O mais conhecido escritor amazônida, Márcio Souza, 74 anos, está internado em um hospital de Manaus, onde mora, com covid-19. No estado do Amazonas, o número de pessoas infectadas pelo vírus ultrapassa 211 mil; só em Manaus são cerca de 89 mil casos e 3.650 óbitos, segundo a Fundação de Vigilância e Saúde (FVS).
Márcio Souza é autor de um livro que disputa o posto do grande romance amazônico: Mad Maria. E os paraenses, o que dirão disso? Os manauaras chamam os paraenses de papa-jacaré e os belenenses chamam os amazonenses de papa-jaraqui, peixe de segunda categoria.
Na literatura, a intelligentsia papa-chibé cristalizou o romance Chove nos campos de Cachoeira, do marajoara Dalcídio Jurandir, número um no cânone amazônico. Chove nos campos de Cachoeira, que Dalcídio escreveu aos 20 anos de idade, transmite a sensação de que a Amazônia é uma prisão, um pesadelo, que vai deteriorando a roupa, o corpo, e, por fim, a alma.
Para mim, o grande romance amazônico era Verde vagomundo, do paroara de Alenquer, Benedicto Monteiro, até ler, agora em 2021, Mad Maria, do manauara Márcio Souza. Verde vagomundo foi publicado em 1972. Li-o somente em 1996, quando conheci Benedicto. Fiquei maravilhado com o livro. Desta vez, a prisão amazônica é um povoado isolado por enchentes apocalípticas. Ao ler Verde vagomundo comecei a sentir cheiro de água.
Márcio Souza é de 1946, oito anos mais velho do que eu. Quando o conheci, em 1976, em Manaus, ele estava com 30 anos. Avistamo-nos algumas vezes. Eu escrevia para o jornal A Notícia a coluna semanal No Mundo da Arte e lembro de ter entrevistado Márcio Souza umas duas ou três vezes. Na época, ele encenava suas peças no Teatro Amazonas, como, por exemplo, As folias do látex. Foi sempre muito gentil, atencioso e didático comigo. Certa vez, no antigo Amarelinho, um bar no centro de Manaus, ele estava na companhia de amigos seus, eu cheguei e me sentei à mesa, e comecei a beber também. No fim, todos pagaram seu próprio consumo, eu estava sem dinheiro e o Márcio, ao notar meu embaraço, pagou minha despesa.
Naquele ano, Márcio publicou Galvez, o imperador do Acre. Quase sempre, à noite, eu me encontrava com vários escritores, artistas e jornalistas no Nathália e outros bares. O que se comentava era que os originais de Galvez tinham chegado apócrifos às mãos do Márcio e ele os publicara como sendo seus.
O maestro Antonio Carlos Jobim teria observado, certa vez, que “sucesso, no Brasil, é a pior das ofensas pessoais”. Na Amazônia, não é preciso nem fazer sucesso. Se um artista aparecer de roupa nova, o clube dos invejosos cai de pau, com madeira de bater em doido, em cima do enxerido, acusando-o de burguês e outras coisa de quem não tem o que fazer e bebe para passar o tempo. Enquanto o artista permanecer no mesmo patamar dos amigos e companhia, o confete come solto, mas quando o cara aparece com um romance, uma exposição, uma música, ou qualquer coisa, com a perspectiva de fazer sucesso, o melhor que faz é mudar-se para o Rio de Janeiro.
Márcio fez isso; não imediatamente. Imediato foi o sucesso de Galvez, alçando-o ao estrelato. Nunca consegui ir além de um quarto do livro, até porque acho folhetim maçante. O mesmo, por exemplo, aconteceu com Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado. Agora, depois de Mad Maria, fiquei com vontade de ler Galvez.
As obras da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, no atual estado de Rondônia, foram executadas entre 1907 e 1912, numa extensão de 366 quilômetros, ligando Porto Velho a Guajará-Mirim, cidades fundadas pelo empreendedor estadunidense Percival Farquhar.
Em 1846, o engenheiro boliviano José Augustin Palácios convenceu as autoridades do seu país de que a melhor saída para o oceano Atlântico seria pela bacia Amazônica. E era mesmo, por causa da cordilheira dos Andes. Em 1851, o governo dos Estados Unidos, interessado nos produtos do oeste amazônico, contratou o tenente Lardner Gibbon para estudar a viabilidade da ideia. Em 1852, Gibbon concluiu o trajeto Bolívia-Belém, descendo pelos rios Guaporé, Mamoré, Madeira e Amazonas, ratificando assim a ideia do Palácios.
Só havia um problema: as cachoeiras do rio Madeira, mas que poderia ser resolvido com uma ferrovia margeando as corredeiras. Assim, os 180 dias dos Estados Unidos para a Bolívia via Oceano Pacífico seriam reduzidos para 59 dias via Bacia Amazônica.
Em 1903, no bojo da assinatura do Tratado de Petrópolis, a compra pelo Brasil do atual estado do Acre da Bolívia, começou a implementação da Madeira-Mamoré Railway, com a missão de ultrapassar o trecho encachoeirado do rio Madeira para facilitar principalmente o escoamento da borracha boliviana e brasileira até Porto Velho, de onde seguia até o Oceano Atlântico. Até então, as cachoeiras eram transpostas por canoas, equilibradas por índios.
