Na última quinta-feira (12), segundo publicação do The New York Times, biólogos emitiram um aviso sombrio: dentro de algumas décadas, os cientistas serão capazes de criar um micróbio que poderia causar uma pandemia “imparável”, desencadeando perdas de colheitas ou o colapso de ecossistemas inteiros.
Os cientistas pediram a proibição de pesquisas que poderiam levar à síntese de tal organismo.
“As consequências podem ser globalmente desastrosas”, disse o químico Jack W. Szostak, da Universidade de Chicago. O ganhador do Prêmio Nobel ajudou a escrever um relatório de 299 páginas sobre os riscos da pesquisa.
Em um comentário publicado na revista Science, Szostak e seus colegas alertaram que um organismo criado com a nova tecnologia poderia causar “consequências extraordinariamente danosas para o meio ambiente, agricultura e bem-estar humano”.
Para criar um microrganismo assim, os cientistas teriam que construir uma célula que desafiasse uma das propriedades fundamentais da vida na Terra. As moléculas que servem como blocos de construção do DNA e das proteínas geralmente existem em uma de duas formas de imagem espelhada. Mas as células vivas dependem de apenas uma forma.
Nosso DNA, por exemplo, tem uma estrutura feita em parte de açúcar. Enquanto as moléculas de açúcar podem existir em formas canhotas e destras, o DNA usa apenas as moléculas destras.
Essa é a razão pela qual a dupla hélice do DNA tem uma torção destra. Nossas proteínas, por outro lado, são feitas de aminoácidos canhotos. Essa combinação é encontrada não apenas em humanos, mas em todas as espécies conhecidas na Terra.
Os cientistas ainda estão debatendo como a evolução chegou a essa disposição. Em teoria, uma célula espelhada —com DNA canhoto e proteínas destras— poderia realizar todas as reações bioquímicas necessárias para se manter viva.
Mas, pelo que os biólogos podem dizer, as células espelho não existem. Pelo menos ainda não.
Nas últimas décadas, químicos descobriram como fazer proteínas espelho. Pesquisadores “soldaram” aminoácidos destros para criar versões espelho de proteínas naturais feitas por nossos próprios corpos.
Os químicos tentam agora explorar proteínas espelho, esperando que elas possam ser usadas para criar medicamentos de longa duração para doenças como Aids e Alzheimer.
Nos últimos anos, cientistas deram passos ainda maiores na biologia espelho. Células comuns produzem proteínas lendo um gene, fazendo uma cópia de sua sequência em uma molécula de RNA (chamado de RNA mensageiro ou mRNA) e enviando esse RNA para uma fábrica de produção de proteínas.
Em 2022, Yuan Xu e Ting Zhu, dois pesquisadores da Universidade de Westlake, na China, criaram enzimas espelho que podem produzir moléculas de RNA espelho lendo genes espelho. Avanços semelhantes levantaram a perspectiva de que cientistas poderiam, então, produzir todas as partes necessárias para construir uma célula espelho, talvez em 10 a 30 anos.
“A criação de vida em espelho é uma das aplicações finais de proteínas sintéticas em espelho,” escreveram Richard Payne, químico da Universidade de Sydney, na Austrália, e seus colegas no ano passado.
Várias equipes de cientistas começaram a dar passos em direção às células espelho.
“É incrível”, disse a bióloga Kate Adamala, da Universidade de Minnesota. “Se fizermos uma célula espelho, criaremos uma segunda árvore da vida.”
Além de ser incrível, uma célula espelho também pode ser valiosa do ponto de vista médico. Os cientistas poderiam programá-la para produzir proteínas espelho maiores e mais poderosas.
Kevin Esvelt, biólogo do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) que estuda os riscos da biotecnologia, havia se perguntado no passado se as células espelho poderiam representar um risco. À medida que sua síntese se tornou possível, ele começou a levar esse risco a sério.
Ele compartilhou suas preocupações com especialistas em biossegurança na Open Philanthropy, que financia pesquisas sobre ameaças potenciais à humanidade, como pandemias e inteligência artificial.
Eles reuniram Adamala e outros pesquisadores que trabalham com células espelho, juntamente com imunologistas, botânicos e evolucionistas, para discutir os possíveis riscos.
A discussão parecia, a princípio, como ficção científica para Jonathan Jones, botânico no Laboratório Sainsbury em Norwich, Inglaterra. “Levei um tempo para levar isso a sério.”
Contudo, no fim ele reconheceu o potencial de uma catástrofe planetária se uma célula espelho escapasse do confinamento —seja liberada acidentalmente de um laboratório ou libertada como uma arma biológica.
Os pesquisadores então passaram semanas vasculhando a literatura científica para ver se conseguiam falsificar sua hipótese. “Todos nós fizemos o nosso melhor para derrubá-la”, disse o evolucionista Vaughn Cooper, da Universidade de Pittsburgh. “E falhamos.”
Células espelho
O problema com as células espelho é que provavelmente elas poderiam contornar a maioria das barreiras que mantêm os organismos comuns sob controle. Para combater patógenos, por exemplo, nossos corpos devem primeiro detectá-los com sensores moleculares.
Esses sensores só podem se ligar a proteínas canhotas ou DNA e RNA destros. Uma célula espelho que infectasse trabalhadores de laboratório poderia se espalhar por seus corpos sem acionar qualquer resistência de seus sistemas imunológicos.
Uma vítima de células espelho abrigaria um vasto suprimento dos micróbios, que poderiam se espalhar para outras pessoas e iniciar uma pandemia. E seria uma que a medicina provavelmente não seria capaz de deter.
Um antibiótico normalmente funciona contra micróbios comuns ao se ligar às suas proteínas ou DNA. Tal medicamento provavelmente seria inútil contra uma célula espelho, porque o medicamento não conseguiria se fixar adequadamente a uma molécula essencial.
Todos os animais dependem de sensores de patógenos semelhantes para ativar seus sistemas imunológicos e provavelmente falhariam em reconhecer células espelho.
As plantas têm seus próprios detectores de patógenos, que também falhariam. “Todas as plantas do mundo seriam incapazes de detectar essas bactérias”, alertou Jones. Com informações do The New York Times, reproduzidas pela Folha de São Paulo.