A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu nesta quarta-feira, 8, restringir os procedimentos oferecidos pelas operadoras de planos de saúde no País. Seis dos nove ministros integrantes do colegiado votaram a favor da fixação do rol taxativo, que desobriga as empresas a cobrir pedidos médicos de pacientes que não estejam previstos na lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
A votação ocorreu sob protestos em frente à sede do STJ. Ativistas e artistas como Marcos Mion, Dira Paes, Bruno Gagliasso, Titi Muller, Paulo Vieira e Juliette mobilizaram a hashtag “Rol Taxativo Mata” nas redes sociais, que chegou a se tornar o 11º assuntos mais comentado na tarde desta quarta no Twitter. Os protestos, porém, não surtiram efeito dentro da Corte.
O julgamento foi retomado com o placar empatado em 1 a 1. Em fevereiro, o ministro Villas Bôas Cueva apresentou um pedido de suspensão do julgamento. Ele foi o primeiro a votar na tarde desta quarta.
Requisitos
Embora tenha seguido o voto do relator do caso, Luis Felipe Salomão, na defesa do rol taxativo, Cueva estabeleceu quatro requisitos para garantir a segurança jurídica dessa regra e dissipar as tensões entre operadoras e pacientes.
São eles:
1. O rol da ANS é, em regra, taxativo;
2. A operadora de plano ou seguro de saúde não é obrigada a arcar com pedido de tratamento não constante no rol, caso exista procedimento efetivo, eficaz e seguro capaz de garantir a cura do paciente e já esteja incorporado no rol;
3. É possível a contratação de cobertura ampliada, ou a negociação de aditivo contratual de procedimento que não esteja incluído no rol;
4. Não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol, pode haver a título excepcional a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistentes desde que: não tenha sido indeferido pela ANS a incorporação do procedimento ao rol; haja a comprovação da eficácia do tratamento a luz da medicina baseada em evidências; haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacional e estrangeiro, como Conitec e Natjus; seja realizado quando possível o diálogo interinstitucional dos magistrado com experts na área da saúde, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a justiça federal.
“O rol taxativo permite previsibilidade essencial para a elaboração de cálculos atuariais embasadores das mensalidades pagas pelos beneficiários, aptas a manter a médio e longo prazo os planos de saúde sustentáveis”, argumentou o ministro. “A alta exagerada de preços e contribuições provocará barreiras à manutenção contratual, transferindo a coletividade de usuários da saúde pública a pressionar ainda mais o SUS”, completou.
As propostas de Cueva foram incorporadas ao voto de Salomão, que foi seguido integralmente pelos ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Marco Buzzi e Marco Belizze. A divergência foi aberta ainda na primeira sessão de julgamento, em fevereiro, pela ministra Nancy Andrighi, que fez um complemento ao seu voto na sessão desta quarta. Ela argumentou que “a natureza exemplificativa do rol de procedimentos e eventos em saúde não leva à obrigatoriedade de cobertura de todo e qualquer tratamento prescrito”. Apenas os ministros Moura Ribeiro e Sanseverino a acompanharam.
“Saliento que, no meu entendimento, a questão relativa à natureza do rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS não deve ser analisada sob o prisma do tratamento prescrito para essa ou aquela doença, sob pena de permitirmos o cometimento de mais injustiças, como aquelas que sofreram até recentemente os beneficiários de transtorno de espectro autista, que tiveram a respectiva cobertura negada pelas operadoras, sob o fundamento de ausência de previsão naquele rol”, afirmou a ministra Nancy Andrighi.
“Soa pois incoerente falar em taxatividade de um rol que é periodicamente alterado para inclusão e exclusão de tecnologia em saúde”, completou.
O caso concreto analisado pelo STJ tratava de um recurso especial apresentado pela família de um paciente com esquizofrenia paranoide contra a empresa Unimed, que negou o acesso a um procedimento cerebral não previsto no rol da ANS para o plano que ele havia contratado. Ao votar, o ministro Marco Buzzi argumentou que a discussão do caso pelo Judiciário foi necessária porque, mais uma vez, os Poderes Executivo e Legislativo se omitiram da responsabilidade primária.
Em nota, a Unimed afirmou que “a taxatividade do rol assegura a qualidade e a segurança assistencial, uma vez que procedimentos e medicamentos a serem incluídos na cobertura devem passar pela avaliação de tecnologias em saúde (ATS)”.
Alvo da disputa, a ANS diz que taxatividade do rol de procedimentos é prevista em lei, que confere à associação a prerrogativa “de estabelecer as coberturas obrigatórias a serem ofertadas pelos planos de saúde, sem prejuízo das coberturas adicionais contratadas pelos próprios consumidores, com o pagamento da contrapartida correspondente”
“Sem a clareza do que deve ser necessariamente coberto, isto é, daquilo que esteja em contrato ou no rol definido pela ANS, fica impossível estimar os riscos que serão cobertos e, logo, definir o preço dos produtos”, explicou.
