No Brasil contemporâneo, um fenômeno preocupante parece ganhar força: aqueles que, em alto e bom som, autoproclamam-se guardiões da democracia, na prática, têm contribuído para sua lenta agonia. O que se desenrola sob nossos olhos é um cenário em que a promessa de proteger os alicerces democráticos, como a liberdade de expressão e o direito à crítica, se transmuta em um ambiente de censura, perseguição e silenciamento de vozes dissidentes.
Esses novos “coveiros da democracia” buscam, sob o pretexto de coibir discursos de ódio e desinformação, exercer um controle estrito sobre o que pode ou não ser dito, tanto nas redes sociais quanto em manifestações públicas. Não se trata aqui de uma defesa da irresponsabilidade no uso da palavra, mas de um alerta: medidas punitivas e desproporcionais, como prisões e censura prévia, são instrumentos perigosos que arranham o espírito democrático. E soa como trombeta das piores ditaduras.
A liberdade de expressão, mesmo quando desagradável ou incômoda, é um pilar fundamental de qualquer sociedade livre e plural.
A ironia dessa tragédia política e social é que os mecanismos que hoje são utilizados para calar críticos podem, amanhã, se voltar contra os próprios agentes que, no presente, exercem esse poder com mão de ferro. A história é pródiga em exemplos de regimes e lideranças que, ao impor restrições às liberdades, acabaram engolidos por suas próprias armas repressivas.
A democracia é um jogo em que as regras devem ser respeitadas independentemente de quem está no poder, e seu funcionamento saudável exige um equilíbrio entre direitos e deveres, com punições proporcionais aos excessos, aplicadas sem viés ideológico.
Jornalistas e viés ideológico
A cumplicidade de certos setores da imprensa e de grupos de comunicação em todo esse processo é outro elemento que merece reflexão crítica. Muitos jornalistas, comentaristas e veículos, sob a fachada de análises “imparciais” e “responsáveis”, têm abandonado o papel de fiscalizadores do poder, aplaudindo medidas que sufocam a crítica e ferem de morte a liberdade de pensamento.
O viés ideológico, longe de ser um fator isolado, permeia a construção narrativa que transforma opressores em heróis e vozes críticas em vilões.
Ao enaltecerem a censura e o silenciamento, esses comunicadores parecem se esquecer de que a imprensa livre é uma das primeiras vítimas em regimes autoritários. Aplaudir carrascos em um momento é correr o risco de, no futuro, sentir o frio da guilhotina que eles hoje operam.
As análises condescendentes e a falta de questionamento sério a decisões que restringem direitos civis minam a credibilidade da imprensa e alimentam um ciclo de desconfiança que, em última instância, enfraquece o próprio tecido democrático.
O equilíbrio da justiça
O Brasil dispõe de instrumentos legais e constitucionais para tratar de excessos na liberdade de expressão. A Justiça tem o papel de mediar conflitos entre o direito à livre manifestação e a proteção da honra e da dignidade, mas isso deve ocorrer de maneira equilibrada, sem atropelos que abram espaço para arbitrariedades.
Desconsiderar essa premissa é uma receita infalível para corroer a democracia de dentro para fora, deixando-a cada vez mais frágil e vulnerável a interesses autoritários.
Em uma democracia madura, o debate deve ser robusto e inclusivo, não submetido à espada de quem se julga superior moral ou politicamente. As vozes divergentes, ainda que dissonantes, devem ser confrontadas com argumentos e ideias, não com censura ou punição. Só assim é possível evitar que os supostos salvadores da democracia continuem, com suas próprias mãos, a cavar a cova da liberdade que tanto juraram proteger.
Que ninguém se engane: enquanto aplaudimos medidas tirânicas, desproporcionais e arbitrárias, marchamos, ainda que sem perceber, rumo a um abismo de silêncio. Esse silêncio não será só dos críticos de hoje, mas de todos aqueles que, amanhã, sentirão a lâmina do autoritarismo cortar suas próprias vozes.
É preciso resistir a esses coveiros da liberdade, desmascará-los, e lembrar que a única democracia que merece ser defendida é aquela que permite o mais duro, incômodo e livre debate.
