Era para ser apenas um aniversário de amigos. Uma festa simples em um apartamento de Ananindeua, na noite de 23 de fevereiro de 2019, mas o que aconteceu ali marcaria para sempre a vida de uma mulher. Sob o pretexto de um ambiente seguro e amistoso, o cenário se transformou em um pesadelo do qual ela tenta acordar até hoje — cinco anos depois.
Esta é a história de uma sobrevivente de violência brutal, negligenciada pelo sistema que deveria protegê-la. Uma história de abandono, descaso, e uma busca incessante por justiça. O Ver-o-Fato foi procurado pela vítima – cujo nome será mantido em sigilo -, que pediu ajuda para tornar público o que está ocorrendo.
O processo, contra os estupradores e contra o Estado, corre sob segredo de justiça em uma vara penal de Ananindeua.
A mulher narra que, após hesitar em participar da festa, pressionada por mensagens de amigos do aniversariante, ela decidiu ir sozinha, já que seu marido não quis acompanhá-la. Achava que estaria segura, pois o anfitrião e seus amigos eram homossexuais. Mas ao chegar ao local, percebeu que algo estava errado.
Foi cercada por assédios constantes, insistências, e comportamentos invasivos. Depois de ingerir uma bebida amarga que lhe ofereceram, começou a sentir os efeitos devastadores de algo que mais tarde suspeitaria ser uma droga. Sem forças, viu-se isolada, vulnerável e sem qualquer auxílio dos presentes.
A madrugada se desdobrou em momentos de terror. Encurralada em um quarto, foi vítima de estupros repetidos, enquanto outros participavam ou se omitiam. A humilhação continuou ao amanhecer, quando, sem forças para andar, foi levada para um pronto-socorro, mas sequer conseguiu relatar o que havia acontecido.
“Tentei suicídio 2 vezes”
“No dia da audiência, eu estava sozinha, e me mandaram esperar na recepção do 2º andar da 13º Vara Criminal de Ananindeua, mas dei de encontro com os réus que lá se encontravam, entrei em desespero, corri para a sala da secretaria e me deram água, disseram que não era para eles estarem no mesmo andar que eu. Na audiência, o promotor me perguntou por que eu demorei tanto para denunciar? Eu respondi, um dia? Acredito que ele não leu meu processo e ao invés de me defender, ficou me questionando como se eu fosse culpada”, diz trecho de um extenso relatório da vítima ao Ver-o-Fato.
Segundo ela, são cinco anos e quatro meses correndo atrás de justiça sozinha, só ouvindo “espera,” “aguarde”. “Não fui encaminhada na época para o grupo de apoio NUGEN, ou qualquer rede de apoio. Não estou tendo atendimento no CAPS, tive que suspender meus Conselhos, estou desempregada e sem conseguir estudar novamente por não ter paciência e concentração. Tudo me irrita e me desestabiliza”, acrescenta.
“Não tenho nenhuma ajuda financeira do Estado, nunca recebi nenhum auxílio ou benefício, não saio de casa para lazer, me afastei de todos inclusive da família, tenho medo de aglomerações, de andar sozinha, barulhos me irritam, tenho crises de enxaqueca e de ansiedade. Tentei suicídio por duas vezes, estou ficando careca, em crise de ansiedade, eu lesiono meu corpo chegando a sangrar”, diz ela em outro trecho
Processo contra o Estado
“Procuro reparação do Estado pelo tempo e por todo erro que me levou a ser a pessoa doente que hoje sou. Não tive sequer a chance ou oportunidade de exercer minhas formações, tive que correr atrás de justiça, pois todos a quem procurei, não fizeram nada por mim. Hoje sou uma mulher envelhecida e doente, aos 46 anos sem motivação e acuada dentro de casa, depois de ter seis formações e vários cursos extra curriculares, dependendo dos outros para ter o que comer”, enfatiza a vítima.
E mais: “Peço a vocês que olhem por mim, façam valer a justiça nesse Estado, ninguém merece passar por qualquer tipo de abuso, e a Constituição Federal diz que é dever do Estado garantir a todos uma qualidade de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. É isso que desejo, reparação, dignidade, voltar a ser uma pessoa normal onde eu possa ter saúde e me sentir segura, saber que outras não terão que passar pelo mesmo descaso que eu tive. Por favor me ajudem”.
Inquérito, “uma porcaria”
A tentativa da vítima ao buscar justiça revelou outro pesadelo. No dia seguinte aos estupros, ela procurou a delegacia especializada (DEAM) do bairro Marco, em Belém, mas foi orientada a registrar o Boletim de Ocorrência em outra unidade, no município de Ananindeua, onde ocorreu o crime. Lá, enfrentou desdém e resistência da escrivã, que inicialmente se recusou a registrar o caso porque ela não sabia o endereço exato do apartamento.
Mesmo após fornecer o endereço, a investigação foi marcada por negligências: o exame de corpo de delito foi realizado por sua insistência; nenhuma medida imediata foi tomada para localizar e ouvir testemunhas ou preservar provas, como as roupas que ela entregou posteriormente.
Enquanto isso, ela buscava apoio psicológico e jurídico. Cada porta que batia parecia mais uma muralha: defensoria pública, Ministério Público, conselhos profissionais. A promotora do caso admitiu que o inquérito era “uma porcaria”, mas mesmo assim, pouco foi feito para corrigir as falhas.
Cinco anos de luta, zero justiça
Hoje, aos 46 anos, a mulher vive enclausurada, marcada pela ansiedade, depressão, crises de pânico e pensamentos suicidas. A negligência do sistema a empurrou para uma existência de sofrimento e isolamento. Ela perdeu a saúde, a carreira e a motivação para viver.
Apesar de um dos acusados ter confessado o crime, ele foi tratado como testemunha no processo. Provas cruciais, como conversas em seu celular, foram ignoradas. Testemunhas mentiram sem consequências. Mesmo após diversas denúncias, as autoridades continuam apáticas, enquanto ela assiste sua vida desmoronar, vítima não só dos algozes daquela noite, mas também de um sistema que falhou em todos os níveis.
Sua história não é só dela: é o retrato de um país que deixa mulheres desamparadas, que culpa as vítimas, e que banaliza a violência de gênero. A Constituição Federal garante dignidade à pessoa humana, mas na prática, ela foi abandonada por quem deveria protegê-la. Prevaricação é crime previsto em lei.
Hoje, ela pede apenas reparação. Não quer caridade, mas o direito de viver com dignidade. Sua luta, apesar de pessoal, carrega um grito coletivo: nenhuma mulher deveria ser obrigada a enfrentar sozinha tamanha violência e injustiça.
O Ver-o-Fato fez um levantamento completo e checagem sobre o que ocorreu com essa vítima. Por enquanto, não revela os nomes dos envolvidos, mas vai acompanhar o desdobramento do caso na justiça.
Quantas vidas mais – como no caso dessa mulher – precisarão ser destruídas até que o Estado cumpra seu dever?