolvido do país. O Pará tinha tudo para isso: era uma síntese da Amazônia, inclusive da sua extraordinária riqueza em recursos naturais. Só o senador Fonteles poderia livrar o Pará da sua tragédia, tragédia que perpassava toda a Amazônia: o sentimento de colonizado que o amazônida carrega nos olhos. Só o senador Fonteles poderia livrar o Pará de Jarbas Barata, o Boto Cor de Rosa.
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