Quilombolas e indígenas do Vale do Acará divulgaram uma carta aberta da qual o Ver-o-Fato teve acesso, denunciando uma série de violências praticadas pela mineradora norueguesa Norsk Hydro. Segundo eles, os ataques contra as comunidades da região tem o “apoio da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará (Segup)”, o que permite à empresa multinacional ” violar direitos humanos de comunidades do nordeste paraense”.
O Ver-o-Fato tenta ouvir a manifestação dos citados na carta. De qualquer maneira, o espaço está aberto às explicações dos envolvidos.
Diz um trecho da carta: ” Com largo histórico de desastres socioambientais e violações de direitos à comunidades indígenas e quilombolas na Amazônia, como é o caso de Barcarena, a Hydro vem repetindo sua metodologia neocolonial e violadora contra os povos do Vale do Acará”.
As comunidades reclamam que a ampliação do mineroduto da Hydro, que traz a bauxita de Paragominas para Barcarena, num percurso de 244 quilômetros, atravessando cinco municípios, tirou de vez o que já era ruim: a tranquilidade e o modo de vida dos quilombolas e indígenas. O barulho infernal das máquinas e veículos da empresa virou tormento diário. E quem reclama é reprimido, não tendo a quem recorrer.
Veja a íntegra da carta:
Nós, comunidades indígenas Tembé e Turywara, quilombolas e ribeirinhos, vimos à público denunciar as violações de direitos humanos e ancestrais da mineradora norueguesa Norsk Hydro em nossos territórios. Há duas décadas fomos obrigados a conviver com a presença intrusiva de um longo mineroduto que rasga o subsolo de nossas terras sagradas, estrutura que afugenta nossas caças e prejudica a reprodução dos peixes (ictiofauna), levando-nos ao risco de insegurança alimentar.
Impede nossa livre circulação e estressa nosso cotidiano. O barulho infernal das toneladas de minérios que são transportados de Paragominas até Barcarena amedronta as crianças e viola a sacralidade de nosso solo ancestral. Não bastasse isso, quilômetros de torres e linhas de transmissão acompanham o traçado do mineroduto, limitando
ainda mais nossos espaços.
Agora, para que a Hydro se adeque às suas necessidades de produção, está renovando e ampliando os dutos. Com isso, dezenas de funcionários, carros e maquinários pesados passaram a invadir nossos territórios, o que de forma alguma aceitaremos.
Mentiras e histórico de desastres ambientais
A Hydro afirma adotar práticas de sustentabilidade e de diálogo pleno com os povos afetados por suas atividades, mas esta é mais uma mentira contada pela mineradora.
Com largo histórico de desastres socioambientais e violações de direitos à comunidades indígenas e quilombolas na Amazônia, como é o caso de Barcarena, a Hydro vem repetindo sua metodologia neocolonial e violadora contra os povos do Vale do Acará. As comunidades não foram consultadas sobre a circulação constante e intrusiva dos funcionários da empresa, que passam em suas picapes em alta velocidade nas estradas de acesso às aldeias e quilombos, colocando em risco nossas famílias.
Nunca fomos consultados sobre se autorizávamos ou não que rasgassem o ventre de nossas terras sagradas; em momento algum autorizamos que usassem nossos aquíferos (de forma gratuita e ao esgotamento). Valas enormes estão sendo abertas, representando perigos aos comunitários e aos animais que nelas caem e agonizam até a morte. Estradas foram abertas para a circulação da empresa, facilitando a circulação de pessoas não autorizadas nos territórios e colocando em risco a segurança das comunidades.
Intimidações com apoio da Segup
Além disso, a Hydro, com a apoio da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Pará (Segup), passou a intimidar e achacar as comunidades com policiamento ostensivo da Polícia Militar, prática patrimonialista e completamente questionável, pois somos os alvos, tratados como marginais em nossa própria casa.
Vale ressaltar que a intervenção policial tem acontecido sem nenhuma decisão judicial, obedecendo ordens diretas
do secretário Ualame Machado, segundo o Comandante da Polícia Militar da região.Usando de sua influência e estrutura material, a Hydro também tem processado lideranças que questionam suas ações, contrariando a ideia de que existe diálogo pleno e escuta das comunidades.
