Apolo Brito se levantou às 5 horas, como sempre. Pôs o roupão de lã e foi para o banheiro. Sentado no vaso, agradeceu ao seu estômago, aos intestinos e ao ânus. Sofrera de prisão de ventre durante longos anos. Certa vez comeu banana em excesso e fez muita força com o esfíncter; acreditava que isso originara uma hemorroida. A solução imediata fora estocar ameixa em calda para consumo diário. Embora continuasse comendo ameixa, que se tornara sua fruta predileta, bastava-lhe, agora, agradecer ao seu aparelho digestivo para ele funcionar como se seu corpo ainda fosse azeitado pela juventude.
Lavou as mãos e entrou no banheiro, ajustou a ducha até a água cair quase morna, tomou banho e depois raspou o rosto. Era peludo, tinha o queixo quadrado, rosto oval e grandes olhos negros, quase tristes. Saiu do banheiro e foi para a cozinha. Comprara uma pequena máquina italiana e mantinha em estoque grãos arábica Três Corações, gourmet, de Santa Luzia, Minas Gerais. Tirou uma xícara de café, encorpado e cremoso, adoçou-o com açúcar refinado União e o levou para o quarto da frente, no primeiro andar.
Afastou duas lâminas da persiana e observou a Avenida W3 Sul. Àquela hora, o movimento de carros era quase nenhum. Fechou a veneziana e retornou à cozinha, no térreo. Depositou o pires e a xícara na pia e se dirigiu para os fundos da casa, localizada na HIGS, Quadra 703. Havia um pequeno jardim nos fundos, onde Apolo Brito cultivava rosas colombianas vermelhas e zínias multicoloridas.
No centro do jardim plantara uma buganvília e um jasmineiro, ambos escorados em esteio preso à sacada do seu quarto, no primeiro andar. Nas noites quentes, podia sentir o intenso perfume exalado pelo jasmineiro. Satisfeito com a ronda matutina, Apolo Brito foi para a biblioteca, onde instalara o oratório. A sala era iluminada por uma lâmpada amarela de duzentas velas; o abajurfora desenhado para que a claridade inundasse o ambiente.
Ao se dirigir ao oratório, Apolo Brito lançou uma olhada para o pátio, onde vicejava belo comigo-ninguém-pode. O oratório era precedido de um tapete indiano. Na extremidade do tapete oposta ao altar havia o desenho de um demônio. Um grande gato vira-lata dormia sobre ele. Ao tirá-lo das ruas, Apolo Brito lhe dera o nome de Betão, homenagem a um querido amigo seu, de olhos furta-cores, ora azuis, ora verdes. Ao passar por cima do gato o bichano mal abriu os olhos, apenas para constatar que se tratava de Apolo Brito, e voltou a dormir.
O detetive acendeu uma grande vela branca e uma vareta de incenso. Examinou as laranjas-peras e a palma de banana prata, arrumadas em duas bandejas. Havia, ainda, duas tigelas de porcelana chinesa contendo arroz e sal, um copo de cristal com água e um pote cheio de bombons, entre os quais um tablete de cem gramas de Talento, chocolate branco com uvas-passas, fabricado pela Garoto.
Sentou-se na cadeira, à extremidade do tapete oposta ao gato, juntou os calcanhares em linha reta com o períneo, mantendo a coluna na vertical como um fio de prumo, uniu levemente as mãos diante do rosto, a ponta dos polegares à altura do nariz, quase tocando-o, e fechou os olhos, voltados, ligeiramente, para cima.
Oh! Deus-Pai, que dais vida
a todos os seres viventes
abençoai-me com Vosso Espírito.
Eu vivo
não pela minha própria força,
mas pela vida de Deus-Pai
que permeia os céus e a terra.
As minhas obras,
não sou eu quem as realiza,
mas a força de Deus-Pai
que permeia os céus e a terra.
Oh! Deus, que Vos manifestastes
através da Seicho-No-Ie
para indicar o Caminho
dos céus e da terra, protegei-me.
