A pandemia expôs a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) para todos os brasileiros – mesmo os que têm plano particular. A rede pública foi capaz de vacinar 900 mil pessoas por dia, apesar da coordenação federal falha. Além do subfinanciamento crônico, estudo feito por economistas do Banco Mundial mostra que 30% da verba da União para o SUS é mal usada. Para especialistas, evitar o desperdício de recursos passa por melhorar a distribuição dos médicos, fazer parcerias público-privadas (PPPs), dentre outras medidas.
“A vacinação contra covid demonstrou que o SUS é consolidado no Brasil. Um exemplo para países com nível de renda semelhante”, diz Edson Araujo, economista sênior do Banco Mundial, em Washington. Os desafios de oferecer um sistema universal para 200 milhões de habitantes, porém, ficarão ainda maiores nos próximos anos, com o envelhecimento da população.
“Vivemos uma tempestade perfeita: a economia sofreu uma contração grande e, ao mesmo tempo, houve gastos adicionais com saúde provocados pela pandemia”, afirma ele. “Se os gastos com saúde continuarem a crescer mais que a produção de riquezas no Brasil, em algum momento o País poderá entrar em um colapso econômico porque a saúde absorve cada vez mais a produtividade gerada pelos outros setores”, explica. “O cenário brasileiro não é propício a aumento de gastos com saúde no curto prazo, o que torna ainda mais importante a discussão sobre eficiência.”
Persistem dois desafios principais: melhorar a qualidade dos serviços (varia muito entre os Estados e regiões) e garantir acesso a eles. Segundo a análise dos autores, apenas em 2017 as ineficiências do SUS somavam R$ 35,8 bilhões.
A saúde tem um dos orçamentos mais significativos do governo brasileiro (R$ 304 bilhões para os três níveis de governo em 2019, R$ 128 bilhões só para o governo federal em 2019). “Se os padrões atuais de crescimento nominal dos gastos se mantiverem, a conta do SUS chegará a mais de R$ 700 bilhões até 2030”, escrevem. E sugerem como reduzir o problema.
Tabela SUS
Necessidades de financiamento para a adequada manutenção do sistema não faltam. Uma das reclamações recorrentes dos prestadores de serviços, gestores e parlamentares é a falta de atualização da tabela SUS, o instrumento que regula as transferências do governo federal para os Estados e municípios. Com valores sem reajuste há anos, a lista estabelece baixa remuneração para a maioria dos mais de 5 mil procedimentos realizados pelo SUS.
Segundo especialistas, essa defasagem estimula distorções. “Podemos dizer que a tabela SUS é para os inimigos”, diz a pesquisadora Maria Angélica Borges dos Santos, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.
Coordenadora técnica do livro Contas de Saúde na Perspectiva da Contabilidade Internacional, Maria Angélica diz que poucos prestadores privados são remunerados de acordo com a tabela SUS. “Ela estabelece o valor de R$ 400 por um parto, mas há prestadores que recebem R$ 10 mil pelo mesmo serviço”, afirma.
Segundo a médica, a tabela SUS atual funciona, na prática, como um piso. “Essa lista provoca uma desigualdade na remuneração dos prestadores porque eles passam a depender de complementos dos municípios e dos Estados para receber um pouco mais”, diz. O grupo de Maria Angélica trabalha na criação de uma tabela que considere os aportes municipais e estaduais para criar uma regra mais confiável. “Não é possível pensar um sistema de saúde sem ter uma tabela mais próxima daquilo que o Brasil pode pagar.”
Tendência
O Institute for Health Metrics and Evaluation informa que o gasto mundial em saúde (US$ 8 trilhões por ano) deve dobrar até 2050. O crescimento das necessidades de financiamento deve acelerar, principalmente nos países de baixa e média renda, onde a população está envelhecendo e os sistemas de saúde ainda enfrentam dificuldades de cobertura e qualidade.
