Um contrato milionário firmado entre a Prodepa, empresa pública do Pará do governo estadual, e a empresa privada Trust4u. está gerando estranheza e levantando sérias suspeitas. A contratação foi realizada por meio do Pregão SRP 90004/2024, com um valor astronômico de R$ 95 milhões, para a aquisição de licenças de sistema de governança em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD, incluindo 258.750 horas de treinamento e suporte ao usuário.
No entanto, detalhes dessa negociação estão chamando a atenção e sugerem possíveis irregularidades. A empresa Trust4u, adjudicada no processo, não possui funcionário registrado via CLT, e é composta por uma pessoa que é presidente, diretor e único acionista do capital social da empresa. No perfil da rede social LinkedIn da empresa, só constam três pessoas como prestadores de serviços, entre eles, o próprio dono da empresa.
Dois desses sócios, de acordo com uma fonte da Prodepa, já pertenceram à uma grande empresa do setor, a Onetrust, que recentemente encerrou atividades no país. Essa informação, porém, não foi confirmada.
O que está sendo adquirido pela Prodepa
O Objeto do Pregão SRP 90004/2024, prevê o registro de preço para aquisição de dois itens em lote único. O primeiro ítem é a implementação de um programa de governança e conformidade com a LGPD e aquisição para o Estado do Pará, de solução integrada de gestão de conformidade com a LGPD na modalidade subscrição de licença.
O segundo item é a compra do serviço das 258.750 horas treinamento e suporte ao usuário. Trocando em miúdos, a Prodepa fez licitação para a aquisição de licenças de um software de governança de dados, em que certos dados de usuários e de processos pudessem ser protegidos, se adequando a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, ou Lei nº 13.709/2018, que é a lei brasileira aprovada em 2018 que controla a privacidade e o uso e tratamento de dados pessoais.
O detalhe ai é que a aquisição foi do tipo de subscrição de licença, e não licença perpétua, ou seja, o que está sendo comprado tem validade e expira em um certo prazo, que nesse caso em questão é de 12 meses.
Proposta vencedora e valores envolvidos
A proposta vencedora da Trust4u S.A prevê o pagamento imediato, e em parcela única, do valor de R$ 43.162.500,00 pelo item 1, que são as licenças de uso dos softwares, logo após a emissão do Termo de Aceite Definitivo dos mesmos, e no prazo de até 30 dias, contado do recebimento da nota fiscal ou fatura pela Prodepa.
Outros R$ 52.337.500,00 serão desembolsado em parcelas mensais de acordo com a demanda e uso dos serviços de suporte técnico estabelecido nas 258.750 horas previstas, podendo ser demandado em sua totalidade as horas, ou não. E o pagamento será feito somente pelas horas que forem demandadas pela Prodepa, podendo essa demanda ultrapassar o período de 12 meses, desde que reajustado o valor do serviço, conforme previsto no edital de licitação.
Coisas estranhas no ar
Ao analisar os próprios documentos para habilitação da empresa, causa estranheza o fato do capital social da Trust4u, que era de R$ 20.000 e foi aumentado para R$ 2.000.000 com a integralização de 100% do capital em ações ordinárias a seu único sócio e representante legal, o sr. Pedro Marques dos Santos Magno da Silva. Essa operação de “engorda” no capital social da empresa ocorreu no dia 03 de maio de 2024, pouco mais de dois meses antes do início da licitação da Prodepa.
Outro detalhe que chama a atenção, é que a Trust4u S.A nunca havia sequer participado de nenhuma licitação em sua existência antes de ter pela frente o edital de licitação da Prodepa, e logo de cara já sai vencedora, concorrendo contra outras empresas com experiência nesse tipo de disputa por contratações públicas.
Há ainda dúvidas quanto a capacidade financeira da empresa. A Trust4U S.A teve faturamento bruto de R$ 451.000 durante todo o ano de 2023, segundo documentos apresentados pela licitante na fase de habilitação ao pregão. O Edital de licitação prevê, conforme determina a lei, que as empresa vencedoras comprovem boa saúde financeira nesse tipo de modalidade de compra pela administração pública, que levem em conta seus índices de liquidez e solvência, ou que possa comprovar que possui capital mínimo ou patrimônio líquido no valor de 10 % da oferta apresentada.
Como o valor da proposta apresentada pela Trust4U foi de R$ 95.500.000, o mínimo de capital ou patrimônio líquido apresentado pela empresa deveria ser de R$ 9.500.000. Mas como vimos, a empresa não possui nem capital social (estranhamente aumentado de R$ 20.000 para R$ 2.000.000) e nem faturamento bruto (R$ 451.000 no ano anterior) que dê garantias de que a empresa tem o porte ou a capacidade financeira para dar conta de entregar os produtos ou serviços a que se propõe ao participar dessa licitação pública.
Mesmo com todas as salvaguardas na etapa de habilitação e adjudicação de uma proposta vencedora, o edital ainda prevê que em até 15 dias após a assinatura do contrato com a empresa vencedora deverá ser apresentado à Prodepa o valor equivalente a 5% sobre o valor do contrato, podendo ser caução em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia.
Ou seja, a Trust4u S.A deverá apresentar uma dessas garantias no valor de R$ 4.775.000. Esse valor, aliás, é mais de dez vezes maior do que todo o faturamento bruto obtido pela empresa em seu exercício anterior, no ano de 2023.
Transparência e competitividade
Por fim, vale destacar que essa questão também apresenta características que levantam suspeitas sobre a transparência e competitividade do processo. Segundo a fonte da Prodepa, o termo de referência do edital foi redigido de forma a restringir a competição, favorecendo soluções que comercializam produtos da Onetrust, ignorando outras alternativas nacionais e internacionais disponíveis no mercado, como Securiti.ai, Módulo Security, LGPDNow, Privally, Privacy Tools, Dponet, Palqee e TrustArc.
Outro aspecto intrigante é o fato de que a empresa Every TI Tecnologia & Inovação Ltda, que também atua com produtos da Onetrust e que havia manifestado interesse em recorrer do resultado da licitação, inesperadamente desistiu de seguir com o recurso. A abdicação de uma oportunidade tão lucrativa, envolvendo quase R$ 100 milhões, levanta questionamentos sobre o que motivou essa decisão.
Diante dessas circunstâncias, o contrato entre a Prodepa e a Trust4u S.A. desperta preocupação sobre o que está sendo feito com o dinheiro público pelo governo do Estado e exige uma investigação minuciosa, dos Ministérios Públicos Estadual e Federal, para esclarecer se houve direcionamento ou favorecimento indevido no processo licitatório. A falta de transparência e as possiveis conexões entre os envolvidos sugerem que o caso merece atenção não apenas das autoridades competentes, mas também da sociedade civil, que deve acompanhar de perto o desenrolar dessa contratação.
Ninguém fala
O Ver-o-Fato entrou em contato, dias atrás, com a direção da Trust4u, em São Paulo, para ouvir do presidente da empresa, Pedro Marques dos Santos Magno da Silva, esclarecimentos sobre as dúvidas que pairam sobre o contrato com a Prodepa. O atendente da empresa, ao telefone, disse que iria acionar o presidente para que ele entrasse em contato com o portal, mas até agora isso não ocorreu. O espaço está aberto.
Também foi procurada a Prodepa, mas igualmente não houve manifestação. O espaço está igualmente aberto.