O Ver-o-Fato ouviu os dois lados sobre essa “Torre de Babel” plantada numa das regiões mais explosivas da Amazônia
O Vale do Acará, que já há alguns anos virou terreno de disputa sangrenta entre grandes empresas nacionais de dendê e povos tradicionais – representados por etnias indígenas e quilombolas – está se transformando em uma autêntica e bíblica Torre de Babel: ninguém se entende e o ódio de uns contra os outros começa a virar regra. Diálogo e entendimento em torno de interesses comuns parecem duas palavras desconhecidas.
O motivo das desavenças seria a expansão de áreas do plantio de palma por grupos indígenas e quilombolas que vendem suas produções para as gigantes do agronegócio. O Ver-o-Fato ouviu os lados envolvidos na disputa e as acusações principais recaem sobre o grupo indígena Tembé e “infiltrados armados” que seriam liderados nas invasões pelo cacique Paratê Tembé e por Marquês Tembé.
Os alvos seriam o território quilombola da Amarqualta, cuja disputa ferrenha teve capítulo no dia 8 passado, e no território indígena Tembé I’ixing, ontem, 14. No caso da área quilombola, esta seria uma extensão da área Turê III, já ocupada por eles e onde vivia Nazildo dos Santos, liderança local que foi assassinada a tiros em 2018. Nazildo foi morto por conta dos conflitos agrários na região.
Uma fonte, pedindo sigilo do nome, declarou que as brigas entre indígenas e quilombolas são estimuladas não apenas por interesses divergentes sobre terras e produção de dendê, mas por empresários que estariam financiando e apostando no confronto entre antigos aliados, no velho estilo “dividir para reinar”, estratégia comum entre poderosos interessados em afastar de seu caminho eventuais litigantes. “Corre dinheiro nisso, pode escrever aí”, desafiou a fonte.
Em vista das escaramuças e agressões que estão ocorrendo, cerca de quinze entidades – seis delas indígenas e nove quilombolas – enviaram ao Ver-o-Fato um manifesto com críticas contundentes contra Paratê Tembé e seu grupo.
Segundo o documento, uma “tentativa de diálogo” foi realizada na sede do Ministério Público Federal (MPF), na manhã do dia 13 de dezembro, mas não houve qualquer avanço ou acordo. “Um dia depois o grupo invasor marchou em direção à aldeia I’ixing”, diz o manifesto.
Mais adiante, o Movimento IRQ diz em que tem “estado em constante diálogo com as forças de segurança e com os órgãos de justiça, os quais acompanham de perto o que vem ocorrendo em nossos territórios, mas pedimos a máxima atenção das autoridades, da imprensa, da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), da Secretaria dos Povos Indígenas do Pará (Sepi) e da Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos (Seirdh), porque tememos o derramamento do sangue preto e indígena sobre estas terras quase arrasadas em que vivemos e lutamos para preservar”.
“As ações também vem causando a fratura de associações indígenas consolidadas, como é o caso da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará (Aitva), que representa seis aldeias, duas das quais aderiram ao movimento invasor, são elas: Yriwar (cacique Urutaw Raimundo Tembé) e Wiranu (cacique Marquês Tembé).
Os conflitos começaram quando os referidos indígenas passaram a construir casas de madeira em uma área quilombola da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta), antes denominadas fazendas Ibitira e Vera Cruz, com o propósito de simularem a posse e explorarem o dendê ali plantado”, argumenta a nota.
E mais: “No último dia 8 (sexta-feira), as comunidades quilombolas resistiram à invasão bloqueando por algumas horas a via que dá acesso às áreas, momento em que foram ameaçadas de morte e vítimas de injúrias raciais promovidas pelos indígenas Paratê Tembé, Lúcio Tembé (pai do Paratê), Urutaw Tembé. Este último, em um grupo de whatsapp chegou a dizer: “os quilombolas vieram da África como escravos e agora querem tomar o que é nosso”.
Acusações mentirosas, querem me matar”, diz Paratê
O cacique Paratê Tembé, procurado pelo Ver-o-Fato, foi taxativo ao afirmar que as acusações contidas no manifesto divulgado pelas entidades “são totalmente mentirosas e tentativa de aparecer como vítimas”.
Para ele, a verdade é totalmente contrária ao que está sendo divulgado: “eu é que sou vítima. Eles me mantiveram em cárcere privado por quatro ou cinco dias num acampamento na fazenda Vera Cruz, nos limites com a comunidade quilombola da Amarqualta. Essa área onde estávamos está em litígio na Justiça e nós temos a posse”, informou.
Paratê disse ainda não saber por qual motivo os que o acusam decidiram “retomar na marra” a área ocupada “inclusive me ameaçando de retirar na marra e de me matar”. Em seguida, o cacique apontou como um dos que o ameaçaram de morte um homem conhecido por Laércio. “A situação está muito tensa por aqui”, resumiu Paratê Tembé, relatando que saiu da área graças a um grupo que apareceu para resgatá-lo.
Sobre a nota dos quilombolas, ele ressaltou que algumas aldeias citadas no documento “desconhecem o manifesto e muito menos estão apoiando”. E citou, como exemplos, a Associação Indígena Turiwara Braço Grande, Aldeia Arumateua e Aldeia Acará Mirim não têm ciência do envolvimento dessas comunidades para a finalidade de tentar colocar um contra o outro. Essas lideranças estiveram reunidas comigo agora há pouco afirmaram não ter ciência disso e já mandaram retirar seus nomes da nota, porque nada tem a ver com isso e ignoram porque seus nomes aparecem nesse manifesto”.
