Pesquisa de novembro aponta que 91% dos eleitores evangélicos discordavam de fala de Lula sobre Israel cometer atentados terroristas na Faixa de Gaza; Comparação com holocausto tem potencial para ser ainda mais destruidora para o presidente entre esse público
“Quem acrescenta coisas à verdade está a diminuí-la” é um ensinamento judaico escrito no Talmude, que cabe muito bem à irresponsável fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante encontro da cúpula da União Africana, na Etiópia, em que comparou as ações de guerra promovidas pelo Estado de Israel contra o grupo terrorista Hamas ao holocausto sofrido pelo povo judeu, um dos episódios mais abomináveis da história da humanidade, que culminou na morte de 6 milhões de pessoas. Não bastassem os efeitos diplomáticos, que vão na contramão da posição histórica do Itamaraty, Lula não só convidou para o ringue a pequena, porém influente comunidade judaica brasileira, mas também uma grande parcela de um público, que o governo buscava se aproximar e que é repelido pela desastrosa declaração: o evangélico.
Qualquer pessoa que fizer uma breve incursão em uma comunidade brasileira e olhar com atenção para os altares das mais diversas Igrejas evangélicas, com absoluta certeza, enxergará em boa parte delas uma bandeira de Israel. A associação dos evangélicos com a Terra Prometida é grande e tem raízes teológicas profundas. Muitas Igrejas, principalmente as neopentecostais, seguem boa parte dos rituais do Antigo Testamento da Bíblia Cristã, que é basicamente a Torá Judaica. Jesus Cristo era judeu e a diferença básica entre o cristianismo e o judaísmo é que aqueles que creem em Jesus, o enxergam como o Messias, o legítimo filho de Deus. Para os judeus, Jesus foi um importante profeta, mas não o Salvador. Para os cristãos existe um Novo Testamento a partir de Cristo e é aí que se diferenciam as religiões.
A pregação de todo o Antigo Testamento, entretanto, é a mesma e os profetas que antecederam Jesus são também cultuados pelos cristãos. Uma das mais importantes igrejas evangélicas brasileira, a Igreja Universal do Reino de Deus, tem como sua catedral, uma réplica perfeita, instaurada no centro da capital paulista, do Templo de Salomão. O bispo Edir Macedo, líder da IURD, foi o responsável por construir essa casa de orações que remete a Salomão, filho de Davi, o Rei de Israel, considerado um dos homens mais sábios e justos de toda a história bíblica. O próprio bispo apareceu em público, na inauguração do Templo, utilizando-se do quipá, um chapéu diminuto, utilizado pelos judeus, que simboliza o temor a Deus sobre a cabeça, e do talit, o xale das orações.
Essa relação entre evangélicos e Israel ultrapassa as fronteiras brasileiras. Nos Estados Unidos da América ouve uma verdadeira comoção por parte dos líderes cristãos quando Donald Trump anunciou a mudança da embaixada americana para Jerusalém. Uma pesquisa da Pew Research mostrou que 82% dos WASPs, sigla para caracterizar os protestantes brancos, acreditam que Deus cedeu Israel ao povo judaico, número superior ao dos próprios judeus. Não à toa, esse público foi considerado a base mais fiel eleitoral de Trump na sua tentativa de reeleição.
A ascensão do protestantismo é a grande mudança de perfil sociológico que o Brasil experimentou nos últimos 35 anos. Em 1989, quando da primeira eleição para presidente da República após a ditadura militar, eram apenas 9% os brasileiros que se diziam evangélicos. Hoje, mais de 1/3 da população brasileira se declara desta fé. A proliferação evangélica é visível e sentida, seja na quantidade de novas Igrejas que surgem, seja na própria disseminação de conteúdo religioso nos meios de comunicação. O Congresso Nacional, por exemplo, tem, hoje, 132 deputados federais e 14 senadores que compõem a Frente Parlamentar Evangélica.
Antes, apoio
Sabedor de sua dificuldade com o público evangélico, depois do bolsonarismo ter chegado ao poder, Lula emitiu durante o segundo turno das eleições presidenciais uma carta aos evangélicos. Nela, reforçava o respeito à liberdade de culto e desmentia a ideia de que perseguiria e fecharia templos religiosos. Uma imagem de sua esposa, Janja, com orixás do candomblé, foi disseminada durante o pleito eleitoral e causou bastante rebuliço nas mídias digitais, fazendo com que Lula usasse de antídotos para poder dialogar com esse importante naco da sociedade.
Durante seu primeiro governo, Lula chegou a ter apoio de importantes líderes evangélicos. A situação econômica extremamente favorável ajudava nessa aproximação. O retrato de hoje, todavia, é completamente distinto. A carestia impactando no orçamento das famílias brasileiras tem feito com que as classes mais baixas sofram ao fazer a compra de itens básicos no mercado. Segundo levantamento do Ibre/FGV, a alimentação no domicílio aumentou em 45% nos últimos quatro anos. O arroz teve uma variação de 59,26%, a batata, de 85,06%, a cebola de 131,43% e o feijão de 52,25%. Um problema que atinge diretamente a grande massa evangélica, que está concentrada na classe C2 do País, que vive com uma renda média familiar de R$ 1.894,25, segundo o Critério Brasil, da ABEP.
As repercussões sobre a fala de Lula mostram que os efeitos não pararam só na bolha de reprovação ao presidente. Luciano Huck, judeu, principal apresentador da Rede Globo, e que já ensaiou candidaturas presidenciais, mesmo que de maneira diplomática, repreendeu o presidente, a quem ele próprio declarou voto na eleição passada a pretexto de vencer o bolsonarismo. É interessante perceber, que além de desagradar o principal astro da líder de audiência, a fala de Lula atinge as duas outras maiores emissoras de TV nacionais. A RecordTV é de propriedade de Edir Macedo e o SBT, do judeu, Silvio Santos.
Em pesquisa realizada pela RealTime Big Data, encomendada pela RecordTV, em novembro de 2023, 77% dos brasileiros discordavam da fala de Lula sobre Israel cometer atentados terroristas na Faixa de Gaza. Quando se destrincha a pesquisa e se analisa o corte apenas entre eleitores evangélicos, o número salta para 91% de repúdio ao posicionamento do presidente da República. O fato de ontem, no entanto, pela gravidade da comparação, tem potencial para ser ainda mais destruidor do que essa passagem.
O perdão é um dom divino e a penitência por ter errado é esperada tanto pelo cristão quanto pelo judeu. Em uma missa católica, há o momento do ato penitencial, onde o homem pede a Deus, em sua condição de pecador, que seja redimido dos seus erros. É ensinamento rabínico que “um homem que cometeu um erro e se sente envergonhado tem a sua falta perdoada”. Para Lula, resta se redimir. Se quiser ainda dialogar com essa importante fatia do eleitorado brasileiro, o presidente precisará antes de mais nada assumir seu erro, se mostrar falho, para a partir daí ter a possibilidade de reconquista-los. Precisa fazer sua parte. Se serve de aviso, um ditado popular judaico diz: “Confia em Deus, mas amarra o teu camelo.” (Bruno Soller, estrategista eleitoral e colunista do Estadão)