O que há, de fato, é uma disputa desigual de poder entre uma transnacional poderosa da mineração, com mais de 20 sedes no mundo inteiro, e comunidades tradicionais e originárias lutando por direitos. As ações da Hydro contrariam, inclusive, os esforços da Vara Agrária do Ministério Público do Estado do Pará e da Defensoria Pública no sentido de mediar a questão, esforços estes manifestos em audiência pública realizada no dia 26 de setembro, na Câmara Municipal de Tomé-Açu.
Indígena preso
No dia 13 de junho, dando sequência à tentativa de criminalizar nossos movimentos por direito, um indígena Tembé, ao se manifestar sobre o incômodo das atividades da Hydro no cotidiano de sua família, já que o mineroduto passa em frente à sua casa, foi preso sob alegação de estar impedindo a circulação dos funcionários da empresa. O mesmo indígena foi acusado de crime ambiental quando fazia a coivara da sua roça (prática ancestral indígena de manejo da terra e da vegetação).
Esta carta aberta também questiona e pede a suspensão da licença de operação (LO) concedida pela Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará, em 2022, ao mineroduto da Hydro, uma vez que os estudos de componente quilombola e indígena ainda não haviam sido concluídos naquela data.
Ameaça policial
No dia dois de setembr, por volta das 17h, representantes da Associação Indígena Tembé do Vale do Acará, foram surpreendidos por policiais militares e da Força Nacional, que faziam a segurança da operação da mineradora Hydro. Ao verem a movimentação, nossas lideranças se aproximaram e questionaram — ainda do interior do carro — o porquê dos funcionários da Hydro estarem atuando no território, se há três meses as comunidades indígenas e quilombolas determinaram a suspensão de qualquer atividade da empresa até que ela cumpra com as previsões legais dos Estudos de Componente Indígena e Plano Básico ambiental Indígena; Estudos de Componente Quilombola, Plano Ambiental Quilombola, precedidos da consulta prévia, livre e informada.
Ao tentarem descer do veículo, os indígenas foram empurrados e ameaçados pelos agentes. Mesmo com a proibição das aldeias e comunidades, a Hydro continuou operando. Em protesto, desde ontem (3), a principal via de acesso ao
empreendimento da empresa está fechada.
É absurdo que a Segup incorra em patrimonialismo (uso da coisa pública como se privada fosse) e, mais ainda, o faça para ameaçar comunidades tradicionais e originárias da Amazônia. É inaceitável que a Hydro continue violando nossos direitos, cooptando as forças estatais a seu favor. Não há disputa sem paridade de armas.
A Hydro tem dinheiro, o Estado e uma equipe de marketing muito eficaz, capaz de pintar uma imagem positiva de uma empresa recordista em crimes sociombientais na Amazônia, tendo como alvo sempre os corpos indígenas e
quilombolas.
Repúdio à intrusão
Diante deste quadro desolador, as comunidades violadas pela Hydro, reunidas neste documento, informam a quem interessar possa que não aceitarão mais a intrusão e a continuidade das práticas criminosas da empresa, que atentam contra o que preconiza a Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que prevê a consulta prévia, livre e informada dos povos — o que não houve.
Em tempo, pedimos o acompanhamento e diligência do Ministério Público Federal, Ouvidoria Agrária Nacional, Ministério dos Direitos Humanos, Ministério da Igualdade Racial, Ministério dos Povos Originários, Ministério Público do Estado do Pará, da Procuradoria Geral do Estado do Pará, da Comissão de Direitos Humanos da OAB, da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, da Funai, Ibama, Fundação Cultural Palmares, Coordenação das Comunidades Quilombolas do Pará (Malungu) e demais órgãos ambientais e de fiscalização.
Nenhum direito a menos.
Assinam as associações:
ASSOCIACAO TENETEHAR TEKOHAW PYTAWA
ASSOCIAÇÃO INDÍGENA TEMBÉ DO VALE DO ACARÁ (AITTA)
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES E AGRICULTORES REMANESCENTES
QUILOMBOLAS DO ALTO ACARÁ (AMARQUALTA)
ASSOCIAÇÃO INDÍGENA TURIWARA DO BRAÇO GRANDE (AITBG)
ASSOCIAÇÃO QUILOMBOLA DA COMUNIDADE NOVA BETEL