Na quarta-feira, 2 de fevereiro, será comemorado o centenário de um marco: o lançamento de Ulysses, livro do irlandês James Joyce (1882-1941) que revolucionou a forma e a estrutura do romance, influenciando decisivamente o desenvolvimento da “corrente da consciência” e impulsionando a linguagem e as experiências linguísticas aos limites da comunicação.
A obra com que Joyce dividiu as águas da literatura moderna se passa no dia 16 de junho de 1904, quando Leopold Bloom fez uma caminhada memorável de 18 horas pela cidade de Dublin, superando numerosos obstáculos e tentações até retornar ao apartamento onde sua esposa, Molly, o espera. Na verdade, a data corresponde ao dia em que o jovem James Joyce se apaixonou por uma camareira de hotel, Nora Barnacle, sua futura mulher.
Registro intensificado das experiências pessoais do escritor, Ulysses tornou-se, ao longo de décadas, em um estimulante desafio literário, graças aos numerosos estilos e referências culturais combinadas por Joyce, criando um caleidoscópio de vozes. No Brasil, o primeiro tradutor a enfrentar o hercúleo trabalho foi o filólogo Antonio Houaiss, em 1966, trazendo um texto considerado truncado. Já a versão de Bernardina Pinheiro (2005) foi mais informal e menos pudica. Finalmente, Caetano W. Galindo ofereceu, em 2012, um degrau acima ao se colocar entre os trabalhos anteriores.
Não satisfeito, Galindo retomou o desafio de entrar no labirinto literário e oferece agora uma nova tradução, recém-lançada pela Companhia das Letras. Ao Estadão, ele explica como o leitor pode enfrentar diferentes técnicas narrativas, níveis de coloquialidade, neologismos e diferentes relações entre espaço e tempo, pedras que Joyce distribui ao longo de seu texto memorável.
Por que Ulysses continua um livro fundamental?
Várias explicações. Eu podia dizer que ele ocupa uma posição central dentro do modernismo de língua inglesa, que ainda define muito do que se produz de qualidade na literatura mundial. Podia dizer que ele se mantém insuperado como demonstração de virtuosismo técnico no romance. E essas coisas não estariam erradas. Mas no fundo, para mim, o que sustenta essa posição do Ulysses como um livro “fundamental” é mesmo o fato de que se trata de um dos mais profundos mergulhos na experiência humana. O romance já era um dos mecanismos mais poderosos que a humanidade concebeu para investigar a cabeça, o coração e demais vísceras relevantes do ser humano. Mas, no Ulysses, Joyce explode tudo o que se podia fazer, levando tudo às suas consequências finais e inaugurando toda uma nova caixa de ferramentas para cavar mais fundo e revelar mais. E, além de tudo, isso é feito no livro (que não foge da dor, da morte, da angústia) sob o signo do “sim”, sob a égide do amor, da ternura.
Quais as dificuldades que o leitor comum precisa ultrapassar para descobrir o valor da obra?
As mesmas dificuldades da vida adulta. O fato de que não há mais ali (como nos romances “tradicionais”) uma figura estável, confiável, didática e em alguma medida “explicativa” na posição de narrador. O Ulysses acredita que você é capaz de entender por conta própria, por exemplo, se uma frase foi dita por um personagem, pensada por um personagem ou é apenas descrição feita pelo narrador. Ele acredita que você é capaz de entender se o que ele diz que está acontecendo acontece de verdade ou é alegoria, exemplo, metáfora… Um exemplo simples: num momento, o narrador diz que um personagem sente, enquanto caminha, as canelas roçadas pela grama de um determinado lugar. Mas ele não está naquele lugar e, para quem não é dublinense, isso não fica exatamente claro. E você precisa entender isso para saber o que o livro está querendo dizer. O livro abre mão de mastigar tudo para você e, com isso, te força a prestar muita atenção, a fazer muitas perguntas e examinar muitas possibilidades. E então, em vez de ter ficado sabendo de alguma coisa pelo narrador, você mesmo teve que entender, que descobrir.
Que tipo de preocupação estética e estilística você teve enquanto traduzia?
Todas. Ulysses emprega tudo que se sabia de técnica do romance em 1922, e mais um pouco. Isso faz com que necessariamente a tradução dependa de tudo que se pode saber/pensar sobre tradução literária. Joyce escrevia uma das prosas mais bonitas de todos os tempos, quando queria. Mas também uma das mais engraçadas, das mais sem-jeito, das mais bisonhas. E tudo isso é relevante, e precisa ser reproduzido em alguma medida.
Como foi o trabalho de manter a coloquialidade dos diálogos?
Isso é algo a que eu me apego muito. A oralidade em tradução. No Ulysses, no entanto, esse problema se soma à distância temporal e ao isolamento geográfico. O que está ali no original não é apenas uma boa representação da oralidade de língua inglesa, mas uma boa representação da oralidade da cidade de Dublin em 1904. Resolver isso tudo sem cair no pastiche (gerar uma imitação fiel e deslocada de um português brasileiro e falar de princípios do século passado) e no anacronismo (colocar aquelas pessoas falando como eu, hoje), é um nó sem tamanho. Mas que me dá muito prazer tentar desatar.
Com Ulysses, Joyce ensina algo sobre o limitado alcance das traduções?
Pode-se igualmente dizer que Ulysses ensina algo sobre o limitado alcance dos originais. Mesmo estando escrito na língua mais global de toda a história da humanidade, e que apenas ampliou esse seu domínio nos últimos cem anos, ele mostra que, quando se explora a fundo o idioma e suas possibilidades, essa “globalidade” encontra seus limites. E nós vamos precisar de traduções. Muitas. E variadas. Talvez um romance inglês puramente “comercial” dependa hoje muito menos de tradução do que dependeria décadas atrás. Mas não algo como Ulysses. A literatura de invenção, a alta literatura, continua sendo, ao contrário da música, dependente do idioma em que foi escrito (como dizia Walter Benjamin, é uma arte condenada a não ser universal): mas aí entram as traduções e, exatamente como na música, você descobre que o original pode precisar de “intérpretes”, e que ter acesso a três traduções de um livro é como ter acesso a três execuções de uma ópera. Elas, se feitas com honestidade, competência e seriedade, não são necessariamente uma limitação, e até podem ser uma ampliação do alcance do original. Homero só é do mundo porque nunca parou de ser traduzido. Beethoven só existe porque nunca parou de ser tocado.
Para muitos leitores, o final do livro é de uma rara beleza. O que pensa disso?
Joyce tendia a se concentrar nos “finais” de uma maneira singular. Não só se pode ver que ele gostava de finais bonitos, mas é algo nítido que gostava da ideia de que o final dos textos se perdesse na beleza, se dissolvesse no efeito estético. Assim, o final de Ulysses se encaixa bem nessa tendência. O texto, sim, é lindo. E, mais que isso, conta com a beleza como parte de seu efeito. A repetição cadenciada da palavra “sim”, por exemplo, que vai se acelerando e te levando a ler de maneira mais empolgada, mais enlevada, tem o efeito de sublinhar essa afirmação, claro, mas também o efeito de iconizar o raciocínio meio turvo de uma mulher que está caindo no sono, como que numa espiral que vai se fechando e, mais ainda, o efeito meio sacana de esconder o fato de que nem tudo é o que parece naquela série de sins…. Molly está na verdade pensando em dois homens ao mesmo tempo, e aceitando a ambos. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.