Segundo um estudo publicado por Rudi Rocha, diretor de pesquisa do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), e colegas na revista Health Economics, o Brasil tem um dos maiores gastos nacionais de saúde em relação ao PIB, em comparação a outras nações da América Latina. No entanto, ele continua perto de três pontos porcentuais abaixo da média na comparação com os países de alta renda. A diferença é que, no Brasil, o gasto público em saúde é mais baixo que nas nações ricas.
“O conjunto das evidências mostra que, apesar de gastarmos pouco no setor público, os avanços em saúde no Brasil têm sido muito importantes”, diz Rocha. “Em uma visão macro, o País não gasta mal em saúde, mas poderíamos gastar melhor em algumas circunstâncias específicas”, diz Rocha. “Poderíamos, por exemplo, reduzir a duplicação de esforços e os exames desnecessários”.
Com a adoção do teto de gastos, a capacidade de investimentos federais na saúde está bastante reduzida. Isso obriga os Estados e os municípios a assumir a maior parte do financiamento do SUS. “Há uma tensão surgindo aí, porque eles já estão gastando bastante com saúde e chegarão a um limite”, afirma Rocha. “Se colocarmos um teto geral de gastos públicos nas três esferas, em 40 anos o Brasil chegará a assumir apenas 20% do gasto total em saúde (o restante será gasto privado)”, diz. “Essa média é comparável à dos países subsaarianos mais pobres.”
Segundo os autores, em 2040 as necessidades de financiamento da saúde vão atingir 11,7% do PIB. Em um cenário de congelamento dos gastos federais, os gastos públicos em saúde devem diminuir sete pontos porcentuais até 2060, enquanto a importância dos governos locais no sustento do sistema público deve aumentar substancialmente. “O SUS é uma das mais importantes políticas de redução de desigualdade no Brasil, um país que é muito bom em gerá-la”, diz Rocha. “Para financiar as necessidades futuras de saúde, a sociedade terá de mobilizar recursos adicionais e refletir sobre o que deve ser prioridade nos gastos públicos.”
SOLUÇÕES PROPOSTAS
Ganhos de escala
A rede hospitalar do SUS opera em baixa escala. Ou seja: grande parte dos estabelecimentos nos pequenos municípios tem poucos leitos, alta taxa de desocupação e baixo volume de procedimentos Para reduzir esse problema, é preciso investir na regionalização. Em vez de manter hospitais de pequeno porte em grande parte dos municípios, é mais inteligente transformar estabelecimentos com menos de 30 leitos em postos de saúde ou policlínicas e manter hospitais gerais com mais estrutura (entre 200 e 300 leitos) nos municípios maiores para atender toda a região.
Distribuição da força
Há dificuldades para distribuir os trabalhadores da saúde (em especial, os médicos) pelo território. Possíveis soluções seriam garantir mais recursos à atenção primária à saúde (APS) em áreas remotas e melhorar a integração dela aos hospitais regionais; além de ampliar o escopo da prática de enfermeiros na APS, de forma a reduzir dependência de médicos.
Premiar desempenho
O ideal seria que cada brasileiro soubesse o nome de seu médico de família, fosse acompanhado por ele e por toda a equipe de APS e tivesse suas informações de saúde e socioeconômicas registradas corretamente. Dessa forma, seria possível responsabilizar cada equipe pela saúde dos cidadãos e oferecer remuneração extra e outros incentivos às equipes que conseguissem melhorar determinados indicadores. Em vez de remunerar as unidades de saúde e seus profissionais só pela quantidade de atendimentos e procedimentos, o SUS adotaria também alguma remuneração pelo resultado alcançado.
Gestão e investir em PPP
É preciso adotar mais parcerias público-privadas (PPPs). O processo burocrático de seleção e contratação de pessoal por concurso é um dos grandes entraves para aumentar equipes nos serviços da administração direta. Segundo os estudiosos do Banco Mundial, um ente privado teria mais agilidade na gestão de pessoas e mais capacidade de oferecer boas condições de trabalho e incentivos. Há fortes evidências de que hospitais que funcionam com gestão autônoma, tais como Organizações Sociais de Saúde (OSS), têm desempenho superior. (AE)