Às 9 horas, Apolo Brito já estava no seu escritório. Pela janela, entre as frestas da folhagem das frondes que se cruzavam de duas árvores de pau-brasil, na altura do primeiro andar do Edifício Yara Medeiros, viu quando Gilberto Soares Fonteles atravessou a rua entre as Quadras Dois e Três do Setor Comercial Sul. “Deve ter estacionado o carro defronte ao Palácio do Comércio” – pensou.
Gilberto Soares Fonteles media 1,80 metro de altura, usava os cabelos, castanhos, bem aparados, e estava sempre barbeado. Betão era como Apolo Brito chamava seu velho amigo. Editara Polícia no jornal Observador Amazônico. Agora, era correspondente na Amazônia do jornal O Estado de S.Paulo. Estreitaram amizade na Homicídios, em Belém, na época em que Apolo Brito fora delegado titular.
O acidente ocorrera em um momento tenso na Homicídios. Apolo Brito flagrou o delegado substituto torturando um preso, e havia indícios de que esse delegado se envolvera em extorsão e tráfico de drogas. Encaminhara o caso à Corregedoria. O escorregadio Peixe Ensaboado, chefão do tráfico, que já liquidara 13, apenas do que se sabia, e que Apolo Brito caçava há anos, voltara a dar as caras. Um informante comunicara a Apolo Brito que Peixe Ensaboado embarcaria, na madrugada do dia seguinte ao do acidente, no barco Flor do Tocantins, no Porto do Sal, com destino à ilha Mexiana.
Assim que se levantou do leito no Hospital Sara Kubitschek, em Brasília, Apolo Brito recebeu um dossiê do seu amigo escrivão Eduardo Rocha dando conta de que após exaustiva investigação de dois delegados da Corregedoria concluíra-se que o delegado substituto da Homicídios armara uma emboscada para Apolo Brito, que seria assassinado no Flor do Tocantins e desovado na baía de Marajó. Peixe Ensaboado seria a isca, e sócio também. O delegado substituto e Peixe Ensaboado foram flagrados a bordo do Flor do Tocantins com uma tonelada da cocaína mais pura que já se viu no Pará, que seria descarregada à luz do dia, para não dar na vista.
Na noite anterior, na Belém-Mosqueiro, Apolo Brito cochilou ao volante e acabou estirado numa cama do Hospital Sara Kubitschek, em Brasília, durante exatos nove meses. Fora transportado por Linda, sua irmã, também solteirona, e que se dedicava a um orfanato, Lar do Pequeno Príncipe, em Belém. No Hospital Sara Kubitschek ficou aos cuidados da fisioterapeuta e psicóloga Maria Augusta.
Os primeiros meses, Apolo Brito os passou mergulhado no que lhe parecia uma banheira cheia de líquido morno e viscoso. Na escuridão via brilharem dois lápis-lazúlis, e ouvia murmúrios que lhe lembravam sua mãe rezando. Um dia, divisou uma mulher diáfana, que orava, ao seu lado, todas as manhãs. Soube depois que lia o Sutra Sagrado Contínuo Chuva de Néctar da Verdade, de autoria do filósofo japonês Masaharu Taniguchi, e agradecia ao perfeito estado dos órgãos de Apolo Brito, aos seus sentidos, membros, ossos, músculos, sistema nervoso, às vísceras, ao cérebro…
Ele ouvia os agradecimentos diariamente e pensava sobre a razão daquela bela mulher agradecer pela saúde do seu corpo estirado numa cama. Como podia dizer que ele era perfeito? Pois aquilo durou exatos nove meses, ao cabo dos quais Apolo Brito simplesmente se levantou da cama, precisamente no dia em que completou 54 anos. Segundo o laudo médico, sua medula espinhal, próxima ao pescoço, fora seriamente afetada, mas, inexplicavelmente, novas radiografias mostravam que a parte atingida estava intacta.
Quando fora transportado para Brasília, Esmeralda, que tinha então 23 anos, o acompanhara, e aproveitara para fazer o curso de Biologia na Universidade de Brasília. Quando Apolo Brito se instalou como detetive particular, Esmeralda se tornou sua assistente. Durante sua estada, Esmeralda morou primeiramente em um hotel e depois com Maria Augusta, por insistência da médica; às vezes passava temporadas com Apolo Brito na W3 Sul.
