Conservadores de araque – da bancada parlamentar evangélica – tiveram a cumplicidade dos defensores de araque das mulheres – do PT de Lula e de outros partidos de esquerda – para tentar impor a elas uma punição maior que a de estupradores em caso de aborto após 22 semanas do estupro sofrido.
Na ânsia de definir penalmente o aborto como assassinato em todos os casos praticados depois da semana 22, em reação à decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, de suspender uma resolução do Conselho Federal de Medicina, eles nem sequer atinaram que havia um ponto ainda mais sensível nos casos de estupro, que levaria a um efeito perverso na comparação das penas.
Essa mistura de desleixo e afetação de moralidade superior dos defensores do PL 1904/24 com a indiferença, o oportunismo e a hipocrisia do governo Lula, que orientou a base a aprovar a urgência, rendeu um argumento forte contra o projeto de lei e, portanto, uma reação imensa nas redes sociais, furando as bolhas de militância política e despertando a ira de mulheres comuns que se imaginaram sendo duplamente punidas caso abortem uma eventual gestação forçada, ato até então permitido por lei em qualquer momento.
“Não é matéria de interesse do governo”
Indiferença, porque “não é matéria de interesse do governo”, disse seu líder na Câmara, o petista José Guimarães. Oportunismo, porque o PT busca aproximação com o eleitorado evangélico e temeu a perda de popularidade. Hipocrisia, porque governo e partido dizem uma coisa para seus próprios eleitores e fazem outra no poder.
Depois da repercussão negativa, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse em público o contrário da orientação governista: “Não contem com o governo para mudar a legislação de aborto do país.” Lula aproveitou o embalo: “Eu acho uma insanidade querer punir uma mulher vítima de estupro com uma pena maior que um criminoso que comete o estupro.”
Pesquisas mostram há décadas que a maioria dos brasileiros é contrária ao aborto, motivo pelo qual o Congresso vinha mantendo a autorização da prática apenas para o caso de fetos anencéfalos (aprovada pelo STF em 2012), de risco de morte da mãe, bem como de estupro, em relação ao qual basta a alegação, mesmo sem confirmação do crime, o que, na visão crítica, já abre margem para fraude à lei.
“Assassinato de bebês” x “direitos das mulheres”
A pacificação em torno do tema nunca foi completa, já que ele é explorado à direita e à esquerda para mobilizar eleitores contra o “assassinato de bebês” ou a favor dos “direitos das mulheres”, bem como pelo atual presidente do STF, Luis Roberto Barroso, ex-advogado da causa do aborto dos fetos anencéfalos, que encampa a posição esquerdista na defesa de uma legislação mais permissiva.
Por 12 anos, porém, vigorou o receio congressual de se mexer nesse vespeiro, até que o CFM proibiu a realização da chamada assistolia fetal para interrupção de gravidez após a semana 22 (portanto, do sexto mês, quando a formação do bebê está avançada). Vedado até para a eutanásia de animais e para a execução da pena de morte, o método consiste em injetar substâncias como o cloreto de potássio no feto, causando um ataque cardíaco.
Como, sem um método substituto, a prática do aborto nos três casos previstos em lei ficaria impossibilitada, Moraes suspendeu a resolução do Conselho, mexendo duplamente com os brios dos parlamentares de agenda antiaborto: uma pela causa, outra pela interferência. Daí veio a ânsia de mostrar quem manda na legislação, com um projeto para endurecer a lei.
Reagindo com o fígado
O risco político de reagir com o fígado, ou de buscar mais pose para eleitores convertidos em rede social que solução de problemas concretos mediante consensos sociais, é abrir flanco para adversários desgastados e cínicos, entregando de bandeja uma pauta a ser explorada perante a sociedade, no caso sob forte adesão feminina.
É possível manter posição contra o aborto sem demonstrar insensibilidade com vítimas reais ou potenciais de estupro, inclusive entendendo o aborto como assassinato, mas sem perder de vista que o abalo da violência sexual seguida de gravidez indesejada o torna um ato menos genuinamente perverso que o do estuprador.
Nenhuma pessoa, mesmo estuprada, deve ter licença para cometer assassinatos; porém, a eliminação do feto gerado por estupro não pode ser equiparável, na questão da punibilidade, à eliminação de terceiro indivíduo sem dependência do corpo violado da mulher, sobretudo quando a vítima – muitas delas crianças e adolescentes – não teve oportunidade para abortar antes da semana 22.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, sentiu o aumento da temperatura e adiou a votação em plenário para depois das eleições municipais.
Em meio ao reacionarismo aloprado, ao bom-mocismo hipócrita e à politização de tribunais federais, o debate público brasileiro afunda, divide e enraivece, tornando cada vez mais difícil a construção de consensos, por meio do diálogo transparente e republicano. Com informações de O Antagonista.
A polarização incendeia as redes sociais
Este projeto, apresentado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), incendiou os debates nacionais, reunindo ativistas tanto do movimento pró-vida quanto do movimento pró-escolha em intensas discussões. O deputado Eli Borges (PL-TO), autor do requerimento de urgência e coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, justificou a urgência da medida citando a Organização Mundial da Saúde: “A partir de 22 semanas, é assassinato de criança literalmente, porque esse feto está em plenas condições de viver fora do útero da mãe”, argumentou Borges.
