Em decisão do último dia 24 de outubro em um processo sigiloso ao qual o portal Ver-o-Fato teve acesso e divulga com exclusividade, o corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Mauro Campbell Marques, impôs restrições ao juiz eleitoral Rafael Fecury Nogueira, atendendo a uma reclamação disciplinar movida contra ele por Luany Barros Aires Serra.
Na reclamação, ao final do julgamento arquivada pelo corregedor, Serra acusa Fecury, que atua como advogado e juiz no Tribunal Regional Eleitoral do Pará, de “realizar atividades comerciais e de autopromoção incompatíveis com o exercício da magistratura, como a venda de material direcionado a advogados para atuação no processo eleitoral”.
Segundo a reclamação, o magistrado estaria promovendo a venda de um “material completo e exclusivo” para advogados que desejam atuar nas eleições de 2024, utilizando suas redes sociais e seu perfil profissional para anúncios patrocinados. Em vídeos divulgados, Fecury aparece oferecendo “ebooks exclusivos” sobre temas como prestação de contas, registros de candidatura e ações eleitorais, com promessas de preparar profissionais para todas as etapas do processo eleitoral.
A defesa de Fecury alegou que o material “é uma obra doutrinária, voltada para o ensino e informativo para profissionais de várias áreas, e destacou que as petições incluídas foram geradas por inteligência artificial para evitar problemas de direitos autorais”. Entretanto, o corregedor ressaltou que a Constituição e o Código de Ética da Magistratura impõem restrições aos magistrados em relação ao exercício de atividades empresariais e autopromoção, especialmente em redes sociais.
Para evitar “exposição negativa do Poder Judiciário”, o ministro determinou que Fecury:
Suspenda a promoção direta do material: A venda de materiais didáticos não poderá mais ocorrer através das páginas pessoais de Fecury nem por ele diretamente, devendo se dar, se for o caso, por meio de pessoa jurídica e sem o envolvimento direto do juiz.
Evite a autopromoção associada à magistratura: Fecury está proibido de divulgar vídeos que explorem seu cargo de juiz eleitoral como estratégia para promover os produtos. Ele deve adotar uma postura discreta em suas redes sociais, compatível com o decoro da função.
A decisão orienta o Tribunal Regional Eleitoral do Pará a acompanhar o cumprimento dessas determinações, advertindo “que o descumprimento poderá levar à reabertura do processo disciplinar com possíveis sanções”.
Para o ministro Mauro Campbell, “a postura do magistrado deve servir de exemplo de conduta, e qualquer comportamento que comprometa a honra e o decoro da magistratura pode comprometer a confiança do cidadão no Judiciário.”
LEIA A ÍNTEGRA DA DECISÃO DO CORREGEDOR NACIONAL DO CNJ
‘ Trata-se de reclamação disciplinar apresentada por Luany Barros Aires Serra em face de Rafael Fecury Nogueira, advogado, mas que atualmente exerce a função de juiz eleitoral junto ao Tribunal Regional Eleitoral do Pará. Alega a representante, em suma, que o representado vem praticando irregularmente atos comerciais, políticos, sociais e eleitorais, em desconformidade com o estatuto da magistratura, especificamente o comércio de material eletrônico direcionado à advocacia do próprio Tribunal.
Por intermédio dos seus perfis pessoal e do escritório de advocacia, está divulgando conteúdo patrocinado, anunciando a venda de material completo e exclusivo para atuar em todas as fases do processo eleitoral, com a finalidade de ensinar advogados eleitorais a atuarem perante o Tribunal que integra.
