Neste terceiro diálogo sobre a Amazônia, estamos examinando o Manifesto Curau/Flagrados em delito contra a noite. Estamos atravessando através dele as várias camadas de realidades da floresta, do natural através do histórico até o seu imaginário.
Corria o ano de 1983. E parecia haver um decisivo ânimo de defender a Amazônia da destruição: era o primeiro congresso nacional da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, que iria acontecer em Belém. Com centenas de pessoas, do Brasil e de outros países, vindo a Belém. Mas eu, suspeitava de que aquela disposição se desfaria em palavras e nada realmente aconteceria. E abri o Manifesto dizendo: – Vítimas de uma sociedade violentamente gerada pelos mais evidentes padrões de colonização, nossas chances de mudá-la começam na visualização da face oculta de quem nos fez isso.
No diálogo 2 iniciei isso – e neste 3 veremos minha imersão na profunda camada mais secreta da Amazônia – mais funda que a história – a imaginária, seus mitos, lendas.
Sigamos adiante:
O equívoco das lutas anti-imperialistas circunscritas à confrontação política e econômica é, tem sido, ignorar que o projeto de permanência do imperialismo ocidental, projeto liderado pelos imperialismos europeu e norte-americano, inclui estratégias mais vastas e invisíveis, que utilizam a cultura – a Cultura, exprime melhor – e todas as suas ramificações, previamente envenenadas com um curare entorpecedor das culturas do Terceiro Mundo, tolhendo na nascente sua afluência e sua chance de uma ação nativa libertadora.
Assim é que esse Ocidente, tendo tudo a perder, nem vivo no real, nem mais vivo ainda na incorporação de um real total pela incorporação do além-fronteiras do onírico humano, quer, insiste em se propor como modelo alienador, das culturas oprimidas.
Freud continua sendo para o Ocidente culto uma ferida aberta no seu inconsciente, perigosa, e que o Ocidente precisa cicatrizar, esquecer, e a conversão de suas descobertas em estratégias terapêuticas é a mais explícita constatação da manifestação do medo ocidental diante do imaginário.
Será compreendendo que, do outro lado do Atlântico e mais acima dos Trópicos se encena uma farsa, essa, que regiões de fome e de visões como a Amazônia terão direito, um dia, fatalmente, a um solo próprio e à convivência com suas raízes.
O real está em toda parte, sim, mas sob o domínio do medo ele se transforma em fantasia e fuga ao real.
Só a fábula insurrecta cravada na vida resgatará estética e historicamente a Amazônia dessa miragem: o padrão colonizador imposto a ela. E, também, da falsa existência que tem sido a nossa até então.
Mas onde está esse subsolo real, o autêntico chão que servirá de base a essa independência histórica e estética, assim exigida com ênfase?
Enquanto ignorarmos isso, esse solo fértil, nem ênfase nem Cultura nos levarão um passo adiante.
E é inevitável que, para saber, será preciso um sacrifício cultural: o sacrifício dessa cultura a que nos habituaram e nos habituamos, será preciso romper tabus, negar-se a velhos cultos.
Quantos de nós se dispõem a tanto?
Há tribos na Amazônia que afirmam:
– A vida é uma ilusão, só os sonhos têm realidade.
Não.
Não se trata de mais uma alienação, mera crença.
Antes, é preciso ver nisso a presença de uma consciência que já viu.
E viu o quê?
É simples: ao tomar o real expresso como o Real, o homem se amesquinha e trai seu projeto de ser inerente; ao suspeitar desse real manifesto em torno de nós, todas as possibilidades de modificá-lo se escancaram. Esse real à nossa volta é, na Amazônia, socialmente, a transplantação da realidade forjada pela cultura do dominador, herança a que nos forçam.
Alguém já disse: – Do fundo de uma prisão, um homem pode fechar os olhos e destruir o mundo.
É disso, enfim, que se trata. Desse poder. E nós o temos, mas ele dorme entorpecido o nosso sonho de região sem voz, sem identidade, sem alma – porque fomos desalmados pelo invasor.
Ante a constatação inevitável da nossa carência material em resistir a esse colonizador com armas idênticas às dele, porque somos, irmãos, muito pobres, e ante a constatação de que isso seria repetir seus erros e reafirmá-los como valor – quando o nosso projeto é uma reinvenção cultural, uma revalorização da vida – ante essas constatações, e a par de um esforço de independência política e econômica, não temos o direito de negar-nos a nossa arma mais eficaz, imediatamente: o Imaginário, esse poder de que os nossos dominadores seculares, exaustos de sonhar, vêm abrindo mão.
A Amazônia é uma irrealidade, então? Uma utopia? Um fantasma geográfico habitado por fantasmas humanos? É?
Também. Da perspectiva da nossa opressão, isto é trágico; mas da perspectiva da nossa realidade, aí está o começo da nossa liberdade. E não apenas em relação ao colonizador, mas também em relação à própria vida, para nós, potencialmente, um dado lúdico.
E no entanto, aqui se morre, se nasce em ondas, há a fome em estado crônico, homens doentes nos olham nos olhos às vezes com paixão, outras vezes com ódio. Tudo é igual à vida como ela é vista por fora.
Juntamente com a mobilização de uma operação política, então, é precioso pôr em movimento também uma operação mágica.
– Esta: para além do real que me é dado pelo mundo, e, sobretudo, se esse real está deformado pelas marcas de uma dominação alheia a mim, resta-me o recurso de um jogo.
E nesse jogo descubro e me repito, até o último alento:
– A História, a minha história, só terá realidade quando eu me apossar dela pelo meu imaginário de homem e região.
Foi isso o que o colonizador esqueceu, e por isso ele fez de sua história uma História lenta, mas fatalmente, contra a sua própria vida.
Tudo isso vemos, e não vemos, não temos visto, como um espetáculo exposto à nossa consciência: o drama de um naufrágio. O naufrágio do modelo da civilização ocidental.
Repetiremos sua encenação?
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