Em 1907, o contrato para a construção da ferrovia foi encampado pelo milionário americano Percival Farquhar, que concluiu a Madeira-Mamoré em 30 de abril de 1912. Em 1966, após 54 anos de atividades, a estrada de ferro foi desativada, por determinação do presidente Humberto de Alencar Castelo Branco. Seria substituída por uma rodovia, em cumprimento ao acordo celebrado em Petrópolis, em 1903. Foram construídas a BR-425 e a BR-364, que ligam Porto Velho a Guajará-Mirim. Em 10 de julho de 1972 as locomotivas apitaram pela derradeira vez e, em 1979, o acervo foi vendido como sucata para a siderúrgica de Mogi das Cruzes/SP.
Em 10 de novembro de 2005, as ruínas da ferrovia foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e em 28 de dezembro de 2006, o Ministério da Cultura homologou o tombamento como Patrimônio Cultural Brasileiro.
Márcio Souza recriou isso. Mad Maria foi escrito em 1980. A trama se passa em um período de três meses. No livro, baseado em pesquisa histórica, o inferno desaba em torno de 19 cataratas, 227 milhas de pântanos, cobras, escorpiões e malária, com 3,6 mil mortos e 30 mil hospitalizados, homens de todo o mundo, muitos dos quais já chegavam às obras como farrapos humanos, mas todos, exceto os mais graduados, viravam farrapos humanos, e sempre em pouco tempo.
Paralelamente à trama na Amazônia, Márcio Souza desenvolve uma deliciosa narrativa dentro de palácios, hotéis de luxo e alcovas no Rio de Janeiro, e pega Rui Barbosa pelo colarinho, reduzindo-o do seu gigantismo jurídico a um poeta meloso.
Mad Maria acabou virando folhetim da Globo, alçando Márcio Souza a artista pop. A minissérie foi exibida entre 25 de janeiro e 25 de março de 2005, em 35 capítulos, escritos por Benedito Ruy Barbosa, com direção de Ricardo Waddington, gravada em Porto Velho, Guajará-Mirim e em Passa Quatro, Minas Gerais. Seu elenco é estelar: Ana Paula Arósio, Fábio Assunção, Tony Ramos, Antônio Fagundes, Cláudia Raia, Priscila Fantin e Cássia Kiss nos papéis principais.
A minissérie ficou engavetada por 20 anos, quando o diretor artístico da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, mostrou o livro a Benedito Ruy Barbosa e lhe pediu que o transformasse em minissérie, escrita entre 1980 e 1981. Mas na época não havia recursos para uma superprodução de 12 milhões de reais. Quando começaram as gravações só na região de Abunã reconstruíram seis quilômetros de trilhos, cobertos de mato, e reformaram a Mad Maria. Foram mobilizados em torno de 400 funcionários em Rondônia. Isso injetou um milhão de reais em Guajará-Mirim.
A trama de Márcio Souza se passa em 1911, no oeste amazônico, onde 20 mil trabalhadores de 50 nacionalidades constroem a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Naquele fim de mundo, o barco da pianista Consuelo, encarnada por Ana Paula Arósio, sofre um naufrágio que mata seu marido, Alonso (Gabriel Tacco), e a deixa perdida na selva por semanas, sobrevivendo por milagre.
Resgatada por operários da estrada é conduzida ao acampamento, onde se torna amiga do índio Joe (Fidelis Baniwa), a quem ensina a tocar piano com os pés, pois Joe teve as mãos decepadas. Também Consuelo conhece o médico americano Richard (Fábio Assunção), com quem faz par romântico.
Percival Farquhar é encarnado por Tony Ramos, às voltas com seu maior opositor, o ministro Juvenal de Castro (Antônio Fagundes), amigo pessoal do presidente Hermes da Fonseca (Othon Bastos). Farquhar descobre que Juvenal tem um caso com uma linda vitela, Luiza (Priscila Fantin), que, por sua vez, ignora que Juvenal é casado com Amélia (Cássia Kis). Farquhar, que mantém um caso com a cafetina Teresa (Cláudia Raia), usa isso para chantagear o ministro.
É inevitável comparamos Mad Maria ao monumental O coração das trevas, de Joseph Conrad. Neste romance, que se passa no século 19, o inglês Charles Marlow obtém trabalho junto a uma companhia de comércio belga como capitão de um barco a vapor no rio Congo, para transportar marfim rio abaixo, mas com a missão número um de resgatar um famoso comerciante de marfim, Kurtz, que enlouqueceu no contexto da colonização europeia da África tropical. O livro inspirou Francis Ford Coppola a fazer Apocalypse Now, tendo como cenário a guerra do Vietnã.
Mesmo que isso custe milhões de vidas humanas, os europeus sempre levam tudo o que podem do trópico, antes de saírem escorraçados pelo que Joseph Conrad chamou de o coração das trevas, um tipo de pesadelo também encontrado em Mad Maria, uma espécie de umbral, do qual não ninguém escapa, nem o maior dos moralistas. Os vigaristas que comandam o show costumam ficar confortavelmente nas grandes cidades do mundo, incluindo o Rio de Janeiro, e, agora, Brasília, onde podem também papar virginais vitelas e corromper meio mundo, para gáudio dos que adoram ser corrompidos.
Mas há uma diferença notável entre O coração das trevas e Mad Maria. Enquanto a lente daquele é europeia, focada no coração da África, a de Mad Maria é de um caboco da Amazônia e um dos ficcionistas brasileiros que mais conhecem a história da sua própria pátria, a Amazônia Clássica.
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