Afirma, inclusive, que os modelos de peças práticas que compõem o material vendido pelo reclamado não são de sua autoria, “mas sim de processos em curso e de advogados terceiros”. Dos vídeos publicados pelo magistrado, a reclamante destacou os seguintes
trechos:
“Você é advogado e quer atuar num nicho que pode render ótimos honorários advocatícios? Eu sou Rafael Fecury, professor e juiz do
Tribunal Regional Eleitoral do Pará, e preparei um material completo e exclusivo, com tudo que você precisar saber para atuar em todas as fases do processo eleitoral agora nas eleições de 2024. E todo esse material está à sua disposição clicando no link abaixo”. “Se você é advogado e quer se destacar atuando nas eleições de 2024, eu sou Rafael Fecury, professor e juiz titular do Tribunal Regional Eleitoral do Pará e preparei um material completo e exclusivo com tudo que você precisar saber para atuar em todas as fases do processo eleitoral agora nas eleições de 2024. E todo esse material está à sua disposição clicando no link abaixo”. “As eleições de 2024 estão se aproximando, e aí você vai ter as convenções partidárias, registros de candidatura, propaganda eleitoral, prestação de contas, os ilícitos eleitorais, as ações eleitorais que poderão ocorrer no curso da campanha eleitoral, e aí você se pergunta, como é que eu vou me preparar para atuar no processo eleitoral agora nas eleições de 2024? Pensando nisso, eu preparei um material completo e exclusivo para te ajudar a atuar bem em todas as fases do processo eleitoral agora nas eleições de 2024, e todo esse material você consegue ter acesso clicando no link abaixo”. “Se você é da área jurídica. Mas não se sente preparado para atuar nas eleições de 2024? Eu preparei um material completo e exclusivo com tudo que precisa saber para atuar em todas as fases do processo eleitoral, contendo ebooks exclusivos sobre prestação de contas, registro de candidatura, ações eleitorais, ilícios eleitorais, pesquisa eleitoral, propaganda eleitoral, dando a você todo o conteúdo para atuar com toda a segurança nas eleições de 2024. Quer ter acesso a esse material exclusivo? Clique aqui no link”. “Se você tem interesse, mas ainda tem medo de atuar nas eleições de 2024, eu sou Rafael Fecury, professor e juiz titular do Tribunal Regional Eleitoral do Pará, e preparei um material completo e exclusivo com tudo que você precisa saber para atuar com segurança em todas as fases do processo eleitoral agora nas eleições de 2024 E todo esse material está à sua disposição clicando no link abaixo”.
Ao final, requer ao Conselho Nacional de Justiça o deferimento de medida liminar para suspender as redes sociais do magistrado, além de afastá-lo da função de juiz eleitoral e, no mérito, que seja realizada a apuração dos fatos, com a instauração de procedimento administrativo disciplinar e a aplicação da penalidade cabível e prevista em lei para a espécie.
Diante da relevância das alegações o magistrado representado foi notificado para apresentar manifestação. Sustenta o representado, em suma, que o material mencionado se trata de obra literária, de caráter doutrinário, destinada a transmitir, de modo conciso, os principais tópicos das normas eleitorais, tendo como público alvo magistrados, membros do Ministério Público, advogados, contadores, profissionais de marketing etc.
O livro digital consistiria em um compilado das normas aplicáveis ao processo eleitoral, com jurisprudência e doutrina, não se caracterizando como atividade de coaching, nos termos do art. 5º-A, da Res. CNJ 34/2007.
Alega ainda que as petições produzidas e constantes do livro digital de autoria do magistrado reclamado foram inteiramente redigidas através de ferramenta de Inteligência Artificial, justamente para evitar qualquer tipo de problema envolvendo eventuais direitos autorais de quem quer que seja.
É o relatório.
Dispõe o artigo 95, parágrafo único, inciso I, da Constituição da República ser vedado ao Magistrado o exercício de qualquer outro cargo ou função, salvo uma de magistério. A Resolução n. 34, de 24 de abril de 2008, do Conselho Nacional de Justiça determina que o exercício de qualquer atividade docente por parte do magistrado deverá ser comunicada formalmente ao órgão competente do Tribunal (art. 3º).
O artigo 5º, da referida resolução, dispõe sobre a vedação do exercício da atividade de coaching, que não se equipara ao exercício do magistério: Art. 5º-A As atividades de coaching, similares e congêneres, destinadas à assessoria individual ou coletiva de pessoas, inclusive na preparação de candidatos a concursos públicos, não são consideradas atividade docente, sendo vedada a sua prática por magistrados. (Incluído pela Resolução nº 226, de 14.06.16).
