Militante estudantil nos anos de chumbo, o ovo da serpente desenvolvera aquele discurso stalinista melodramático, eficientíssimo para transmitir esperança a quem sofre da ausência dela, causada pela miséria absoluta, esta, fruto da ignorância. O discurso reverberava como a vibração do mal. Jarbas Barata lançou suas ventosas na política combatendo, aparentemente, a Ditadura dos Generais, as trevas que se abateram sobre o país durante duas décadas e um ano, de 1964 a 1985, “para combater outras trevas” – pensou Batista Campos.
O fato é que o Boto Cor de Rosa vislumbrou que poderia criar sua própria ditadura, sua própria máfia, pois percebeu que a massa, o povão, pode ser facilmente manobrada, pois crê em todas as mentiras que lhe digam. Assim, a política se descortinava como o melhor caminho para enriquecer. E como acontece com todos os ditadores, o poder pelo poder é que o mantinha vivo; sem essa espécie de prazer, canceroso, desmoronaria como um castelo de areia, fina e branca, ao sol e ao vento de Soure. Sua caquexia tinha, como única causa, urgência do poder.
No momento ele governava das sombras. Batista Campos estremeceu. O mesmo estremecimento que sentira, há 12 anos, em Soure, quando Jarbas Barata foi eleito governador. – Este homem sempre foi bonito – comentara uma cunhantã, logo acusada, pelas outras, de assanhada. Diante de uma tigela de pirão de papa de açaí amassado à mão com farinha de tapioca, daquela que se derrete na boca, acompanhado de camarão pitu, Batista Campos mergulhou no passado, do qual saíam gritos de uma história que construíra com indícios e pistas, colhidos aqui e ali. Um ano antes, acontecera algo sintomático do que seria o governo democrático do mítico Boto Cor de Rosa.
Anoitecia. O rio Caracará estava parado. As árvores também não se moviam. Nada se movia na paisagem imobilizada, nem o som; um pacto de silêncio irrompera na selva. A imobilidade e o silêncio inundaram a tarde, exceto o anoitecer, azul escuro, que, lento, escorria. A casa mergulhara na noite, e nela, contrariando o silêncio e a negrura, uma lamparina foi acesa e se ouviu choro, agora alto e cortante.
Os ratos d’água atacaram no meio da tarde. Deixaram o barco um pouco distante e chegaram remando numa ubá. Eram seis. Sabiam que o dono da casa, ausente, pescando em alto mar, estava juntando dinheiro para pagar um novo barco, em construção em Cachoeira do Arari. Estavam na casa a dona, três filhas e três criadas. Os ratos d’água sabiam também disso, e passaram a tarde estuprando as moças, com exceção de Helenita, 14 anos, prometida virgem para um tubarão.
Ditão foi avisado da tragédia por rádio, interrompeu a pescaria, retornou para Cachoeira do Arari, deu parte na polícia e começou a busca de sua Helenita, a caçula. Entretanto, Helenita estava no outro lado da baía do Marajó, num casarão no bairro da Cidade Velha, em Belém, tratada a pão de ló. – Ficas quietinha, não falas com ninguém, fazes o que eu mandar e voltarás para a tua casa dentro de um mês. Agora, se tu não fizeres o que a gente te mandar, vamos te matar e também toda a tua família, estás ouvindo? – disse a mulher a quem Helenita foi
entregue.
Era uma mulher grande como um elefante. Helenita se transformara em um autômato; ouvia o tempo todo gritos de sua mãe, suas irmãs e das criadas, e som de tapas, e risos de homens mostrando aquilo que os homens têm e que nunca, até então, vira, senão em meninos. Orava e pedia a Deus para acordar do pesadelo. – Dentro de uma semana, tu e outras meninas irão para um passeio com umas autoridades, uns homens bacanas. Tu vais fazer companhia para eles. Tens de fazer tudo o que eles te mandarem, estás ouvindo? Depois do passeio serás devolvida para o Ditão – disse a mulher gorda. E os dias se tornaram uma sucessão de comidas deliciosas, televisão, cama macia, banhos, massagens, um pouco de vinho, filmes com homens fazendo coisas horríveis com mulheres. Mas Helenita jamais deixara de orar, de pedir a Deus que a acordasse do pesadelo, até que numa noite um automóvel negro deslizou por ruas iluminadas e a levou da casa até um cais, onde um iate reinava na noite.
– Chegaram os peixes – dissera um homem branco, de cabelos negros, camisa de seda estampada, calças de linho, sapatos brancos e panamá. “Um boto” – pensou Helenita. Havia mais um homem, quarentão, paraplégico, que tratava o boto por JB. Os peixes eram seis meninas como Helenita. A mais velha, de 17 anos, estava grávida, segundo ela mesma dissera. Três para cada homem. O pesadelo continuou. Agora, vinha na forma daquele aleijado chupando sua virilha, lambendo-a toda. Helenita fechava os olhos e sentia o fedor alcoólico da saliva do homem.
Às vezes, via o homem, sentado na cadeira de rodas, debruçado sobre ela, chupando-a, lambendo-a, insaciável, até que um dia o iate parou e as meninas foram transferidas para o barco Virgem de Nazaré, que rumou para a cidade de Oiapoque, com carne nova para a boate Senzala, especializada em pratos especiais para europeus que atravessavam o rio Oiapoque, oriundos de Caiena. Quando o Virgem de Nazaré estava na altura do Cabo Norte, no Amapá, desabou uma tempestade e o barco adernou. As colegas de infortúnio de Helenita, todas
elas, morreram afogadas. A tripulação também. Helenita, que tinha a água como segundo elemento, foi resgatada por uma fragata da Marinha, que, por acaso, apareceu no momento do acidente.
– O aleijado me lambia o tempo todo – disse Helenita ao delegado da Polícia Federal, em Macapá. – Sim, tinha um homem todo de branco e de chapéu; parecia um boto. A polícia apurou que Jarbas Barata estivera doente de cama, na sua casa, durante aquela semana. Quanto ao paraplégico, parecia tratar-se de um deputado federal. Intocável. Invisível. Só havia um obstáculo, quase intransponível, para que o Boto Cor de Rosa voltasse ao governo do Pará: o senador Fonteles. Por isso é que o senador teria que ser eliminado. Era da responsabilidade dos cabanos impedir isso.
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