Até hoje, a genialidade de Garrincha continua mal compreendida, porque o desempenho dele nos campos de futebol, embora sempre cause espanto, nunca foi analisado fora dos parâmetros do universo futebolístico.
Quando, claramente, deveria ser enxergado como um fenômeno da História da nossa cultura.
Pois,a fúria criativa de Garrincha não se conteve ante os limites rígidos do convencionalismo futebolístico.
Ele desmontava esquemas táticos do esporte, desarrumava a distribuição dos jogadores nos gramados, com dribles que derrubavam adversários, deixando-os ridiculamente de pernas para o ar.
Promovia, assim, um espetáculo-solo nos estádios de futebol com tal força inventiva que espalhava alegria, não só entre os torcedores de seu time oficial, o Botafogo, como até nas torcidas inimigas, unindo todos os torcedores em explosões de risos, como se eles estivessem num teatro a céu aberto.
Estes espetáculos únicos de Garrincha quem por mais tempo, e, melhor, viu foi Nilton Santos, considerado pela FIFA como o maior lateral-esquerdo de todos os tempos.
Os dois foram, juntos, campeões do mundo, duas vezes, pela Seleção Brasileira.
E, jogaram,por mais de dez anos, no Botafogo, lado a lado.
Nilton, claro, não precisava falar de Garrincha em suas palestras e entrevistas. Tinha muito o que contar sobre sua própria carreira brilhante. No entanto, eternamente encantado com a inventividade desconcertante de Garrincha, perto dele, em campo, Nilton, enquanto viveu, por nobreza e generosidade, tomou para si a obrigação de, sobretudo, preservar a memória dos feitos de seu colega.Nunca deixou de falar de Garrincha, quando podia elogiar a si mesmo, até sua morte, em 2003. Dez anos depois do falecimento de seu parceiro.
No entanto, também estiveram sob a observação profissional de Roberto Freire, um médico psicoterapeuta, para quem as performances de Garrincha se constituíram verdadeiros atentados anarquistas à lógica autoritária das partidas de futebol.
Freire valeu-se da sua experiência nos consultórios, para escrever uma reportagem antológica sobre o jogador, publicada pela mitológica Revista Realidade, em maio de 1968.
Na reportagem, ele reconstituiu um episódio que ocorreu, na Costa Rica, quando Garrincha desfrutava da glória de campeão do mundo, obtida na Suécia em 1958.
Momento revelou a natureza libertária dele, frente às obrigações impostas aos atletas pelos interesses de seus clubes,
Garrincha e os outros craques do Botafogo estavam jogando contra o Saprisa, modesto campeão daquele país. A partida se aproximava do seu final e o Botafogo enfrentava um constrangedor empate.
À certa altura daquele instante tenso do jogo, continuou Freire, Garrincha começou a driblar “Deus e o mundo”. E, ficou cara a cara com o goleiro.
Podia facilmente enfiar a bola na rede do adversário.
Chegou a ameaçar chutar. Não chutou. Deu uma voltinha com a bola, driblou mais um adversário. E, de novo, cara a cara com o goleiro, tornou a ameaçar o chute.
Outra vez, desistiu.
O Saprisa inteiro, então, voou para cima dele.
Novos dribles de Garrincha.
E, ele, novamente, ficou sozinho à frente do goleiro.
Fez outra ameaça. Por fim, chutou a bola, marcando o gol.
Por entre as pernas do goleiro.
Um segundo, antes do fim do jogo.
Partida encerrada, Paulo Amaral, o treinador do Botafogo, avançou, furioso, sobre Garrincha:
– Por que não chutou logo, “seo” irresponsável?
Tranquilo, Garrincha explicou:
– O goleiro não queria abrir as pernas, “seo” Paulo”.
Certamente, no ambiente dos jogadores de futebol, um comportamento completamente inusual como este de Garrincha, na Costa Rica, provoca, no mínimo, estranheza.
Mas, estranheza muito maior Garrincha criou entre comentaristas esportivos na Copa do Mundo de 1962, no Chile.
É sabido que, no início desta copa, Pelé se contundiu e teve de ficar fora de todos os outros jogos. Com exagero, talvez, se diz, por isto, que coube a Garrincha ganhar sozinho a copa,
É certo, contudo, que ele fez gols de pé direito, esquerdo, cabeça, e, de falta.
Deixou adversários literalmente, no chão.
No dia seguinte, o jornal esportivo chileno Mercúrio, perplexo, indagava, na sua manchete da primeira página:
-De que planeta veio Garrincha?
- Oswaldo Coimbra é escritor e jornalista