Representantes de povos indígenas, quilombolas, pescadores, camponeses junto com cientistas do clima, biólogos, antropólogos e sociólogos – alguns deles membros de comunidades tradicionais, se reuniram de 20 a 23 de outubro na UFPA, em Belém, para discutir a Amazônia e mudanças climáticas no Encontro dos Saberes, promovido pelo Fórum Social Pan Amazônico. O resultado dos quatro dias de debates e conversas resultou em uma carta, que será lida em Glasgow, Reino Unido, durante a COP 26 – 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, em evento paralelo.
Para Luiz Arnaldo Campos, um dos coordenadores do encontro e integrante do Conselho Internacional do Fórum Social Pan-Amazônico, a Carta “é produto da escuta das muitas vozes que se expressaram no Encontro de Saberes. Eu não tenho dúvidas de que é um texto que expressa o coração dos povos da Amazônia junto com a vontade solidária de todos e todas que assumem a defesa da natureza e seus povos.”
A leitura da Carta na Assembleia Geral pela Amazônia, que acontecerá no dia 9 de novembro próximo, durante a COP26, fará parte do esforço para que a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática considere a defesa da Amazônia como uma questão prioritária e seus povos como os verdadeiros protagonistas desta luta.
A importância de a Amazônia ser incluída nos debates da COP26 foi uma questão debatida por participantes de diversos países que participaram do Encontro dos Saberes, na Universidade Federal do Pará, que reuniu cerca de 500 pessoas presencialmente, respeitando todos os protocolos de segurança sanitária e mais de 5 mil pessoas de diversos países da Pan Amazônia, de forma online.
Segundo Pablo Sólon, ambientalista e coordenador da Assembleia Mundial pela Amazônia, é importante termos clareza quanto aos objetivos para com a Amazônia: “queremos salvar a Amazônia ou fazer negócios com a Amazônia? É possível salvar a Amazônia com a lógica dos investimentos privados? Neste Encontro dos Saberes ficou claro que a defesa da natureza não conjuga com o lucro.”
Na carta, escrita por muitas mãos, se fala do pouco tempo que temos para que a Amazônia não entre em estado de não recuperação. “Não há mais tempo para esperar. Nós, indígenas, quilombolas, pescadores, moradores das cidades amazônicas, cientistas de várias áreas, nos reunimos por quatro dias em Belém, trocando conhecimentos e percepções; após termos chegado a algumas conclusões, escrevemos esta carta, com aquilo que nosso coração diz, reflorestando mentes para a cura da Terra”.
Para Oswaldo Gomes de Souza Júnior, professor doutor da UFPA, “ o Xingu é a morada de Deus. Imagine construir uma hidrelétrica em cima da morada de Deus? O primeiro passo para cuidar da Amazônia é reflorestar as mentes, desaprender para reaprender. Para isso estamos aqui.”
O Encontro promoveu trocas, debates e fortalecimento das lutas dos povos em defesa da Amazônia. Para muitos foi um momento especial de estar junto aos seus pares presencialmente, depois dos isolamentos necessários pela pandemia. “Neste tempo de pandemia e genocídio, só de nos reencontrarmos presencialmente e podermos falar outra vez da luta e dos sonhos, eu considero um privilégio”. Afirmou Emmanuel Wambergue, antigo agente pastoral e uma das referências da luta camponesa no Sul e Sudeste do Pará.
A carta foi lida no encerramento do Encontro dos Saberes por Márcia Wayna Kambeba, do povo Omágua/Kambeba, do Amazonas. Ela é doutoranda em Estudos Linguísticos, escritora, poeta, compositora, ativista da causa indígena e ambiental. Atualmente, é Ouvidora Geral do município de Belém.
Assembleia Geral da Amazônia
A carta será lida em Glasgow, Reino Unido, no dia 09 de novembro, durante a Assembleia Geral pela Amazônia – evento que será presencial e transmitido de forma online. “O Encontro de Saberes faz parte de uma série de ações como a do Tribunal de Direitos da Natureza, que em Glasgow abrirá o caso Amazônia e a própria reunião da Assembleia Mundial pela Amazônia. Todas estas atividades têm por objetivo enlaçar a luta dos povos, movimentos, organizações e redes da Pan-Amazônia, fortalecendo a ideia de que o destino da Pan-Amazônia deve ser decidido e dirigido por seus povos. A próxima parada desta jornada será outra vez em Belém , em julho de 2022 , na décima edição do Fórum Social Pan-Amazônico”, conclui Luiz Arnaldo Campos.
Os vídeos da transmissão online do Encontro dos Saberes estão disponíveis no canal da FOSPA no youtube: https://www.youtube.com/channel/UCp-ZvmugeA02oKtxdMIMoqg/featured
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CARTA EM DEFESA DA AMAZÔNIA
Aos Senhores e Senhoras Governantes,
Aos Povos da Terra
Em poucos dias a atenção do mundo estará voltada para uma terra de montanhas, chamada Escócia, onde se reunirão vontades e esperanças de deter uma catástrofe que já acontece em todo mundo. O aquecimento do planeta vem derretendo as neves da Cordilheira dos Andes, descongelando o Ártico e provocando inundações e secas de grande intensidade no nosso pedaço da terra: a floresta amazônica. Mudanças no comportamento das plantas, do regime das chuvas e dos animais são sinais de um grave desequilíbrio que irá fazer desabar o céu, segundo nossos pajés, ou, tornar a Terra um local inabitável para a espécie humana, de acordo com os e as cientistas.
