“Como pai, me considero, modéstia à parte, uma mãe exemplar”, “A morte é, de tudo na vida, a única coisa absolutamente insubornável”e “Deus é humorista” são frases que têm em comum seu autor, o escritor mineiro Otto Lara Resende, frasista do gabarito de Millôr Fernandes, Paulo Francis, Fernando Sabino, e que faria 100 anos neste domingo, 1.º. Em suas palavras, a data “é Dia do Trabalho, mas também é feriado” – outra sacada certeira sobre a ambiguidade da efeméride, feita pelo homem que analisou a sociedade como, segundo ele, “um especialista em ideias gerais”.
“Otto se interessava muito por qualquer tipo de assunto e mais, ele sempre falava sobre algo de interesse de quem estava conversando, podia ser sobre futebol, mesmo ele não gostando, puxava assunto e falava daquilo de uma forma apaixonada, era um mestre da improvisação”, conta Helena Lara Resende, filha do autor de Um Bom Dia para Nascer, idealizadora do documentário sobre o pai, que está em fase de finalização.
Uma produção que incorpora poesia, com Rodolfo Vaz, do Grupo Galpão, como intérprete de Otto. “Entrar no universo de Otto foi algo que, às vezes, me encabulava. Estava ali em contato com coisas muito íntimas, os bilhetes para a filha, cartas para amigos, é um trabalho guiado por fortes emoções”, conta Vaz, que precisou construir o personagem rapidamente. “Quando recebi o convite da Heleninha, não demorou muito para gravar, foram dois dias de filmagem, em Petrópolis, e estar ali naquele universo, pegar os trejeitos de Otto, me vestir como ele, é de uma responsabilidade enorme”, revela o ator mineiro, que encarnou o personagem do escritor melancólico, pai amoroso e amigo fiel.
O conhecimento da obra de Otto é um convite para que se estabeleça uma conexão entre o personagem e quem vai interpretá-lo. Para leituras, Helena convidou a atriz Julia Lemmertz, que dá voz a cartas, crônicas e outros textos do autor de, entre outros, O Braço Direito, seu único romance, engavetado por décadas até ser publicado postumamente. “Podia não parecer, pois ele era uma pessoa muito alto-astral, mas meu pai tinha também uma melancolia, e quem conviveu com ele confirma isso, e por aí se entra na literatura”, lembra Helena. Empenhado em deixar bons escritos, seu amigo e conterrâneo mineiro Humberto Werneck realiza há anos o trabalho de preservar a memória de Otto. Organizou a seleta de cartas a Fernando Sabino, O Rio É Tão Longe (Companhia das Letras), artigos do Portal da Crônica Brasileira, sempre sob o lema da arte de “despiorar”, termo criado por Otto, além da vasta bibliografia sobre o autor de O Príncipe e o Sabiá, o que levou Helena a estender o convite para a participação do jornalista e cronista no documentário.
OBSERVADOR. Bem mais que um especialista em ideias gerais, Otto Lara Resende foi um cronista exemplar, da verve de Rubem Braga, Sabino, Paulo Mendes Campos. Otto publicava em diários do Rio de Janeiro em meados do século passado. Falava de tudo com paixão e erudição. Sem pecar por pedantismo, sua escrita é marcada pelo interesse na figura humana. Como se o autor puxasse uma cadeira para papear.
Como jornalista, fez escola, foi multimídia em tempos analógicos, começou em jornais, passou por revistas até iniciar uma colaboração luminosa com a Rede Globo, como comentarista. Entrevistador, desnudou convidados polêmicos, como Nelson Rodrigues, em uma conversa que pode ser vista hoje no YouTube.
São resquícios de Otto que sobreviveram quase três décadas depois de sua morte, em dezembro de 1992. “Quando tive a ideia de fazer o documentário sobre meu pai, comecei a revisitar aquele universo, os bilhetes que ele me deixava todos os dias antes de ir para o trabalho, me emocionei muito lendo os livros, não foi fácil lidar com essas emoções, eu era muito jovem quando ele morreu”, revela Helena, que tinha pouco mais de 20 anos quando o pai faleceu.
Das reminiscências que construíram o documentário, Helena e Marcos Ribeiro, codiretor, reconstituíram o escritório de Otto na casa da família em Petrópolis. “Foi uma ambientação criada a partir de peças de acervo que são do Instituto Moreira Salles, então não é o escritório, de fato, como era há 30 anos – o cenário tem muitas coisas originais, mas foi montado a partir de um recorte de afeto.” Após a morte do escritor, que foi conselheiro do centro cultural, todo seu acervo foi doado ao IMS, milhares de cartas, textos, a mesa do escritório e as máquinas de escrever.
RESPOSTAS. “Meu pai escreveu 29 laudas para o Paulo Mendes Campos, que era superamigo e falante, engraçado, e na escrita a melancolia tomava conta, ele era muito preocupado com o mundo, a morte, enfim, e isso era passado para a literatura”, explica Helena, que leu o romance O Braço Direito pela primeira vez quase 30 anos depois da publicação. “Meu pai era movido pela angústia eterna, católico fervoroso e, por mais comunicativo, ele tinha horas de se recolher, ficar sozinho, escrever.”
Publicada na revista Manchete, a entrevista concedida a Paulo Mendes Campos guiou o roteiro do documentário, que tenta responder quem foi Otto Lara Resende. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.