Assim que se levantara do leito de morte, Apolo Brito poderia, se quisesse, retornar para Belém e reassumir na polícia, mas acabou ficando. Ocorrera um caso pavoroso. Um atleta entrou num hospital de Brasília para um check-up e dele só encontraram a carcaça. Apolo Brito identificara uma quadrilha especializada em matar e extrair órgãos das vítimas. O chefão era médico e deputado federal. Gilberto Soares Fonteles escrevera uma série de matérias com informações em primeira mão para o Observador Amazônico e logo depois o Estadão o convidou para trabalhar como correspondente na Amazônia Internacional.
A doutora Maria Augusta, 51 anos, viúva, oriunda de Patos de Minas, era proprietária de uma clínica no Lago Sul e herdara uma fortuna em imóveis, incluindo a casa na Avenida W3 Sul, onde Apolo Brito morava. Junto à doutora Maria Augusta, Apolo Brito sentia-se livre como o vento, que vai aonde quer. Gostavam de quedar-se juntos, mas jamais tomaram posse um do outro, mesmo no tempo em que se devoravam como fogo.
Assim que Gilberto Soares Fonteles entrou na sala de Apolo Brito, Esmeralda serviu café aos dois homens. Ela utilizava coador de algodão e Café Dois Corações, gourmet. O aroma da bebida, encorpada, recém-coada, espalhara-se na sala. A louça de porcelana chinesa e as baixelas de prata combinavam com os móveis, em madeira trabalhada artesanalmente, escolhidos pela doutora Maria Augusta.
Óleos cobriam as paredes. Telas de Olivar Cunha. Mendigos, cenas no bairro do Guamá, em Belém, e no Igarapé das Mulheres, em Macapá, guarita de baluarte da Fortaleza São José de Macapá, naturezas mortas de frutas e vasilhames típicos da Amazônia. Entre os quadros, havia um impressionante, um tuiuiú crucificado pairando sobre a boca de um cano de esgoto. Acomodado na grande poltrona de couro, diante da mesa de trabalho, Apolo Brito virou-se e bisbilhotou a rua por uma fresta na persiana. Abriu o estojo de Cohiba e o ofereceu a Gilberto Soares Fonteles, que o recusou. Acendeu um para si.
– O titio poderá ser assassinado para que Jarbas Barata ganhe a eleição – disse o jornalista.
– Como assim? – Apolo Brito perguntou.
– Vou te contar algo que jamais deverá ser mencionado, e não preciso dizer que confiamos plenamente em ti. Sou membro de uma sociedade secreta, a Confraria Cabanagem, uma espécie de Cabanagem contemporânea – disse Gilberto, olhando nos olhos de Apolo Brito. – Pois bem, descobrimos um plano para, simplesmente, eliminar meu tio. No segundo turno, em caso de morte de um dos dois candidatos, o outro é eleito…
– Tudo bem, mas como assassinato? – Apolo Brito perguntou de novo.
– Aí é que está. Deverá ser um acidente que parecerá morte natural. Não sei como pretendem fazer isso e é por essa razão que precisas ir para Belém imediatamente. A contar de hoje, eles têm 23 dias para assassinar meu tio. O segundo turno será dia 31. Hoje, são 7.
– Mas por que eles fariam isso? – Apolo Brito perguntou.
– Se Jarbas Barata perder as eleições, sabe que estará literalmente perdido, não apenas nas urnas. A elite belenense, aquela que continua a escravizar os caboclos, sabe que meu tio fará, ao seu modo, uma revolução, e os lucros exorbitantes dessa elite evaporarão. Muita gente boa terá que desgrudar suas ventosas das tetas do erário, pessoas que vêm furtando verbas públicas há anos. Essa possibilidade deve tirar o sono das sanguessugas. Para a confraria, o senador Fonteles é a única pessoa que poderá resgatar o Pará da sua, digamos, tragédia, o colonialismo; resgatá-lo por meio de sociedades sustentáveis, dos caboclos, dos ribeirinhos, dos quilombolas, dos povos da floresta.
Gilberto fez uma pausa e continuou.