O bom combate e as ideias divergentes
Para combater esses coveiros da democracia, que insistem em sufocar a diversidade de pensamento e impor a censura, precisamos utilizar uma das armas mais poderosas de qualquer sociedade livre: o debate robusto e o confronto de ideias em um campo aberto e transparente. A verdadeira defesa da democracia se dá quando cidadãos e instituições abraçam o contraditório, permitindo que ideias, por mais distintas ou incômodas, sejam confrontadas em um ambiente de respeito, responsabilidade e liberdade. Veja algumas propostas:
Promover o debate aberto e sem medo
A resposta mais eficaz à tentativa de silenciamento é promover, cada vez mais, espaços para discussões genuínas, onde vozes divergentes possam ser ouvidas sem receio de punição ou censura. Isso inclui universidades, fóruns comunitários, debates online e até mesmo em meios de comunicação que se dispõem a questionar e refletir.
É essencial que, em vez de temer a pluralidade de opiniões, as pessoas a reconheçam como um motor para o avanço da sociedade.
Desmascarar a hipocrisia e o duplo padrão
Uma abordagem poderosa contra os coveiros da liberdade é expor as contradições e a hipocrisia de seus discursos. Aqueles que clamam pela proteção da democracia enquanto destroem suas bases devem ser constantemente desafiados com exemplos que revelam o abismo entre suas palavras e ações.
Mostrar como a censura hoje pode se virar contra eles amanhã é um lembrete importante de que o autoritarismo nunca é uma solução duradoura.
Educar para a cidadania crítica
Uma população consciente e bem informada é o maior escudo contra regimes autoritários. É necessário investir em uma educação que forme cidadãos críticos, capazes de discernir entre um discurso legítimo de defesa dos direitos e ações que, sob o pretexto de proteger, minam as liberdades fundamentais.
Programas de alfabetização midiática, por exemplo, podem ajudar as pessoas a entender os riscos da manipulação e da censura, empoderando-as para participar ativamente do diálogo público.
Utilizar as ferramentas da lei de forma inteligente
Aqueles que abusam da liberdade de expressão para difundir ódio ou calúnia devem ser responsabilizados dentro dos limites da lei, mas com equilíbrio e sem excessos. O enfrentamento ao abuso deve respeitar os processos legais existentes, sem dar espaço para medidas que rompam com o estado de direito.
A aplicação das leis de maneira justa e não seletiva é essencial para mostrar que a democracia tem suas defesas, mas que essas defesas não podem ser usadas como armas de vingança.
Apoiar uma imprensa livre e corajosa
O papel da imprensa não é agradar o poder, mas fiscalizá-lo. Portanto, é vital apoiar e defender veículos de comunicação que, de fato, se comprometem com a liberdade de expressão e a crítica honesta, sem medo de desagradar autoridades. Como faz o Ver-o-Fato, por exemplo.
Desafiar a cobertura enviesada e exigir uma postura ética dos jornalistas é um passo importante para impedir que a mídia se torne uma ferramenta de conivência com regimes opressores.
Fomentar o diálogo internacional sobre direitos e liberdades
No mundo globalizado, os exemplos de resistência democrática e os desafios que outros países enfrentam podem servir de inspiração e alerta. Fomentar diálogos internacionais e apoiar causas que visem à preservação das liberdades civis pode ajudar a criar uma rede de defesa da democracia.
O compartilhamento de boas práticas e a vigilância coletiva podem ser um recurso valioso.
Plataformas digitais e responsabilidade social
As redes sociais, embora sejam um campo de batalha disputado, podem ser usadas para contrabalançar a narrativa autoritária. Incentivar o uso responsável das mídias digitais e criar redes de apoio para jornalistas, ativistas e cidadãos que sofrem perseguição é uma forma de enfrentar o silenciamento.
A responsabilidade das plataformas em proteger a liberdade de expressão deve ser cobrada, ao mesmo tempo que se desenvolvem estratégias para combater o abuso sem recorrer à censura.
Resumo: ideia nunca morre
Enfrentar os coveiros da democracia, para concluir, requer coragem, persistência e, sobretudo, um compromisso inabalável com a pluralidade de ideias. A democracia floresce no confronto de pensamentos opostos, na capacidade de ouvir o outro, mesmo quando discordamos profundamente. O terreno fértil das ideias divergentes precisa ser cultivado com a consciência de que, quando silenciamos uma voz, perdemos uma parte de nós mesmos.
Precisamos nos levantar, não com pedras ou gritos de ódio, mas com a disposição de construir, questionar e, acima de tudo, garantir que a chama da liberdade nunca se apague.