A empresa Agropalma, acusada pelo Ministério Público do Pará de fraudes e grilagem de terras, além da falsificação de documentos públicos para se apossar de 106 mil hectares entre o Acará, Moju e Tailândia, não parou sua metodologia judicial de requentar café e tentar empurrá-lo goela abaixo de desembargadores do Tribunal de Justiça do Pará.
Essas iniciativas, todas fracassadas, sempre ressurgem com a esperança de que algum desembargador desinformado caia na armadilha e dê à Agropalma a razão que ela nunca teve nesses anos todos de batalhas judiciais perdidas pela empresa.
Não é diferente do que deve ocorrer nesta manhã de segunda-feira, 26, quando será julgado, pela 1ª Turma de Direto Público do TJ paraense um recurso contra decisão de 2020 do juiz da Vara Agrária de Castanhal, André Luiz Filo-Creão Garcia da Fonseca, que determinou o bloqueio, a pedido do Ministério Público do Pará (MPPA), dos registros de 12 fazendas cujo total alcança 35 mil hectares.
A relatora do recurso em que a Agropalma tenta derrubar a decisão do juiz agrário é a desembargadora Ezilda Pastana Mutran. Além dela, fazem parte da 1ª Turma de Direito Público, com direito a voto, os desembargadores Célia Regina de Lima Pinheiro, Roberto Gonçalves de Moura, Maria Elvina Gemaque Taveira e Rosileide Maria da Costa.
Trata-se da última cartada da Agropalma para tentar manter de pé uma fraude já rejeitada por outros julgamentos do próprio TJ paraense e mesmo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por onde a empresa também já nadou, sofrendo derrotadas. O recurso a ser julgado nesta segunda-feira é visto entre alguns desembargadores como ação meramente protelatória.
Aberrações derrubadas
As fraudes descobertas pelo MP chegam ao limite da aberração. Foi com base nessas maracutaias que a Agropalma tentou no cartório de Tailândia burlar a decisão da desembargadora Luzia Nadja, que em 2011 anulou o inventário de Jairo Mendes Sales, numa sentença já transitada em julgado.
A manobra cartorial foi tão escandalosa que 2.678 hectares foram transformados, num passe de mágica, em 35.000 mil hectares dos lotes que constituíram, de forma criminosa, a fazenda Porto Alto. Nessa área estão parte do plantio de folha de palma e a planta industrial da Agropalma.
Vale lembrar que a fazenda Porto Alto é a mesma da matrícula de número 519, que a desembargadora Luzia Nadja Nascimento, em 2011, já havia cancelado no cartório de registro de imóveis do Acará. Ocorre que a Agropalma abriu 12 novas matrículas das mesmas áreas, desta vez em Tailândia. O juiz André Filo-Creão, diante das evidências tão gritantes das fraudes, bloqueou as matrículas.
Fraudes “ocultas”
Em um parecer fundiário de 2015, da procuradora Cristina Magrin, da Procuradoria Geral do Estado (PGE), ela destaca o caso da fazenda Porto Alto e a matrícula 519, folhas 265, livro 2-A, do Cartório do Acará. A área fica situada na margem esquerda do Rio Acará. A origem remonta à grilagem de Jairo Mendes Sales, já cancelada por decisão de Luzia Nadja, vale repetir.
A procuradora Magrin enfatiza no parecer que a abertura de 12 novas matrículas no Cartório de Tailândia “visavam ocultar a fraude e ainda contrariando o princípio da territorialidade do registro. A fraude foi feita da seguinte forma para legitimar a posse da empresa sobre 35 mil hectares”.
A Agropalma chegou a negar ter sido notificada pela procuradora da PGE. O Ver-o-Fato, porém, tem em seu arquivo uma notificação extrajudicial assinada à época pelo procurador-geral do Estado, Ophir Cavalcante Júnior, e recebida e carimbada pela coordenadora jurídica da Agropalma, Simone M. Raposo Santos, na data de 8 de agosto de 2017. No documento, a empresa confirma que foi, sim, intimada a se manifestar sobre o parecer definitivo de Cristina Magrin no prazo de 15 dias a contar da data de recebimento da notificação.
A empresa também negou que a matrícula 519 tenha sido cancelada pela decisão da desembargadora Luzia Nadja. O cancelamento, de fato, ocorreu. Prova disso é o ofício 110/2009, datado de 3 de dezembro de 2009 e assinado pelo então cartorário interventor do Acará, Francisco Valdete Rosa do Carmo. Nesse ofício, Valdete informa à desembargadora o bloqueio de diversas matrículas, entre elas a 519, em favor da fazenda Porto Alto.
