Josué Costa – jornalista *
Parte I
Os círios pandêmicos de 2020 e 2021, por suas peculiaridades, levantam a poeira de polêmicas históricas.
A primeira e mais importante delas é sobre sua propriedade, organização e administração. De quem é, afinal, o Círio de Nazaré? A quem cabe sua organização e administração?
O Círio de Nazaré é do povo, é óbvio. Mas não é tão simples quanto parece. O Círio, dada a sua dimensão e importância, deveria ser um evento da Igreja de Belém, organizado e administrado pela Arquidiocese de Belém, representada pelo conjunto de suas paróquias. Essa seria a resposta mais democrática e consensual. Mas não é.
Por erro de origem, o Círio de Nazaré é patrimônio de uma só paróquia: a de Nossa Senhora de Nazaré do Desterro, cuja igreja-matriz é a basílica-santuário, entregue à gestão dos padres barnabitas. Esse é o primeiro desconforto gerado nos bastidores da Festa.
Por ser propriedade da Paróquia de Nazaré, fato que retumba como protesto velado dentro do clero católico da capital, o Círio é confiado a diretoria da Festa de Nazaré, espécie de confraria vinculada à paróquia, regida por um estatuto próprio, que congrega, em sua nata, empresários e outros profissionais, figuras mais especialistas em gestão financeira de negócios do que em trabalho pastoral, condição, aliás, mais adequada às exigências do atual modelo de exploração da Festa.
É desejo latente que um dia o Círio pertença aos paraenses. Latente, mas sufocado em nome da boa vizinhança com os barnabitas. Um dia o evento terá em sua estrutura organizacional o dedo das paróquias da arquidiocese. Será nosso, como um segmento de pastoral da Igreja de Belém. E não de uma paróquia apenas. Inclusive seu faturamento fabuloso, hoje apresentado sem qualquer transparência.
Nesse sentido, sob a gerência da Igreja de Belém, o evento seria a solução das lacunas financeiras da cúria metropolitana hoje obrigada a se contentar com uma minúscula fatia de uma arrecadação que não sabemos dimensionar por conta de uma prestação de contas obscura, que claramente superdimensiona as despesas para minimizar os lucros, numa tentativa de velar a verdade.
Eis aí outro ponto do desconforto: a arrecadação do Círio de Nazaré beneficia apenas uma paróquia no coletivo de muitas outras. A basílica-santuário é a prima rica. Outra esperança é a de que um dia a Virgem de Nazaré opere o milagre de uma divisão mais equânime do lucro material de sua Festa.
Ressalte-se que, apesar da minguada parte que lhe cabe do lucro do Círio, a cúria metropolitana dá gracas a Deus, pois, com isso desafoga a folha salarial do 13° salário dos seus funcionários e mais outras demandas.
É plano que adormece sobre a mesa do arcebispo a posse da basílica-santuário nas mãos da Arquidiocese de Belém. A Paróquia de Nazaré é hoje a maior fonte de repasse entre todas as outras. Uma média de R$ 20 mil mensais, segundo os últimos relatórios, o que corresponde a 10% do valor que canonicamente as paróquias devem repassar à cúria de suas receitas.
Paróquia de Nazaré e Arquidiocese de Belém convivem razoavelmente bem, no entanto. Melhor seria, é claro, se a basílica-santuário fosse nossa. Mas se é ruim com ela, pior seria sem ela. O problema é que o arcebispo não tem mão de obra qualificada para administrar um santuário. Os padres arquidiocesanos não têm carisma para a missão. A criação do Santuário de Nossa Senhora de Aparecida, na Pedreira, é um campo de treino para esse fim. É o que dizem.
Outra pedra no caminho é a desconfortável relação de Dom Alberto Taveira com o seu clero. Não é das melhores. O arcebispo e a maioria dos seus padres convivem mais à base do respeito e da obediência do que da amizade, ao contrário do que acontecia com os predecessores dom Orani Tempesta e dom Vicente Zico.
Mas, de volta ao foco. Mostrar quem manda no Círio, sem deixar sombras de dúvidas, foi preciso. Numa edição da Festa no nício do século XXI, os homens de branco da diretoria da Festa de Nazaré, acusados de arrogantes e prepotentes, decidiram pela partida da Berlinda, da Catedral de Belém, antes mesmo do final da missa presidida pelo então arcebispo dom Vicente Zico.
Os chamados donos da procissão alegavam que a berlinda tinha horário para sair. A missa, de fato, estava atrasada e lenta. Convenceram o prelado, em plena liturgia, de que o Círio precisava começar. A missa podia esperar. Dom Zico, inocente e sem a devida liberdade, autorizou que fossem. Foi o primeiro Círio da história sem acompanhamento do clero, fato inexplorado ou sufocado porque desapercebido por muitos. Afinal, o foco é a Santa e não os padres.
O clima ficou tenso entre diretoria, Paróquia de Nazaré e o claro, este abandonado no altar montado em frente à Catedral de Belém. Arcebispo e padres deveriam pegar o bonde andando, se quisessem. Dom Zico, irritado, arrependido do sim que deu no lugar do não, depois da celebração foi direto pra residência episcopal, na Dr. Moraes. A maioria absoluta dos padres também decidiu em não participar daquela procissão.
No altar da Praça Santuário, a evidência do racha na chegada da procissão: só os padres barnabitas, administradores da Paróquia de Nazaré, estavam no local. A tradicional benção com a imagem, prerrogativa do arcebispo de Belém, foi dada pelo pároco, à época padre José Ramos das Mercês. O importante é que o recado havia sido dado pelos diretores. Ali, a prova cabal de quem mandava na Festa.
Parte II
Os devotos da Virgem de Nazaré demostraram, nas edições do ano passado e do ano corrente, que não se importam com o comando dos organizadores da Festa, nem com a ausência dos ícones da procissão, inclusive os principais: a berlinda e a imagem da Santa. Sem ordens de comando, sem corda e sem a berlinda, quase meio milhão de fiéis foi para as ruas do trajeto oficial.
Duas constatações:
A primeira é a de que o povo católico não é idólatra, como acusam-no alguns evangélicos encrenqueiros. Faz procissão por pura devoção. Não segue imagem. Caminha em nome da fé, focado no que acredita, nas razões e sentimentos que moram no coração. A imagem na berlinda é apenas uma representação da fé. Uma estátua. A lição foi dada. Veneramos sentimentos e crenças.
A outra lição, de maior sonoridade, é a de que se a falta da imagem da Santa não impede a procissão, muito menos a dos diretores da Festa. É claro que não se deve negar a importância das ações previamente pensadas para uma procissão da dimensão do Círio de Nazaré. Mas, à revelia do que se quer fazer pensar, esse trabalho não é absolutamente indispensável.
O saudoso jornalista Walmir Botelho D’Oliveira dizia, para contestar as ações truculentas da diretoria da Festa de Nazaré, que para ter Círio basta colocar a berlinda na rua. O resto, de algum jeito, os devotos se encarregam. Se vivo estivesse, talvez mudasse de ideia: para ter Círio, a fé é o bastante.
- O jornalista Josué Costa é professor e advogado. Ex-seminarista, foi redator-chefe do jornal Voz de Nazaré, assessor de Imprensa da Arquidiocese de Belém e da diretoria da Festa de Nazaré, além de secretário particular do então bispo auxiliar de Belém, Dom Carlos Verzeletti.