– Mas para fazer isso será necessário estancar a sangria de dinheiro público, o que desagradará muita gente poderosa, e há muita gente metida nisso – empresários, juízes, procuradores públicos, jornalistas, policiais… a perspectiva de meu tio ser eleito – e tudo leva a crer que ele será eleito – os aterroriza, daí porque farão tudo, absolutamente tudo, para impedir isso. Se for eleito, e tomar posse, a Confraria Cabanagem vai ajudá-lo sem que ele saiba disso; a ajuda necessária para vencer a tremenda resistência que ele enfrentará. Somos poderosos também, e todas essas pessoas, sobre as quais temos dossiês, serão vigiadas mais de perto do que possam imaginar.
Fez novamente silêncio, um pouco maior, e voltou a falar.
– Se for preciso, sofrerão acidentes fatais. Meu tio jamais concordaria com isso. Ele é profundamente democrata e rigorosamente pelo estado pleno de direito, além de pacifista. O senador Fonteles não sabe da existência da confraria. Aliás, a Confraria Cabanagem não existe. O fato é que descobrimos o complô; é assustador, mas verdadeiro. Este dinheiro é do fundo da confraria – disse Gilberto, pondo diante de Apolo Brito um cheque nominal de 7 mil reais. Apolo Brito examinou o cheque.
– É muito dinheiro – disse, repondo-o sobre a mesa.
– É necessário que viajes imediatamente para Belém e tenhas recursos para fazer o que for preciso – disse Gilberto.
Apolo Brito abriu uma fresta na persiana e deu uma olhada para fora. Pegou novamente o cheque e olhou-o.
– Como foi o primeiro turno? E como foi que vocês descobriram esse… complô? – perguntou.
– Titio obteve mais votos do que Jarbas Barata no primeiro turno. Em casos assim, quando um dos dois candidatos morre, ou fica impedido, a Constituição garante ao outro a vitória. Ocorre que Dashiell Hammett, que é, como sabes, o diretor de redação do Observador Amazônico, e que é cabano, presenciou, na sala dele, no jornal, uma conversa entre o Arigó Italiano e Jarbas Barata, que foram lá tratar de uma nota para a coluna Redator 21. Dashiell Hammett ouviu JB cochichando para o Arigó Italiano. Crê que ouviu, a certa altura, que falavam do senador Fonteles e em colapso cardíaco. Dashiell Hammett fez que estava concentrado na redação da nota. Nessa hora alguém pôs a cabeça na porta e chamou Dashiell com urgência. Segundo sua impressão, os dois não notaram que ele ouviu parte do que cochichavam. Dashiell está certo de que se referiam às eleições e ao titio. Chegamos à conclusão de que o titio pode ser induzido a um colapso cardíaco, pois ele é hipertenso e toma remédio controlado para o coração – disse Gilberto.
Apolo Brito pensou um pouco. O que Gilberto Soares Fonteles lhe dizia não deixava de fazer sentido.
– Bem, preciso me inteirar do dia a dia do senador e ir à casa dele, aqui em Brasília, antes de viajar para Belém. Essas coisas sempre são um começo – disse. Gilberto Soares Fonteles assentiu.
– Como sabes, o titio está licenciado do Senado. Ele preside a Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. De qualquer forma, aqui ou em Belém, trabalha até tarde, meia-noite, início da madrugada, sempre na biblioteca. Esquematiza seus pronunciamentos à mão. Na sua casa, no Lago Sul, tem um fila que só falta falar. Obedece a todas as ordens do titio. Ninguém se aproxima dele se ele não ordenar ao cão que fique quieto. Os criados – um motorista, dois vigilantes, o cozinheiro, uma arrumadeira e o jardineiro – estão limpos, e o titio não vem aqui desde junho. Conversei com todos eles. São daqui da região e não têm a mínima ideia do que se passa no Pará, nem sequer se o Pará existe, e são simplórios demais para receber a proposta de matar o titio sem praticamente anunciarem isso ao mundo – disse Gilberto, sorrindo. – Pois bem, normalmente o titio vai, rotineiramente, às quintas-feiras, à noite, para Belém, e costuma ficar até segunda-feira, à noite; então, retorna para Brasília. Essa rotina, óbvio, foi quebrada quando a campanha começou para valer, em junho.
