A França, conhecida como a “pátria dos direitos humanos”, parece estar negligenciando esse emblema ao expulsar mais de 12 mil moradores de rua de Paris para “embelezar” a cidade para os Jogos Olímpicos de 2024. Essa ação, criticada por associações e defensores dos direitos humanos, é vista como um verdadeiro atentado à dignidade humana e à liberdade.
O presidente francês, Emmanuel Macron, prometeu que os Jogos Olímpicos de Paris destacariam a grandiosidade da França. No entanto, a expulsão de milhares de sem-teto do centro da capital contradiz essa promessa, expondo uma realidade de exclusão e limpeza social.
“As autoridades prometeram que um dos legados dos Jogos de Paris seria uma sociedade mais inclusiva. Mas Paris não será uma exceção na tendência de esconder os pobres durante as Olimpíadas”, afirmou Théodore Malgrain, porta-voz da ONG O Reverso da Medalha, à BBC News Brasil.
Para a Olimpíada de Paris, mais de 12,5 mil pessoas, sobretudo na capital francesa e na região de Seine-Saint-Denis, foram removidas. Essas remoções geraram protestos e indignação. “Os Jogos Olímpicos e grandes competições, como Copas do Mundo, têm em seu gene a tendência de limpeza social”, destacou Malgrain.
O relator especial das Nações Unidas para o direito à moradia, Balakrishnan Rajagopal, questionou a França sobre a situação dos “grupos marginalizados”, comparando as expulsões em Paris às práticas adotadas por países como a China antes de grandes eventos. As autoridades francesas, no entanto, negam qualquer relação entre as remoções e os Jogos Olímpicos, alegando que se trata de uma política regular de acomodação de emergência.
Contrariamente às alegações oficiais, associações afirmam que o acesso de migrantes a acomodações de emergência fora de Paris se tornou repentinamente mais fácil, com remoções de pessoas que vivem em tendas ou sob pontes em áreas centrais e periféricas da capital. A secretaria de segurança pública de Paris proibiu, no final do ano passado, o reagrupamento de usuários de drogas nas ruas, contribuindo para a diminuição visível da população de rua.
Alegações de insegurança
Segundo levantamento de grupos que prestam assistência a moradores de rua, quase 3,5 mil sem-teto foram contabilizados apenas na capital francesa, um número inferior ao total de remoções, pois inclui também as periferias de Paris. Essas ações são frequentemente justificadas por motivos de segurança, como riscos de incêndio e insalubridade.
As remoções de sem-teto são comuns antes dos Jogos Olímpicos, com técnicas semelhantes às usadas em outras cidades-sede. Nos cálculos da ONG O Reverso da Medalha, 1,5 milhão de pessoas foram retiradas das ruas nos Jogos de Pequim em 2022 e 77 mil no Rio de Janeiro em 2016. Malgrain aponta que a criminalização desse público é seguida por expulsões em massa de pessoas que vivem em barracas e prédios abandonados.
Recentemente, a polícia desmantelou campos de migrantes e acampamentos no norte de Paris, enviando os sem-teto para abrigos temporários em outras regiões da França. As autoridades alegam que essas ações não têm relação com os Jogos Olímpicos e que os abrigos de emergência são responsabilidade do governo francês.
A dispersão dos sem-teto por várias regiões do país deixa essas pessoas em situação ainda mais precária, muitas vezes forçando-as a retornar a Paris. Christophe Noël du Payrat, diretor de gabinete do secretário de segurança pública da região Île-de-France, reitera que a evacuação de acampamentos não está relacionada às Olimpíadas e que as operações visam resolver problemas de insalubridade.
A Prefeitura de Paris informa que as hospedagens de emergência são de competência do governo francês, que organiza as operações de evacuação. As pessoas são enviadas para centros regionais de acomodação temporária, mas acabam sendo novamente colocadas nas ruas devido à falta de recursos nas regiões.
Enquanto isso, o número de sem-teto em Paris permanece alarmante, refletindo uma política que prioriza a imagem da cidade em detrimento dos direitos humanos e da dignidade de seus cidadãos mais vulneráveis.