VEJA O VÍDEO DA CONFUSÃO E BRIGAS
Veja abaixo a íntegra do manifesto das entidades
“O Movimento de Indígenas, Ribeirinhos e Quilombolas do Vale do Acará (IRQ), vem a público denunciar e repudiar as invasões territoriais promovidas por um grupo de indígenas Tembé e infiltrados armados, liderados por Paratê Tembé e Marquês Tembé, ao território quilombola da Amarqualta, no dia 8 de dezembro, e ao território indígena Tembé I’ixing, ontem (14).
As invasões estão ocorrendo em -nome da expansão das áreas de colheita de dendê da Associação Indígena Tembé de Tomé-Açu (Aitta), desencadeando conflitos, expondo dezenas de famílias indígenas e quilombolas ao risco e ameaçando os laços de cooperação que se estabeleceram entre os povos originários e tradicionais da região.
As ações também vem causando a fratura de associações indígenas consolidadas, como é o caso da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará (Aitva), que representa seis aldeias, duas das quais aderiram ao movimento invasor, são elas: Yriwar (cacique Urutaw Raimundo Tembé) e Wiranu (cacique Marquês Tembé).
Os conflitos começaram quando os referidos indígenas passaram a construir casas de madeira em uma área quilombola da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta), antes denominadas fazendas Ibitira e Vera Cruz, com o propósito de simularem a posse e explorarem o dendê ali plantado.
No último dia 8 (sexta-feira), as comunidades quilombolas resistiram à invasão bloqueando por algumas horas a via que dá acesso às áreas, momento em que foram ameaçadas de morte e vítimas de injúrias raciais promovidas pelos indígenas Paratê Tembé, Lúcio Tembé (pai do Paratê), Urutaw Tembé. Este último, em um grupo de whatsapp chegou a dizer: “os quilombolas vieram da África como escravos e agora querem tomar o que é nosso”.
Uma fala racista que esperaríamos ouvir das empresas que invadiram nossos territórios (como tantas vezes ouvimos direcionadas a nós, povos do Vale do Acará), mas nunca dos nossos parentes e parceiros de luta. Na ocasião, a Aitta conseguiu transmitir à imprensa e a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), uma visão completamente equivocada do que estava acontecendo no Vale do Acará, algo que, inclusive, motivou um post difamatório no instagram da Fepipa acusando os quilombolas de estarem fazendo os indígenas Tembé de refém, algo que nunca ocorreu.
No dia 14 (quinta-feira), o grupo promoveu outra invasão, desta vez no território indígena I’ixing, confirmando que as ações do grupo se dão pela busca incessante da expansão das áreas de exploração de dendê, o que fere os princípios do movimento pela retomada dos territórios violados pela monocultura da palma.
Desta vez, o grupo, com muitos integrantes visivelmente embriagados, incluindo Paratê Tembé, agrediu lideranças e depredou o carro que pertence à Capitoa Yuna Miriam Tembé, líder do território I’ixing. O grupo invasor levou consigo caminhões e tratores para extraírem o dendê plantado nas áreas retomadas pelos Tembé da I’ixing.
O que temos visto nos últimos dias são, talvez, os episódios mais tristes que nosso movimento já viu. Já fomos vítimas de muitas violações de direitos, mas todas praticadas pelo homem branco, pela sociedade envolvente e pelos grandes empreendimentos, nunca pelos nossos parentes e parceiros de luta.
Viramos referências nacionais e internacionais de união e cooperação na retomada de
territórios originários e tradicionais invadidos pela monocultura. Condutas isoladas, com propósitos individualistas de acumulação de riquezas, nos envergonham e nos fragilizam.
O ambiente é de total instabilidade, circulam informações de que os líderes dos grupos estão pressionando outras comunidades e aldeias a se juntarem às invasões, caso contrário terão elas seus territórios invadidos. Qual o sentido de se reivindicar um território ocupado tradicionalmente como é o território quilombola do Turé III, onde vivia a liderança Nazildo dos Santos, assassinado em 2018, justamente por conta dos conflitos agrários na região?
Qual o sentido de se ocupar uma área que reconhecidamente pertence ao território da aldeia I’ixing, senão como retaliação ao movimento IRQ, que congrega indígenas e quilombolas em torno da busca por direitos e proteção dos territórios e das formas de vida tradicionais e originárias? As únicas beneficiárias deste cenário de conflitos são as empresas que historicamente nos massacram.
Uma tentativa de diálogo foi realizada na sede do Ministério Público Federal (MPF), na manhã do dia 13 de dezembro, mas não houve êxito: um dia depois o grupo invasor marchou em direção à aldeia I’ixing. O Movimento IRQ tem estado em constante diálogo com as forças de segurança e com os órgãos de justiça, os quais acompanham de perto o que vem ocorrendo em nossos territórios, mas pedimos a máxima atenção das autoridades, da imprensa, da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), da Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa), da Secretaria dos Povos Indígenas do Pará (Sepi) e da Secretaria de Estado de Igualdade Racial e Direitos Humanos (Seirdh), porque tememos o derramamento do sangue preto e indígena sobre estas terras quase arrasadas em que vivemos e lutamos para preservar.
Vale do Acará, 15 de dezembro de 2023
Movimento Indígena, Ribeirinho e Quilombola do Vale do Acará
Subscrevem esta carta as comunidades indígenas e quilombolas abaixo listadas:
Associação Indígena Tembé do Vale do Acará
Aldeia I’ixing
Aldeia Acará Mirim
Aldeia Arumateua
Aldeia Cuxiu Mirim
Associação de Ribeirinhos e Remanescentes de Quilombo do Distrito Socorro
Associação Indígena Turiwara
Comunidade quilombola Ipitinga Grande
Comunidade quilombola Monte Sião
Comunidade quilombola Vila Formosa
Comunidade quilombola Turé III
Comunidade Jarandeua
Comunidade Xavier
Ita Pew do Alto Acará