– Alguma novidade na família que eu ainda não saiba? – disse Apolo Brito.
Gilberto Soares Fonteles pensou um pouco.
– Ele se casou de novo; há coisa de um ano. Foi um casamento discreto; pouca gente soube. Sua segunda mulher se chama Eleonora – disse, com a expressão de quem acaba de se lembrar de algo óbvio.
– Eleonora? – perguntou o detetive.
A noite chegou, lenta. Apolo Brito deixou seu Alfa Romeo numa vaga no estacionamento público a leste do Centro Comercial Gilberto Salomão e procurou um café. Uma jovem o atendeu. A iluminação do ambiente, a juventude da moça e o espresso transmitiram sensação de conforto ao detetive. Havia também muitas pessoas bonitas caminhando por ali. Deixou-se ficar algum tempo. Então, tomou a direção de onde deixara o carro e se dirigiu para um estacionamento pago, nos fundos do qual havia um portão no muro; cruzou-o e saiu defronte a um prédio de dois andares, a Casa 21 do Conjunto 16 das Quadras Internas 5, Setor Habitacional Individual Sul. Acionou a campainha. Quando o vigilante abriu a porta, Apolo Brito ouviu o fila. Gilberto Soares Fonteles o aguardava no saguão.
– Eu gostaria de ficar só – Apolo Brito pediu.
– Vou para meu quarto – disse Gilberto Soares Fonteles. – O vigilante estará na sala dele.
O andar de baixo era composto de um salão, duas salas, ampla cozinha, dois banheiros, dependências do vigilante e duas varandas, além do quintal – um jardim impecavelmente cuidado, uma pequena piscina e a casa do cachorro. O andar de cima compunha-se de três suítes e dois quartos, biblioteca contígua a uma das suítes – e que era também o escritório do senador –, dois banheiros coletivos, duas saletas e duas varandas. Apolo Brito se dirigiu diretamente para a biblioteca.
Tratava-se de ampla sala, com estantes de portas envidraçadas e corrediças cobrindo as paredes do chão ao teto. Os livros estavam arrumados por assunto. A um rápido exame, Apolo Brito percebeu que aquelas estantes guardavam o suprassumo da ficção, história e filosofia universais. Uma parede inteira abrigava somente livros relativos à Amazônia, ao Caribe e à Ibero-América.
Leu os nomes de alguns autores: Ferreira de Castro, Dalcídio Jurandir, Benedicto Monteiro, João de Jesus Paes Loureiro, Luiz Bacelar, Jorge Tufic, Antísthenes de Oliveira Pinto, Thiago de Melo, Isnard Brandão Lima Filho, Vicente Salles, Gabriel García Márquez, Ruan Rulfo, Mario Vargas Llosa, Lúcio Flávio Pinto (de quem havia os seguintes livros: CVRD – A sigla do enclave na Amazônia – As mutações da estatal e o Estado imutável no Pará; Guerra Amazônica – O jornalismo na linha de tiro de grileiros, madeireiros, intelectuais etc. & cia.; Contra o poder – 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica; e A agressão – Imprensa e violência na Amazônia)… Retirou um livro da estante, Memorial da Cabanagem, de Vicente Salles. Devolveu o livro ao seu lugar, entre mais dois volumes de Vicente Sales, O Negro no Pará – Sob o Regime da Escravidão e Marxismo, Socialismo e os Militantes Excluídos.
Apolo Brito fechou a estante, olhou em torno. Foi se sentar na poltrona do senador. A mesa era enorme, de sete gavetas. Abriu a primeira delas, à sua direita. Havia, ali, vários objetos de escritório e uma agenda. Gilberto já analisara minuciosamente a agenda. Na segunda gaveta encontrou pastas com documentos. Na última, havia fitas, CDs, DVDs e disquetes. Tudo fora examinado por Gilberto. Do outro lado, as gavetas praticamente repetiam o conteúdo das outras. Na do meio da mesa havia uma pilha de papéis com anotações de um discurso aparentemente sobre internacionalização da Amazônia.