Os argumentos da ANS foram utilizados pelas operadoras de planos de saúde. As empresas apontava a necessidade de o STJ garantir segurança jurídica e previsibilidade dos preços, impedindo que fossem surpreendidas por demandas não previstas em contrato. Na outra ponta, os consumidores defendiam o rol exemplificativo como forma de assegura que os tratamentos não serão interrompidos por falta de cobertura.
Em vídeo publicado no Twitter, a ativista Andréa Werner afirmou que as associações defensores dos consumidores e de pacientes vão recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para reverter a decisão.
Ela é fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, que defende os direitos de pessoas deficientes, e comentou casos de pacientes oncológicos que perderiam a cobertura de imunoterapia. “Quando a gente fala que rol taxativo mata não é uma palavrinha mágica para gerar engajamento, é porque mata mesmo. Vai gente morrer até isso ir para o STF”, afirmou.
Entenda a decisão
A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu restringir os procedimentos oferecidos pelas operadoras de planos de saúde no País. Os ministros definiram que a natureza do rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é taxativo, o que desobriga empresas de cobrir pedidos médicos que estejam fora da lista.
O entendimento afeta os cerca de 49 milhões de brasileiros que contam com planos de assistência médica. Entenda mais sobre a decisão e saiba como consultar a lista completa:
O que é o rol da ANS?
O rol da ANS consiste em uma lista de “procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde” que os planos de assistência médica do País são obrigados a oferecer. A obrigatoriedade de procedimentos, porém, varia de acordo com o tipo de plano assinado: ambulatorial, hospitalar – com ou sem obstetrícia -, referência ou odontológico.
A lista vigente foi aprovada pela ANS em fevereiro de 2021 e passou a valer em abril daquele mesmo ano. Os mais de 3 mil procedimentos listados podem ser consultados no site da agência
Qual é a diferença entre interpretação taxativa e exemplificativa?
Na interpretação exemplificativa, a lista de procedimentos cobertos pelos planos contém alguns itens, mas as operadoras também devem atender outros que tenham as mesmas finalidades, se houver justificativa clínica do médico responsável. Isso permitia que famílias recorressem à Justiça para que o direito à cobertura pelo plano fosse garantido.
Já na interpretação taxativa, os itens descritos no rol seriam os únicos que poderiam ser exigidos aos planos. Com isso, o pedido para tratamentos equivalentes poderia ser negado, sem chance de reconhecimento pela via judicial.
Por que o STJ estava discutindo a natureza do rol da ANS?
A Corte avaliava dois recursos desde setembro de 2021. Eles buscavam uniformizar a jurisprudência interna do tribunal, para que não haja entendimentos diversos – ou seja, decisões divergentes da mesma Corte, como acontecia.
O que o STJ decidiu?
O STJ decidiu restringir os procedimentos oferecidos pelas operadoras de planos de saúde no País. Seis dos nove ministros integrantes do colegiado votaram a favor da fixação do rol taxativo, que desobriga as empresas a cobrir pedidos médicos que não estejam previstos na lista da ANS.
A decisão foi pelo rol taxativo, mas há exceções?
Caso não haja substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do rol, pode haver a título excepcional a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo.
Mas, para isso, é necessário que: não tenha sido indeferida pela ANS a incorporação do procedimento ao rol; haja a comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina; haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacional e estrangeiro, como Conitec e Natjus; seja realizado quando possível o diálogo interinstitucional dos magistrados com experts na área da saúde, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal.
Qual a posição de grupos de pais e mães de crianças com deficiência?
Consumidores e grupos de pais e mães com deficiência defendiam a interpretação exemplificativa. Eles apontam que o rol é insuficiente e que a ANS não atualiza a lista de forma eficaz. Por isso, temem pela interrupção de tratamento de pacientes com câncer e crianças com autismo, por exemplo.
“Já que a medicina é uma ciência (sempre) em desenvolvimento, o rol não pode ser taxativo em hipótese alguma sob o risco de matar uma pessoa”, disse Vanessa Ziotti, diretora jurídica do Instituto Lagarta Vira Pupa. A instituição, agora, pretende ir até o Supremo Tribunal Federal (STF) contestar a decisão do STJ
Qual era o entendimento da própria ANS?
A ANS aponta que a taxatividade do rol é imposta por lei desde 2000. Ao Estadão, a agência ainda destacou que, por se tratar de “medida extremamente sensível no mercado de planos de saúde”, vem aprimorando o rito de atualização da lista. “Tornando-o mais acessível e célere, bem como garantindo extensa participação social e primando pela segurança dos procedimentos e eventos em saúde incorporados, com base no que há de mais moderno em ATS (avaliação de tecnologias em saúde).”
O que defendiam as operadoras?
As operadoras pediam pelo rol taxativo. Isso por duas razões principais: mais segurança jurídica e porque a lista é usada para definir o preço dos planos.
“Formular o preço de um produto sem limite de cobertura, que compreenda todo e qualquer procedimento, medicamento e tratamento existente, pode tornar inviável o acesso a um plano de saúde e colocar a continuidade da saúde suplementar no Brasil em xeque”, declarou a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), ao Estadão.