Uma atrocidade ambiental, com a conivência de lobistas e poderosos, começou a dar seus primeiros passos em Abaetetuba. Trata-se da construção de um Terminal Portuário de Uso Privado (TUP), um dos maiores do estado, que irá receber grãos do centro-oeste brasileiro e exportá-lo para clientes estrangeiros. A empresa dona do projeto é a multinacional Caregill. Ela chegou silenciosamente, mas os impactos ambientais e sociais de sua presença já começam a fazer barulho e a indignar os abaetetubenses. “Vieram nos matar”, afirmam.
A instalação de boias de amarração no Rio Capim, local escolhido pela Cargill como parte de seu projeto, está provocando a revolta de pescadores e ribeirinhos da região. Sem ouvir ninguém e amparada em um Estudo de Impacto Ambienta e Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) concedido em 2017 pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do governo do Pará – e mais recentemente pelo licenciamento ambiental -, a Cargill mandou para o local uma balsa de empresa por ela terceirizada. Na área estão sendo colocadas boias onde 148 famílias pescam e do rio retiram a própria sobrevivência, seja para se alimentar ou vender o pescado.
Em documento obtido pelo Ver-o-Fato, a Capitania dos Portos na Amazônia Oriental concedeu autorização à Cargill para que ela ponha ” as boias de amarração para dois comboios fluviais”. A autorização, com validade até 30 de outubro de 2024, é assinada pelo capitão de mar-e-guerra e capitão dos Portos, Manoel Oliveira Pinho e seu ajudante, o capitão-de-fragata, Cláudio Ricardo Gomes Sanches. A autorização beneficia a empresa Norte Marine Industria, Reparos e Operações Fluviais Ltda, terceirizada da Cargill.
Desde sábado passado, dezenas de pequenas embarcações, mobilizadas pelos pescadores e ribeirinhos, cercaram a balsa a serviço da Cargil, enquanto manifestantes gritavam. exigindo a retirada dos equipamentos do Rio Capim. O Ver-o-Fato, por meio do repórter Otaciano Santos, o “The Otaciano”, esteve no domingo, 7, na Ilha do Capim e acompanhou os protestos dos pescadores. O resultado desse trabalho está em um vídeo com mais de vinte minutos que os leitores poderão assistir ao final desta matéria.
O impasse na área continua e o Ver-o-Fato tentou ouvir a direção da Cargill, em São Paulo. Ligamos por três vezes, mas não obtivemos sucesso para saber quais as explicações da multinacional para o que ocorre na região. O espaço está aberto à manifestação da empresa.
A Cargill tem um projeto ambicioso em Abaetetuba. O EIA-Rima concedido pela Semas e o licenciamento ambiental tratam sobre a instalação de um Terminal Portuário de Uso Privado (TUP) que ficará localizado às margens do Rio Tocantins, em terreno de aproximadamente 359 hectares. Até 2022, a previsão é de exportação de 9 milhões de toneladas de granéis vegetais por ano.
“Aonde está balsa a serviço da Cargil fica um dos maiores locais de pesca da Ilha do Capim”, afirmou o pescador Wellinton Azevedo. Ele disse ao Ver-o-Fato que a pesca na ilha beneficia mais de 148 famílias. “É daqui que se tira a alimentação dessas famílias tradicionais, um legado com mais de 100 anos de existência. O peixe serve não apenas para alimentar, mas como renda das famílias. “Essas boias que estão colocando impedem a pesca para outros pesqueiros, também”, enfatizou Azevedo, para quem a área de pesca “está sendo destruída”.
Depoimentos e reclamações
“Meu nome é Jairo, sou morador da Ilha do Capim e desde que me entendi por gente a nossa vivência é através da pesca e da cultura do açaí. Então, hoje nós estamos sendo ameaçados, estamos querendo viver. isso que está acontecendo aqui é uma forma muito violenta por essas grandes empresas e grandes projetos. Estão querendo colocar essas boias em nossa região e isso está afetando demais a nossa convivência como ribeirinho, como pescador”, disse o pescador.