Levantou-se. Foi até o quarto do casal. Sobre o toucador, uma fotografia do senador e dona Eleonora. A mulher era mais alta do que o senador, branca, de olhos claros e belo nariz afilado. Betão lhe informara que Eleonora era natural de Macapá, filha de uma ex-Miss Amapá e de um americano, de quem herdou a Industrialização e Comercialização de Minerais S.A. (Icomisa), sediada em Belém e com atuação no Pará e Amapá. O senador a conhecera numa visita à empresa. Apolo Brito devolveu o porta-retratos ao toucador. Começou a vasculhar gavetas, guarda-roupa e armários. Nada lhe chamou a atenção.
Então viu os criados-mudos. Abriu a gaveta do primeiro. Era o do senador. Havia nele o livro Cheiro de Goiaba, longa entrevista que o escritor Plínio Apuleyo Mendoza fizera com seu conterrâneo Gabriel García Márquez; embaixo do livro encontrou o Dicionário Histórico de Palavras Portuguesas de Origem Tupi, de Antônio Geraldo da Cunha, prefaciado por Antônio Houaiss. Cheiro de Goiaba, O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, e Verde Vagomundo, de Benedicto Monteiro, eram três dos livros dos quais o senador Fonteles mais gostava. Apolo Brito lera essa informação em algum lugar. Eram também os livros de cabeceira do detetive.
No outro criado-mudo encontrou um envelope pardo, de papel amadeirado. Abriu-o. Havia um mapa assinalando o município de Almeirim, no Pará, a sudoeste; ao norte, demarcava os altos rios Jari e Paru de Este, e a fronteira entre o Pará e o Suriname; a noroeste, o Parque Indígena do Tumucumaque, a Serra do Tumucumaque e o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque; e, a leste, os municípios de Serra do Navio e Laranjal do Jari, no Amapá. No rodapé do mapa estava escrito a lápis “Phyllobates terribilis”, ao lado de um muiraquitã. Anotou mentalmente o mapa e, numa caderneta, o nome científico do rodapé. Devolveu o envelope ao criado-mudo, olhou mais uma vez em volta e saiu do quarto.
Retornou à biblioteca e voltou a se sentar na poltrona do senador. Ficou ali por longo tempo. “A morte pode vir de muitas formas, inclusive de forma inacreditável, e, por isso mesmo, perfeitamente natural. Mas que poder poderá calar para sempre o senador sem deixar nenhuma pista?” – disse Apolo Brito, para si mesmo, o pensamento divagando.
Naquela noite, Apolo Brito foi dormir na casa de Maria Augusta. Às cinco horas, quando se levantou, ela dormia. Um sorriso se desenhara no seu rosto. Seus cabelos, antes dourados, começavam a ficar prateados; quedavam-se como jorro de ouro esmaecido e prata. Seu corpo continuava esguio, e a pele, sedosa e perfumada. Apolo Brito olhou-a com carinho. Levantou-se e foi ao banheiro. Retornou ao quarto e voltou a dormir.
Acordou com o sol empurrando as cortinas, imperando na manhã límpida. Maria Augusta continuava dormindo. Acabara de se tornar preletora internacional da Seicho-No-Ie, e, por isso, a partir de então, viveria viajando pelo mundo, difundindo a mensagem do mestre Masaharu Taniguchi. Seus filhos, um casal, moravam em Tóquio; estavam se especializando em japonês.
Olhando o rosto suave de Maria Augusta, Apolo Brito via os dias frios de julho, as chuvas, que começam a cair para valer em novembro, quando as mangueiras da Praça do Buriti ficam prenhes de mangas, que, de tão bonitas, lembram seios de mulher, a explosão de cores, as cigarras e os sabiás cantando o dia todo na primavera, o Teatro Nacional Cláudio Santoro, a fachada do Conjunto Nacional à noite, as compras aos sábados na Feira do Guará, onde fazia o desjejum comendo pastel de carne e azeitona com caldo de cana, e comprava peixe fresco, trazido do Araguaia-Tocantins. Todas essas coisas já estavam para sempre no seu coração. Naquela noite, partiria para Belém.
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