Remoções nas proximidades dos locais olímpicos
As remoções não se limitaram apenas ao centro de Paris. Em Seine-Saint-Denis, onde estão localizados a Vila Olímpica, o centro aquático e outros locais de competição, como o Stade de France, milhares de pessoas foram desalojadas. A região é conhecida por abrigar muitos imigrantes e ser uma das áreas mais pobres da capital francesa.
Nas proximidades da estação de trem e metrô Gare du Nord, área onde há muitos usuários de crack que pedem dinheiro pelo bairro, o 10º distrito de Paris, uma região central onde fica a praça de la République, essa população ficou progressivamente menos visível nas últimas semanas. A secretaria de segurança pública da capital já havia proibido, no final do ano passado, por decreto, o reagrupamento de usuários de drogas nas ruas.
Comparações com outras sedes olímpicas
As remoções de moradores de rua em Paris têm precedentes em outras cidades que sediaram os Jogos Olímpicos. Em Pequim, em 2022, 1,5 milhão de pessoas foram retiradas das ruas. No Rio de Janeiro, em 2016, 77 mil pessoas foram removidas de áreas próximas aos locais de competição e zonas turísticas.
No Rio, a Vila Autódromo, uma comunidade criada nos anos 1970 onde viviam quase 600 famílias, foi desapropriada para facilitar o acesso ao principal local das competições. A Prefeitura afirmou na época que as remoções só ocorreram em comum acordo com os moradores.
Criminalização e expulsões
Malgrain aponta que, inicialmente, há uma criminalização desse público com operações policiais que visam pequenos delitos. Depois começam as expulsões em massa de pessoas que vivem em acampamentos formados por barracas e também em prédios abandonados. Decisões da Prefeitura e da Secretaria de segurança pública de Paris e de localidades vizinhas ordenaram o fechamento desses lugares por motivos de segurança, como riscos de incêndio e insalubridade.
Evacuações recentes
Na quarta-feira, 17 de julho, a oito dias da cerimônia de abertura das Olimpíadas, a polícia desmantelou dois campos de migrantes no norte da capital onde viviam cerca de 230 pessoas, segundo a ONG Médicos do Mundo. Um dia antes, foi desmontado um acampamento com mais de 200 pessoas no canal de l’Ourcq, no norte de Paris, área onde regularmente há barracas de imigrantes. O local fica perto do parque de la Villette, onde serão instalados, durante a Olimpíada, comitês nacionais estrangeiros, as “casas” dos países, entre elas a do Brasil, que realizarão ali eventos culturais.
As autoridades informaram que moradores de rua no Canal de l’Ourcq poderiam viajar por cinco horas até Besançon, no leste da França, ou ir para um abrigo nas proximidades de Paris. “Esses acampamentos são muito visíveis. Todos eles, com 200 pessoas ou mais, já foram desmantelados. Mas eles acabam sendo formados de novo e desmontados novamente na sequência”, diz Malgrain.
Dispersão e desafios
Em Orléans, na região do Vale do Loire, a 120 quilômetros ao sul de Paris, o prefeito Serge Grouard foi um dos primeiros a denunciar, no final de março, a chegada de moradores de rua e migrantes de Paris “às escondidas”, sem que ele tivesse sido informado. Algumas centenas de pessoas foram enviadas à cidade desde o ano passado, segundo o prefeito. Ele afirmou à imprensa francesa que os abrigos de emergência em Orléans já estavam saturados e que elas foram encaminhadas para hotéis.
A Prefeitura de Paris informou ao canal de TV France 24 que as hospedagens de emergência em outras regiões da França para onde são enviados os moradores de rua são de competência do governo francês, que planeja e organiza as operações de evacuação dos sem-teto e outras pessoas que vivem nas ruas da capital francesa. Normalmente, as pessoas permanecem por até três semanas nos centros regionais de acomodação temporária criados para receber a população de rua expulsa de Paris e seus arredores.
O plano das autoridades é que essas pessoas devem depois ser encaminhadas para uma nova região para uma solução de moradia permanente. “As regiões não têm meios financeiros, e rapidamente essas pessoas são novamente colocadas nas ruas, mas em uma cidade que elas não conhecem e sem os contatos sociais que elas tinham”, ressalta Malgrain. Muitos acabam voltando para Paris ou a periferia da capital onde viviam, afirma Malgrain.