Apesar da atividade desenvolvida pelo representado se assemelhar à atividade de coaching, considerando o contexto de que o Magistrado é advogado e atua temporariamente (por mandato) no Tribunal Regional Eleitoral, os cursos, livros e rol de petições oferecidos estão relacionados diretamente com a atividade acadêmica e com a área de atuação do representado.
Em relação ao conteúdo dos e-books, verifico que se tratam de produção decorrente de atividade científica e informativa, inexistindo, da mesma forma, qualquer irregularidade ou infração disciplinar, ao menos do que se extrai nessa análise inicial.
Quanto às petições 5678525, 5678526, 5678527 e 5678528, que, segundo a autora, teriam sido plagiadas, o representado ressalta que todas foram produzidas por meio de inteligência artificial. A despeito de existir semelhança e repetições de vários termos, conforme se extrai da petição da advogada, tratam-se de peças simples e sucintas, sendo possível que a inteligência artificial tenha produzido também as peças formuladas pelos escritórios de advocacia.
Por outro lado, é certo que a Constituição protege a liberdade de expressão e a manifestação do pensamento intelectual e científico. Ocorre, contudo, que essa liberdade não é ampla e irrestrita, encontrando limitações em face de outros direitos fundamentais.
Particularmente, em relação aos magistrados em geral, a liberdade de expressão é ainda mais restritiva, pois constitui dever do magistrado ter decoro e manter ilibada conduta pública e particular que assegure a confiança do cidadão, de modo que a manifestação
em redes sociais não deve comprometer a imagem do Poder Judiciário perante a população.
Destaca-se que o Código de Ética da Magistratura dispõe que (i) o magistrado não deve exercer a atividade empresarial, exceto na condição de acionista ou cotista e desde que não exerça o controle ou gerência (art. 38); (ii) o magistrado deve evitar comportamentos que impliquem a busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, mormente a autopromoção em publicação de qualquer natureza (art. 13); (iii) o magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral (art. 16); (iv) ao magistrado é vedado usar para fins privados, sem autorização, os bens públicos ou os meios disponibilizados para o exercício de suas funções (art. 18) e (v) ao magistrado é vedado procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções (art. 37).
Tendo isso em conta e vislumbrando a possibilidade do encerramento da presente reclamação disciplinar de forma cooperativa, determino ao representado que: (i) Em relação à atividade empresarial, é importante salientar ser vedado ao magistrado o comércio direto de apostilas, livros etc, tendo em vista a restrição quanto ao exercício da atividade empresarial, exceto por meio de pessoa jurídica, e desde que atue na qualidade de sócio sem poder de administração.
Dessa forma, para evitar qualquer infringência aos deveres da Magistratura, o representado não poderá mais veicular vídeos com o intuito exclusivo de vender e promover o material citado, sendo que a venda dos materiais didáticos produzidos não pode se dar por meio das suas páginas pessoais ou através da sua pessoa física; (ii) Considerando a vedação da autopromoção e da busca de reconhecimento social, as restrições ao comportamento na vida privada direcionadas ao magistrado – que deve ser exemplo para a sociedade -, e a vedação de adoção de procedimento incompatível com a honra e o decoro das funções, determino que o representado não poderá veicular vídeos salientando ser juiz eleitoral, com o único intuito de vender livros e apostilas, devendo os seus pronunciamentos em rede social ser discretos, evitando-se a exposição negativa do Poder Judiciário.
Notifique-se o representado acerca das determinações, dando ciência de que o descumprimento poderá ensejar a reabertura da reclamação com todos os seus consectários legais. Dê-se ciência à Corregedoria do Tribunal Regional Eleitoral para o acompanhamento do caso. Após, arquivem-se os autos.
Brasília, 24 de outubro de 2024. MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES
CORREGEDOR NACIONAL DE JUSTIÇA”