O Ver-o-Fato traz com exclusividade trechos explosivos da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), assinada pelo ministro Flávio Dino, autorizando buscas e apreensões relacionadas a um esquema de desvios milionários envolvendo emendas parlamentares da deputada federal Elcione Barbalho (MDB). A parlamentar, mãe do governador do Pará, Helder Barbalho, e do ministro das Cidades, Jader Filho, é investigada individualmente pelo STF por usufruir do chamado foro privilegiado.
O foro privilegiado, também conhecido como foro por prerrogativa de função, é um privilégio constitucional que estabelece que determinadas autoridades públicas só podem ser processadas em tribunais previamente fixados.
A decisão de Flávio Dino, mantida sob sigilo, escancara operações financeiras suspeitas, fluxos atípicos e contratos vultosos com órgãos públicos. Empresas e pessoas físicas apontadas como beneficiárias diretas dos desvios foram alvos da operação da Polícia Federal realizada em novembro de 2024, em Belém, Ananindeua e São Paulo.
Caso curioso e indício de crime que deve ser aprofundado é o de um estudante, citado na página 96 do relatório da PF. Ele teria “efetuado 475 saques em espécie, movimentando valores superiores a R$ 1 milhão”.
A investigação da Polícia Federal aponta para um esquema sofisticado de circulação de recursos públicos, que envolvem empresas de fachada e sócios ocultos. O documento, de cinco páginas, detalha movimentações financeiras consideradas atípicas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e pela PF, que identificaram 24 operações suspeitas e um padrão sistemático de saques, transferências e depósitos em contas de terceiros. Entre os alvos das buscas estão 12 pessoas físicas e 5 empresas.
O volume de dinheiro movimentado alcança cerca de R$ 70 milhões, mas pode ser maior, porque a investigação da PF ainda analisa documentos, celulares, computadores e outros bens dos investigados, apreendidos durante a operação realizada em novembro. Segundo o ministro, a busca e apreensão foi necessária porque é “imprescindível para coletar provas robustas”. .
O suposto esquema criminoso começou a operar entre 2017 e 2019, mantendo-se até os dias atuais. Contratos milionários com o Hospital Ophir Loyola, Hemopa e a Superintendência do Sistema Penitenciário do Pará (Susipe) são alvos de análise, com indícios de superfaturamento e desvio de recursos.
“Contas de passagem” e saques fracionados
De acordo com um trecho da decisão de Flávio Dino, há no esquema evidências de “smurfing” — prática de fracionamento de valores para evitar alertas ao sistema financeiro. Um estranho exemplo envolve Josival Braun da Silva, sócio da Braun Terraplanagem, cuja empresa, sediada em Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, apresentou movimentação de R$ 15,8 milhões em créditos e débitos entre 2017 e 2022, incluindo 1.943 saques em espécie, totalizando impressionantes R$ 2,8 milhões.
A empresa dele foi fundada apenas em 28 de setembro de 2020, e Braun, até então, não tinha histórico de vínculos empregatícios ou participação societária ativa. Contudo, apesar do perfil aparentemente modesto, a conta dessa empresa registrou movimentações financeiras expressivas no período de janeiro de 2017 a julho de 2022: Créditos, R$ 15.822.258,37. Débitos, R$ 15.821.957,03. Diferença entre débitos e créditos de apenas R$ 300,00, característica típica de uma “conta de passagem”.
O total de saques na conta atingiu R$ 2.8 milhões, registrando impressionantes 1.943 saques no valor máximo, por saque, de de R$ 2.5 mil, frequentemente realizados em valores semelhantes no mesmo dia. “Esses padrões levantam suspeitas de práticas para evitar alertas de órgãos de controle financeiro, como o Coaf”, diz Flávio Dino. A movimentação de valores incompatíveis com o perfil do investigado e o elevado número de transações em espécie reforçam indícios de irregularidades.
Rodrigo, Fábio e o esquema
Outro grande alvo da investigação da PF, que esteve na casa dele, cumprindo ordem judicial do ministro do STF, é Rodrigo de Freitas Montoril, marido da deputada Elcione Barbalho. Rodrigo recebeu quase R$ 7 milhões, recursos de sua empresa, a EXE Capital e Investimentos Ltda e os redirecionou para outras contas.
Segundo relatório da PF, o que chama a atenção é que a EXE Capital, fundada pouco antes do início de movimentações financeiras que agora são alvo da investigação, apresentou “operações incompatíveis com o seu perfil”, no período de 1º de junho de 2019 a 26 de maio de 2020″. A empresa, que completava apenas dias de existência no início das transações suspeitas, movimentou valores elevados que totalizam R$ 6.921.223,42 em créditos no primeiro ano de atividade.
