Estudar ossadas antigas e determinar seu sexo, entre outras características, pode desrespeitar identidade de gênero, dizem acadêmicas malucas
Vilma Gryzinski *
Os mortos falam e documentários sobre múmias egípcias ou séries policiais protagonizadas por médicos forenses nos acostumaram com a formidável
quantidade de informação que um simples fragmento de osso pode fornecer aos especialistas.
A própria história da humanidade é reconstituída – constantemente – pela descoberta de ossadas que colocam nossas origens num passado cada vez mais
distante.
Ou era. Segundo acadêmicas antenadas (falsamente) com a causa dos transgêneros, é errado atribuir sexo e grupo étnico – duas informações facilmente identificadas pelos estudiosos – a ossadas antigas.
“Amigos trans ou não binários: vocês devem conhecer o argumento segundo o qual os arqueólogos que descobrirem seus ossos um dia vão atribuir a vocês o
mesmo gênero que tinham ao nascer, então, independentemente de terem feito a transição, não conseguirão escapar ao gênero que receberam”, tuitou, algo
confusamente, a canadense Emma Paladino.
A confusão mental cobre todo o espectro da idiotia, ao se preocupar com algo que, na probabilidade extremamente remota de que venha a acontecer, demorará alguns milhares de anos e não incomodará mais a tribo trans – sem contar que os arqueólogos já são bastante bons em detectar variações comportamentais dos objetos de seus estudos. Se encontrarem uma ossada masculina com remanescentes de seios de silicone ou traços de maquiagem vão entender logo o que significam.
Em outro texto, ela alegou que “arqueólogos e acadêmicos queer estão trabalhando há décadas para desconstruir os pressupostos que arqueólogos fazem sobre gênero e identidade, tanto hoje em dia quanto no passado”.
Segundo Emma Paladino, dizer que uma ossada é do sexo feminino ou masculino “dificilmente é o objetivo de qualquer escavação”; o que interessa é a “bioarqueologia do indivíduo, levando em conta absolutamente tudo o que descobrimos sobre uma pessoa para formar uma biografia cheia de nuances”.
Ela está certa, os arqueólogos já fazem tudo isso. E às vezes até dão margem a piadas, como a publicada por uma revista austríaca, voltada ao público gay, que
dizia que uma das ossadas mais estudadas do mundo, fora do Egito Antigo, a do “homem da era do gelo” encontrado nos Alpes italianos tinha sêmen na cavidade anal, o que o tornava não só um ícone homossexual como a primeira vítima conhecida da homofobia (Oetzi, como é chamado, morreu com uma flechada nas costas).
Era uma peça de primeiro de abril, mas muita gente acreditou.
Pelos critérios das patrulhas mais avançadas, Oetzi não deveria ser identificado como homem? No que isso contribuiria para a ciência e a curiosidade do público comum, que visita o museu tirolês onde a múmia bem preservada pelo clima de montanha é a atração única?
Oetzi, que viveu há 5 200 anos, tinha apenas 1,57 metro, olhos e cabelos castanhos e 46 anos quando morreu. Além de 61 tatuagens, cáries, parasitas intestinais, joelhos, quadris, ombros e coluna desgastados e uma anomalia genética que o deixou sem um par de costelas. Também sofria de um mal “moderno”, a intolerância à lactose.
Os objetos encontrados à sua volta foram reconstituídos e mostram um figurino sofisticado: chapéu de pele de urso, mochila e botas de couro de veado, um casaco de pele e, sobre ele, um manto de palha em camadas com costuras horizontais, como as parkas acolchoadas que usamos até hoje. Sua posse mais
preciosa era um machado de cobre. Seus ancestrais tinham vindo da região da Anatólia, trazendo um conhecimento precioso, a agricultura. A linha paterna de
seu DNA ainda existe em ilhas mediterrâneas, especialmente na Sardenha.
A arqueologia evidentemente não existe no vácuo – e é conhecida a tendência de antropólogos mexicanos a minimizar os sacrifícios humanos em grande escala feitos por culturas pré-colombianas.
Agora, a onda “woke”, ou conscientizada, começa a se espalhar por uma área do conhecimento que lida com todas as incontáveis complexidades de culturas que
conhecemos apenas pelos sinais que deixaram.
A professora Jennifer Raff, da Universidade do Kansas, que escreveu um livro sobre a origem genética das Américas, faz uma alegação na linha de maluquice de Emma Paladino: diz que “não existem divisões nítidas entre indivíduos que sejam fisicamente ou geneticamente” do sexo masculino ou feminino.
A ideologização da ciência aparece nos argumentos infantis de acadêmicos como Elizabeth DiGangi e Jonathan Bethard quando alegam que é “perigosa” a atribuição estimada de ancestralidade nos estudos arquelógicos ou antropológicos. Motivo? “Contribuem para a supremacia branca”.
Além dos estudiosos pelo direito de não estudar, uma tendência que se espalha por todas as áreas do conhecimento, inclusive matemática e física, agora surgiu
uma nova modalidade, a dos bailarinos pelo direito de não dançar.
Uma escola de dança da cidade inglesa de Leeds, a Norther School of Contemporary Dance, eliminou o balé das provas práticas de admissão porque ele é ancorado em “ideias europeias brancas”.
“É uma modalidade essencialmente elitista. Os jovens em geral precisam pagar para ter aulas de balé e um vasto número de estudantes em potencial não têm
acesso ao balé”, disse ao Telegraph uma diretora da escola, Francesca McCarthy.
E os maravilhosos bailarinos negros, fora aqueles com todos os tons intermediários, muitos dos quais tiveram que ser mais esforçados ainda numa modalidade que já exige disciplina e dedicação quase insanas?
Que se danem; o importante é parecer estar na linha de frente da lacração.
No balé, as mulheres têm mais destaque do que os homens, que são praticamente coadjuvantes de luxo, mas estas designações evidentemente estão fora de moda. Como as ossadas que não podem ter o gênero identificado, as “ballerinas” estão fadadas a virar “ballerines”.
A professora McCarthy, que inspiraria terror em almas mais fracas, já avisou: “A maioria do nosso corpo de balé foi treinada numa época em que as divisões eram claras e os homens levantavam as mulheres. Com o tempo, houve uma mudança, mas ainda é problemático em relação à inclusão de dançarinos não binários e trans”.
Adeus, lago dos cisnes.
* Vilma Gryzinski é colunista da revista Veja