Sobre a área existem duas matrículas de registro de imóvel, sendo uma de número 49, datada de 1976, e a outra, de número 519, de 1979, ambas registradas no cartório do Acará. Os registros foram bloqueados em 2 de dezembro de 2009 e cancelados em 31 de agosto de 2010.
“Vício na origem da documentação”, diz juiz
No fundamento de sua decisão, o juiz André Luiz Fonseca diz que “a probabilidade do direito encontra-se presente, uma vez que a inicial apresentou documentação a qual, prima facie, apresenta informação que demonstra, pelo menos nessa análise preliminar, inconsistência fática dos documentos em questão, eis que apontam no sentido de existir vício na origem da documentação, possivelmente decorrente de prática conhecida como grilagem de terras, sendo estes fatos capazes de induzir no julgador um juízo de probabilidade de que a versão do autor é correta, está em conformidade com a lei, perfeitamente possível em uma situação de cognição sumária”.
Quanto ao perigo de dano, alegado pelo Ministério Público ao solicitar o bloqueio das escrituras de compra e venda das terras em um cartório de São Paulo (SP) e de Belo Horizonte (MG) , o juiz afirma que “de igual modo restou provado, eis que a utilização de documentos inidôneos pode comprometer a segurança jurídica no âmbito das atividades notariais, mormente porque o registro de um imóvel, até prova em contrário, possui presunção de veracidade”.
Por fim, sobre a reversibilidade dos efeitos, André Luiz Fonseca argumenta na sentença: “devemos observar que também se faz presente, na medida em que caso a tutela não venha a ser confirmada, poderá voltar ao estado anterior, haja vista que, por força da presente decisão haverá apenas o bloqueio da Escritura Pública”.
O magistrado também salienta que na análise do pedido formulado pela promotora do MP, Eliane Moreira, “observo que, diante das asserções acima apresentadas, nas quais restou demonstrado, pelo menos nesta análise preliminar, ter havido vício na origem das propriedades em questão, situação reconhecida expressamente pelo Egrégio TJE/PA nos autos da ação originária no 2003.3.0013575, julgada pela Desembargadora Luzia Nadja Guimarães Nascimento, resta inconteste a necessidade de se realizar o bloqueio da Escritura Pública em questão. Isto porque a possível inexistência física da propriedade e seu reconhecimento irregular, apenas no campo documental, tem o lastro de acarretar sérios prejuízos à higidez documental, justificando-se, pois, a concessão da medida de urgência”.
MP pediu condenação
A promotora de justiça Eliane Moreira, da Vara Agrária de Castanhal, ajuizou a ação civil pública em abril de 2020 – e o que foi julgado pelo juiz André Luiz Fonseca foi apenas a tutela de urgência, para bloquear os registros das escrituras de compra e venda dos 35 mil hectares. Na ação são apontadas uma série de fraudes e irregularidades praticadas pela empresa, com participação do Instituto de Terras do Pará (Iterpa) e da empresa IBD Certificações Ltda.
A promotora pediu ainda que a Agropalma seja condenada “a pagar indenização por dano moral coletivo causado à sociedade paraense em decorrência das fraudes perpetradas relativas aos registros públicos, tendo em vista os graves prejuízos econômicos, sociais e ambientais que tal prática ocasiona”. O inquérito civil 000628-040/2016, que precedeu a ação penal, foi instaurado para analisar os documentos imobiliários de áreas supostamente da empresa Agropalma, após denúncias de fraudes concretizadas através de esquema de grilagem de terras, apontando-se irregularidades nas cadeias dominiais.
promotora lembrou que parte do histórico de irregularidades alegadas na ação pode ser obtida na decisão monocrática de 30 de agosto de 2011 da então desembargadora Luzia Nadja Guimarães, na ação cível 2003.3.0013575, que ressalta que as fraudes que macularam os registros constantes na origem dos títulos definitivos e das matrículas impugnadas, já foram reconhecidas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Pará em demanda judicial de iniciativa do próprio Estado do Pará.