Os créditos na conta da EXE Capital se desdobraram da seguinte forma: DOC/TED: R$ 4.037.748,18, distribuídos em 41 operações. Transferências: R$ 502.601,34, realizadas em 23 lançamentos. Depósitos: R$ 168.750,00, por meio de 17 operações. Entre os principais remetentes das quantias, destaca-se a empresa M.W.S. Buffet, que transferiu R$ 3.2 milhões em 20 lançamentos.
A MWS Buffet pertence ao empresário Fábio Simões e é empresa contratada pelo Hospital Ophir Loyola e pela Fundação Hemopa. O relatório menciona contratos ainda vigentes, como o Contrato 101/2019 entre o Hospital Ophir Loyola e a M.W.S. Eventos, que somou mais de R$ 23,7 milhões entre 2022 e 2023.
Além da MWS, há movimentações incompatíveis e indícios de “contas de passagem”, utilizadas para ocultar os reais beneficiários, envolvendo as empresas MDM Projetos e Construções, e Cellent Tec Serviços de Reparação em Computadores Ltda. A Cellente movimentou R$ 7,3 milhões, de acordo com a investigação da PF.
A investigação também revelou que os valores recebidos pela EXE Capital eram redirecionados em contas bancárias distintas e posteriormente repassados a pessoas físicas e jurídicas ou, ainda, para a própria EXE, mas em conta bancária distinta. Foram observadas operações de saques em espécie e transferências em valores semelhantes no mesmo dia, para o empresário Roger Aguillera, alcançando o total de R$ 650 mil em 21 depósitos bancários.
Rolos em contratos públicos
Documentos obtidos apontam que as empresas M.W.S. Eventos e Buffet e D.A. da Silva Braga Junior Serviços de Reparação em Computadores foram contratadas por três órgãos estaduais Hospital Ophir Loyola, Superintendência do Sistema Penitenciário do Estado do Pará (Susipe) e Fundação Centro de Hemoterapia e Hematologia do Pará (Hemopa). Vale destacar que a D.A Braga Junior também mantém contratos com a empresa MDM Projetos e Construções. .
As investigações revelaram indícios que essas empresas podem estar associadas a um esquema de compartilhamento de recursos e gestão por meio de estruturas empresariais que dificultam a identificação de seus verdadeiros controladores. Algumas características em comum levantam suspeitas, como a participação em Sociedades em Conta de Participação (SCP):
As empresas possuíam vínculo com sociedades desse tipo, que permitem a atuação de sócios ocultos, ou seja, pessoas que participam dos lucros sem registro em juntas comerciais ou órgãos fiscais. Na verdade, a escolha de empresas individuais nesse formato societário pode indicar tentativas de ocultar os verdadeiros gestores e beneficiários de um possível grupo empresarial informal.
Em vista disso, a decisão do ministro Flávio Dino diz entende que a sobreposição de contratantes do setor público e a ligação entre as empresas por meio de estruturas societárias pouco transparentes sugerem a “necessidade de uma análise mais detalhada”. A suspeita é que essas empresas possam estar atuando como parte de um pool empresarial, possivelmente gerido por um grupo de controladores não formalmente identificados.
Próximos passos
O ministro fixou o prazo, já vencido, de 30 dias para a execução das buscas, ressaltando o sigilo da operação. Enquanto isso, as investigações continuam para aprofundar o envolvimento da deputada Elcione Barbalho e sua eventual responsabilidade nos desvios.
A Polícia Federal efetuou uma série de requerimentos e a Procuradoria-Geral da República (PGR) manifestou-se no sentido de novas diligências, antes do deferimento das medidas. O Ver-o-Fato apurou que dentre essas medidas estariam pedido de prisões. A quebra do sigilo bancário, porém, foi deferida.
“Inicialmente, destaco que a Polícia Federal deve adotar as providências cabíveis quanto aos itens indicados pela Procuradoria-Geral da República”, diz Flávio Dino na decisão. “As medidas cautelares devem aguardar as diligências requeridas pelo peticionário, salvo a de busca e apreensão. Explico. A decisão de busca e apreensão possui a singularidade da urgência intrínseca, além disso está preenchido o standard probatório da preponderância da prova, já que os relatórios do Coaf apontam a existência de 24 operações atípicas, e no corpo da petição a Polícia Federal consegue estabelecer fluxos financeiros atípicos. Tais demonstrações fornecem suporte probatório para justificar a medida cautelar de busca”, destaca o ministro.
O Ver-o-Fato entrou em contato com os investigados, mas nenhum deles quis falar sobre o envolvimento de seus nomes e empresas. O espaço está aberto à manifestação.