Dias antes da determinação de que deveríamos ficar em casa por conta da Covid-19, saí pra correr de manhãzinha. Estava já no final de um treino de cinco quilômetros. No tiro final, eu me senti cheia de gás. Tanto que acelerei um pouco e, na minha direção, vinha um homem que aparentava ter 40 anos, mais ou menos.
Ele estava atravessando a rua correndo também e, ao me ver, tentou desviar, mas estávamos na mesma direção e foi inevitável… Nossas mãos se esbarraram de leve. Ele me lançou um olhar fixo e implacável, fez uma cara de raiva e nojo quase indescritível que apelidei carinhosamente de “me solta po…”, inspirada no título do funk sobre o Baile da Gaiola de autoria do DJ Rennan da Penha e do Nego do Borel. Brincadeiras à parte, esse episódio foi para mim o prelúdio dos tempos de confinamento.
Imediatamente após a nossa colisão, o homem abriu sua ecobag. Tirou lenços de papel com álcool gel, commodity em falta nas farmácias do Brasil e do mundo, e começou a esfregar a mão e o braço com força. Acredito que estava tentando tirar qualquer resquício que aquela troca de células poderia ter deixado, talvez já temendo pegar a doença que ainda não tinha se espalhado no Brasil.
É curioso pensar o quanto as coisas podem mudar tão rápido. O tal mundo Vuca nunca me pareceu tão real. A sigla em inglês é traduzida como Vica, uma abreviatura para Volátil, Incerto, Complexo e Ambíguo. É muito usada no mundo dos negócios. E se o negócio aqui fosse carnaval, se este esbarrão acontecesse há alguns meses em plena folia, poderia ser levado na brincadeira, seria quase uma troca de glitter.
Mas tudo mudou. A distância impera e vemos quão frágeis são as relações humanas. E essa reflexão me levou ainda mais longe.
Olhando esse episódio, sinto que fomos do cenário da propagação do “ninguém solta a mão de ninguém” ao “me solta po…” em pouquíssimo tempo. Fiquei pensando sobre esse cenário de pegar ou largar a mão, uma interpretação que pode ser associada a proximidades ou distâncias, vistas metaforicamente. A expressão “ninguém solta a mão de ninguém” viralizou em um momento em que populações minorizadas clamavam pela união, contra correntes conservadoras vistas como ameaça.
E justamente em um novo grande momento de instabilidade, com a chegada da Covid-19, onde encostar na mão de alguém não é recomendável, fico aqui pensando em quem verdadeiramente “dá as mãos”, em outros sentidos. Isto é, apoio, sobretudo para as populações mais vulneráveis.
Certamente, não são aquelas que olham as outras pessoas com cara de nojo ou ainda as que se importam apenas com a sua própria saúde, estocando litros de álcool gel e zerando as prateleiras ao fazer compras desesperadas. Quando reflito sobre a falta de solidariedade nesses tipos de atitude, questiono: já estivemos de mãos dadas um dia? Se não podemos dar as mãos fisicamente, precisamos <pelo menos exercitar o sentido mais amplo. O momento é agora. É pegar ou soltar. Dentro ou fora da gaiola que nos restou, por ora sem baile. Texto: Luana Génot, colunista de O Globo.
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