Homens e mulheres de ciência concordam: o aquecimento do mundo é provocado pelo lançamento na atmosfera de gases que intensificam o chamado “efeito estufa”. E os maiores responsáveis por estes lançamentos são a queima dos combustíveis fósseis e o desmatamento das florestas. São dois monstros que se retroalimentam, devorando a vida no planeta.
A Amazônia é a maior bacia hidrográfica e a maior floresta tropical contínua do mundo, com riquíssimos bosques de manguezal. Se espalha pelo território de nove países: Brasil, Peru, Equador, Venezuela, Colômbia, Suriname, Bolívia, Guiana e Guiana Francesa e é o lar de mais de 300 povos indígenas, além de outros povos e comunidades tradicionais. Por sua capacidade de absorver carbono da atmosfera, regular as chuvas e a temperatura, a floresta amazônica é vital para o equilíbrio climático da Terra. Ataques contra a floresta são, na prática, ataques contra a humanidade
E apesar de todo mundo saber disto, a derrubada de milhões de hectares de selva continua ano após ano, tendo se acentuado no último período. Da mesma forma a destruição ambiental provocada pela mineração e o garimpo, tanto legal quanto clandestino, os incêndios e o envenenamento da terra pelos agrotóxicos continuam em escala ascendente. Apesar de serem gestos enlouquecidos, por detrás deles está uma lógica perversa, movida por uma ganância sem limites, pela ânsia de ser dono do vento, da chuva, do sol e da lua.
Nós vivemos na Amazônia. Aqui, desde a invasão europeia lutamos contra uma colonização predatória, etnocida e genocida, que explora e destrói a floresta e seus povos. Tentaram arrancar nossa raiz, exterminaram costumes, idiomas e saberes, mesmo assim seguimos, resistindo.No meio das lutas, com a força das amazonas guerreiras, reinventamos a vida. Nos nossos territórios, a natureza vive e tem direitos. Matas e rios são bens comuns. Buscamos o bem viver. Por isto, as forças movidas pelo lucro nos atacam. Seguimos resistindo.
Existe um momento quando ascoisas se decidem. E este momento é agora. Estudos científicos provaram que nas áreas devastadas, no sul e sudeste da Amazônia brasileira, a antiga floresta, exatamente pelo sacrifício de suas árvores, está emitindo mais gás carbônico do que absorvendo. Outras investigações comprovam que perigosamente se aproxima o ponto de não retorno, quando a floresta não terá mais capacidade de se recuperar. Em todo continente latino-americano os efeitos da destruição da floresta já são sentidos. Do Pacífico ao Caribe, da Cordilheira dos Andes aos Pampas.
Em momentos de perigo é preciso ser audacioso. A floresta amazônica está sendo afogada por diversos crimes, comandados por governos genocidas como o do Brasil e o da Colômbia. Por fim a estes governos é uma necessidade imperiosa dos povos da Panamazônia e do mundo. Mas além de se livrar dos maus governantes, é preciso mudar sua política. Parar definitivamente os cortes e os incêndios é uma medida indispensável e saneadora.
Da mesma forma apoiamos a campanha feita pela Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica para que cheguemos a 2025 com 80% da cobertura florestal da Amazônia de pé, garantindo assim que o ponto do não retorno não será alcançado. Em escala internacional, é necessário interromper o consumo dos produtos ligados ao desmatamento da Amazônia, como os derivados do agronegócio predador. Defender a Amazônia é o único caminho para os povos de todos os continentes.
É fundamental demarcar e proteger todas as terras indígenas e das comunidades tradicionais, cessando imediatamente as invasões e os ataques.Exigir o cumprimento da Convenção 169 da OIT, que garante consulta livre e bem-informada aos povos e populações tradicionais, no caso de projetos que afetam nossos territórios e nosso modo de vida. Não é possível mais suportar os pesados custos sociais, ambientais e culturais impostos por megaprojetos hidrelétricos, de infra-estrutura e monoculturas de soja, dendê, eucalipto, acácia que em nada beneficiam nossa vida e são ameaças concretas à nossa existência.
Quando esta carta chegar às vossas mãos, governantes do mundo, é possível que estejam discutindo sobre como destinar os recursos previstos para deter a catástrofe climática. Deixem-nos dizer sinceramente, que nenhum centavo deve ser destinado para quem, através de ataques abertos ou falsas soluções ambientais, promove a destruição da natureza e sua transformação de ente vivo em coisa morta. Os recursos do mundo para defender a floresta devem ser destinados aos que derramam seu sangue, afrontam a violência e mesmo assim são os mais comprometidos defensores da natureza. Assim é justo que recebamos diretamente os recursos destinados para salvar a floresta. Desta forma poderemos potencializar e expandir nossa ação, beneficiando toda humanidade.
Não há mais tempo para esperar. Nós, indígenas, quilombolas, pescadores, moradores das cidades amazônicas, cientistas de várias áreas, nos reunimos por quatro dias em Belém, trocando conhecimentos e percepções; após termos chegados a algumas conclusões, escrevemos esta carta, com aquilo que nosso coração diz, reflorestando mentes para a cura da Terra.
Desde Belém do Pará, próximo ao delta do Grande Rio,levantamos nossas vozes. Estamos convencidos que a Amazônia é o coração do mundo. Aqui se travará o embate decisivo, onde será decidido o destino da Humanidade e da Biodiversidade. Não há como salvar o clima do planeta sem deter os ataques contra a Amazônia e nossa gente. Acreditamos que a força dos povos do mundo será capaz de mudar esta história. Uma Amazônia preservada e vitoriosa será o trampolim de uma nova Humanidade.
Belém, 23 de outubro de 2021
Encontro dos Saberes Amazônia e Mudanças Climáticas