Segundo Eliane Moreira, mesmo com a decisão judicial, se fez necessário o ajuizamento da presente ação em razão de que, supervenientemente às fraudes decorrentes de ações demarcatórias ocorridas na década de 70, mas declaradas pelo Tribunal de Justiça somente em 2011, “foram expedidos títulos definitivos pelo Iterpa relativos às mesmas áreas sem a observância da legislação então vigente e abertos registros públicos nos cartórios de Acará e de Tailândia, os quais não foram diretamente alcançados pela decisão da desembargadora”.
Desse modo, diz ela, “tratando-se de nulidade de atos administrativos, quais sejam os títulos definitivos, e o cancelamento dos registros deles decorrentes, não tendo havido a anulação proveniente da autotutela administrativa, deve-se provocar o pronunciamento jurisdicional”.
Sucessão de trapalhadas
Conforme constatou o Tribunal de Justiça do Pará, pessoas supostamente denominadas Jairo Mendes Sales e Eunice Ferraz Sales propuseram, perante a Pretoria de Acará, ações demarcatórias cujas sentenças homologatórias dos limites dos imóveis das referidas pessoas, registradas sob os números 3251 a 3255, foram publicadas no Diário Oficial de 04 de julho de 1974.
As sentenças proferidas na Pretoria de Acará aumentaram, em muitas vezes, a extensão das áreas transcritas em nome de Jairo Mendes Sales e Eunice Ferraz Sales, passando de 2.678 hectares para 35.000 hectares.
Desse modo, verifica-se que, em 10 de maio de 1975, Jairo Mendes Sales e outros venderam a José Miranda Cruz, Osvaldo Miranda Cruz, Vicente Miranda Cruz, Pedro Miranda Cruz Oliveira, Joaquim Miranda Cruz e Francisco Miranda Cruz, através de Escritura Pública de Compra e Venda lavrada no cartório de Acará, uma área de 35.000 hectares.
Em seguida, Pedro Miranda de Oliveira e os demais teriam realizado promessa de compra e venda da área de 35.000 ha à José Roberto Barbosa e Antônio Barbosa Vilhena pelo valor de 40 milhões de cruzeiros.
Verificando, porém, a inexistência de domínio, a necessidade de legitimação dos títulos originários e a disparidade entre a área dos títulos com as demarcações realizadas em juízo, os compradores propuseram ação judicial para a rescisão contratual, na qual o Estado do Pará, representado pelo Iterpa, teria figurado como litisconsorte ativo, reivindicando as áreas para o patrimônio estadual.
Por sentença de 02 de julho de 1979, os pedidos foram julgados procedentes para decretar a rescisão da promessa de compra e venda, a restituição do sinal em dobro, a nulidade da demarcatória e o cancelamento de registros imobiliários.
Estado e Iterpa calaram
Não foram apresentados títulos de propriedade hábeis a demonstrar o domínio das terras e, portanto, a legitimidade do autor em pleitear a homologação da demarcação das terras, de modo que os títulos de posse na época existentes não haviam sido submetidos ao necessário processo de legitimação.
Em 2009, os registros foram bloqueados por decisão em ação cível. Apesar disso, em 2010, as 12 matrículas das áreas decorrentes dos títulos expedidos pelo Iterpa teriam sido transferidas do cartório de Acará para o cartório de Tailândia.
Para a promotora, o caso se encontra dentro de um conjunto maior de investigações de irregularidades em registros da empresa Agropalma, objeto do inquérito civil no 000628-040/2016, já tendo sido proposta ação civil pública referente às Fazendas Roda de Fogo e Castanheira (processo 0803639-54.2018.814.0015), e agora a ação referente à Fazenda Porto Alto.
De acordo com a promotora, isto “demonstra um reiterado envolvimento da empresa em condutas fraudulentas relativas ao patrimônio público e ao sistema registral, bem como a inércia do Estado do Pará e do Iterpa em, mesmo após requererem o cancelamento de registros perante o TJPA, adotarem condutas que violam o patrimônio fundiário estadual em razão da expedição de títulos nulos e de não tomarem providências para a retomada das terras”.
A procedência dos pedidos da atual ação civil pública culminará no reconhecimento de inexistência de qualquer direito legítimo de propriedade da Agropalma sobre as áreas objeto das matrículas ora impugnadas, aponta a promotora.
Desse modo, a inexistência de propriedade válida repercute nos ativos da empresa, de forma que os imóveis em questão devem ser retirados de seu balanço patrimonial a fim de que não induzam os acionistas a erros, imaginando que estes bens integrariam o patrimônio da empresa quando, na realidade, são terras públicas.