Deiveson Pereira Azevedo também se manifestou: ” sou morador aqui da Ilha do Capim, sou pescador e agroextrativista. Moro aqui desde que nasci e somos moradores que dependemos da pesca, da caça e do extrativismo. Sem o peixe a nossa vida começa a morrer. Fazemos um apelo às autoridades, ao Ministério Público Federal (MPF), aos canais de televisão pra que possam nos ajudar a mostrar os problemas que essas empresas vem causando em nosso território”.
Outro ribeirinho, de prenome Manoel, relatou ao Ver-o-Fato que estava na manifestação para ” dar nosso primeiro grito e recado à empresa Cargill, que veio colocar boias nos nossos pesqueiros, cercando nossas comunidades, sem autorização e sem nenhuma explicação para o nosso povo”. “Quero aproveitar e fazer um apelo ao governo do Estado e Secretaria de Meio Ambiente e a todos os órgãos federais para que eles possam realmente olhar com carinho para todas as nossas comunidades, do Setor 10, do Setor 11 e todas as que vão ser impactadas com o assentamento dessa empresa aqui. A partir do momento em que ela vier se instalar definitivamente, todas as comunidades estarão prejudicadas com essa situação”.
Miguel Matos de Jesus também disse o que pensa: ” do jeito que está indo, não teremos como viver. Estamos ficando presos”. Outro pescador, Eduardo, pediu “por mim mesmo e por todo o município de Abaeté, para que se possa olhar as pessoas com um olhar diferente. São pessoas que necessitam de um olhar melhor. Uma empresa dessa vem trazer muitos prejuízos para o município de Abaeté”.
Também chamado Manoel, outro pescador, considera a situação “muito drástica”, acusando empresas como a Cargill de não terem respeito com as comunidades tradicionais, com os pescadores. “Elas estão colocando boias para que a gente não possa mais pescar., pois o peixe está ficando escasso. A gente não quer guerra, a gente quer paz, como comunidade e como ser humano, mas que respeitem nossa comunidade”.
Joseane conta que o marido dela perdeu uma rede de pesca. “A balsa desse negócio encalhou em cima da rede e ele quase perdeu a vida dele e do meu sobrinho. Até agora não tiveram resposta sobre o que fizeram. As pessoas não sentem remorso por nada, pelas crianças e jovens”. Joseane narra que a poluição do rio Capim já é um fato preocupante. Quando a filha dela toma banho no rio, o corpo fica cheio de problemas na pele. “Ela chora muito”, resume.
“Somos violentados”
A pescadora Ângela relata que não está dando mais para vender peixe, só consumir. “Os peixes e os mariscos estão acabando por aqui, cada vez mais”, desabafa, acrescentando que um paneiro, antes, ficava quase cheio de pescado e hoje “quase nada”. Para Deuza Pereira Azevedo, empreendimentos como os da Cargil, estão massacrando a população, acabando com a vida do povo.
“”Nós somos impactados há muitos anos por esses grandes projetos. Somos violentados e isso é uma forma de violência. A violência tem muitas caras e essa aqui é uma delas. Ela vem e não pergunta, não vem ninguém aqui. A ilha é toda habitada, mas eles chegam e não perguntam. Aqui tem pessoas, aqui têm vidas, vidas humanas. Somos trabalhadores e amamos a nossa terra e o nosso povo e vamos lutar até a morte pra defender a vida do nosso povo. Já chega de tanto sofrimento, de tanto não enxergarem a gente”, afirmou Deuza.
“Vou procurar o governo”, diz prefeita
A prefeita de Abaetetuba, Francinete Carvalho, apareceu em um barco no momento em que o Ver-o-Fato fazia esta reportagem. Ela disse que tinha vindo para “ouvir a minha população e entender o que eles estão reivindicando “. Segundo a prefeita, ela prometeu entrar em contato com a empresa, afirmando que ” a gente precisa de respostas” .
De acordo com Francinete, ela quer saber como foi feito o licenciamento ambiental à empresa Cargill, dizendo que isso ocorreu antes da gestão dela. “Estou aqui pra ouvir quem de fato tem de ser ouvido, que são os moradores da região, do entorno, e para fazer a defesa deles. Eu represento esse povo e vou levar para essa empresa o que eles estão reivindicando”, resumiu.
Perguntada pelo Ver-o-Fato se na opinião dela a população está sendo prejudicada pela Cargill a prefeita respondeu que primeiro ouviria os manifestantes para entender como eles estão sendo prejudicados. Disse ainda que embora seja abaetetubense “não vivo nessa ilha”. Ela explicou: “meu papel é ouvi-los, qual o prejuízo, se existe esse prejuízo, o que eles reivindicam, para que eu possa ser a porta-voz deles diante dessa empresa”.
Francinete afirmou que os pescadores e ribeirinhos presentes à manifestação não estavam ali por acaso, mas por se sentirem prejudicados. “Quero entender o tamanho desse prejuízo, se existe”. Uma audiência virtual que era feita entre a prefeita, secretários de Abaeté e dirigentes da Cargill, para saber detalhes sobre o projeto da empresa na Ilha do Capim, acabou interrompida por problema na Internet.
“Estava marcado para vir um representante da Cargil aqui em Abaetetuba, na sexta-feira,5, mas ele ligou dizendo que não havia sido autorizado a viajar, porque é a política da empresa por conta do Coronavírus. Ele remarcou para voltar quinta-feira, 11”, anunciou a prefeita. Sobre a necessidade de uma ação judicial para a retirada da Cargil da ilha, Francinete disse que isso é possível, mas que “não é desse jeito”.
Moradora faz cobrança
Enquanto a prefeita falava ao microfone, em cima de um barco, uma moradora a interrompeu, perguntando se Francinete estava ao lado dos pescadores. A prefeita disse que “sim”, mas a moradora completou: “então, se a senhora está do nosso lado, ajude eles (Cargill) a embarcar o que é deles e ir embora daqui, porque não temos alimento para dar para as nossas famílias”.
Outra mulher, disse para a prefeita: “então a gente não vale nada?”. Francinete respondeu: ” se a gente achasse que vocês não valiam nada mão estaríamos aqui. Nós estamos aqui e só queremos fazer a coisa certa”. Segundo a prefeita, é preciso buscar todas as instâncias e “chamar o governo do Estado e a Semas, para discutir” o problema. “Hoje, é a Cargill, mas amanhã poderão ser outras empresas”, afirmou ela.
Os pescadores aproveitaram a presença da prefeita e o diálogo com ela para pedir que Francinete negociasse com um representante da empresa a saída da balsa que dava suporte à Cargill para a colocação das boias de flutuação no Rio Capim. Ela pediu um tempo e ligou para alguém, relatando o que estava acontecendo. A resposta, do outro lado da linha, era indagar se um representante dos manifestantes iria conversar com a empresa, mas a resposta foi “não”. Até porque a empresa dona da balsa era de uma terceirizada contratada pela Cargill. Os manifestantes só falariam se fosse com a Cargill.
Reunião na Casa Civil
Horas depois – tudo testemunhado pelo Ver-o-Fato -, ainda na embarcação, a prefeita trouxe a notícia de que não havia conseguido falar com ninguém da Cargill. “Infelizmente meu celular não tem área aqui”, justificou Francinete. Houve reclamações dos pescadores, reiterando que a balsa a serviço da multinacional deveria deixar o local, porque os barcos dos manifestantes não iriam sair dali enquanto isso não ocorresse.
A prefeita, antes de se retirar, informou que a Semas havia concedido o licenciamento para a Cargill atuar na área, enfatizando que esse era mais um motivo para “pedir uma audiência e reunir com o governo do Estado sobre em que fase está esse processo de licenciamento. Francinete disse que não tinha o telefone dele para “ligar agora para o governador (Helder Barbalho)”, prometendo que na segunda-feira, ontem, 8, ligaria para a Casa Civil. pedindo audiência, com a presença da Semas
De acordo com o vice-prefeito, Cláudio Lobato, que também é presidente da Colônia Pescadores, “colocar boias no rio não trará peixes, mas sim irá afastá-los”. Ele disse que estava com a prefeita e o secretário de Meio Ambiente de Abaetetuba, de prenome Rafael, para “ouvir os pescadores”. Lobato contou que estava na ilha onde mora quando foi avisado sobre o protesto. “Independente de qualquer coisa, a nossa população não ficará desamparada”, frisou.
Francinete, nem sua assessoria, informaram ao Ver-o-Fato se a reunião na Casa Civil foi marcada ou quando irá se realizar.
Abaetetuba tem pressa.
Discussion about this post