A aprovação da urgência, realizada de forma simbólica sem registro nominal de votos, abre caminho para uma possível alteração no Código Penal brasileiro. Caso o projeto seja aprovado, as penas para aborto após 22 semanas seriam equivalentes às do homicídio simples, com detenção de até 20 anos. No entanto, o projeto também prevê a possibilidade de o juiz mitigar a pena baseando-se nas circunstâncias individuais de cada caso, inclusive podendo dispensar a pena se as consequências do ato forem consideradas suficientemente punitivas para o agente.
A questão é intrincada e evoca profundas implicações jurídicas e religiosas. O projeto de lei ocorre no contexto de uma forte influência de crenças religiosas na política, com a maioria conservadora no Congresso frequentemente buscando legislar com base em princípios pró-vida. Este movimento legislativo foi ainda mais destacado com a decisão recente do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina proibindo a assistolia fetal para abortos após 22 semanas.
Com esta medida legislativa, o debate sobre o aborto no Brasil atinge um novo patamar de urgência e complexidade. Parlamentares, como a deputada Caroline de Toni, presidente da CCJ, prometem continuar a luta pela vida, enquanto ativistas dos direitos das mulheres alertam para os riscos de retrocessos em conquistas fundamentais para a autonomia e saúde feminina. O país, agora, se vê diante de um cenário de embates intensificados entre visões de mundo distintas, onde o equilíbrio entre proteção da vida e direitos individuais está fervorosamente em jogo.
Luta e visões de mundo
A proposta de tornar o aborto realizado após 22 semanas de gestação equivalente ao crime de homicídio simples promete transformar não apenas o cenário legal, mas também influenciar profundamente os costumes sociais no Brasil. Se aprovada, essa medida aumentará significativamente as penas para quem praticar ou auxiliar na realização de um aborto nessas condições, com penas que podem chegar até 20 anos de prisão. Essa mudança representa um endurecimento notável das leis contra o aborto, que já é amplamente proibido no país, exceto em casos de estupro, risco à vida da mãe ou anencefalia do feto.
As implicações legais de uma medida como essa são vastas. Aumentar as penas para abortos tardios pode levar a um aumento do número de procedimentos realizados em condições clandestinas e inseguras. Historicamente, a proibição não tem eliminado a prática do aborto, mas deslocado para ambientes que colocam em risco a vida das mulheres. Clínicas de fundo de quintal, sem as condições sanitárias adequadas e muitas vezes sem profissionais qualificados, podem se tornar ainda mais comuns se as mulheres sentirem que não têm alternativas legais e seguras.
Além disso, a criminalização ampliada pode intensificar o estigma social em torno do aborto. Mulheres que buscam abortar após o limite de 22 semanas, muitas vezes por descobrirem problemas graves de saúde no feto apenas em estágios avançados da gravidez, podem enfrentar não apenas o risco de prisão, mas também severa condenação pública. Esse estigma pode impedir discussões abertas sobre o tema, aumentando o medo e a desinformação.
Juridicamente, o projeto também levanta questões sobre a equidade e a justiça das leis de aborto. Com penas tão severas, existe o risco de desproporcionalidade, especialmente em casos onde as circunstâncias podem exigir uma maior compreensão e sensibilidade. O texto do projeto prevê que o juiz possa mitigar a pena, mas isso deixa uma grande margem de interpretação que pode resultar em aplicação inconsistente da lei.
Em um país como o Brasil, onde as desigualdades sociais e econômicas já ditam quem tem acesso a serviços de saúde reprodutiva de qualidade, leis mais rígidas podem aprofundar essas desigualdades. Mulheres de menor renda, com menos acesso à educação e recursos, serão as mais afetadas, potencialmente enfrentando consequências legais mais severas.
A discussão sobre o projeto de lei reflete uma luta maior entre visões de mundo divergentes, onde a moralidade, a religião e os direitos das mulheres se encontram em um intenso campo de batalha. Enquanto os defensores do projeto celebram o que veem como uma vitória para a vida, críticos alertam para o potencial de violações dos direitos humanos e retrocessos significativos para os direitos das mulheres no Brasil.
Caso pode ir ao STF: e aí?
Atualmente, a legislação brasileira permite o aborto em circunstâncias específicas, estabelecidas pelo Código Penal e por decisões judiciais. O aborto é legal no Brasil em três situações: se a gravidez resulta de um estupro, se representa um risco à vida da mãe, ou se o feto é diagnosticado com anencefalia, uma malformação grave do cérebro. Fora desses casos, o aborto é considerado ilegal e sujeito a sanções penais tanto para quem realiza quanto para quem se submete ao procedimento.
Caso o projeto de lei 1904/2024 seja aprovado no plenário da Câmara dos Deputados, a legislação sobre aborto no Brasil se tornaria ainda mais restritiva. O projeto propõe equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, com penas que podem chegar a até 20 anos de prisão. Isso aumentaria significativamente as consequências legais para os casos de aborto tardio, mesmo em situações onde possa haver justificativa médica ou psicológica para o procedimento após esse período.
No cenário político atual, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera um governo de esquerda, poderia vetar o projeto no momento da sanção presidencial. Isso se alinha à posição mais progressista do governo em relação aos direitos das mulheres e à saúde reprodutiva. Se o presidente decidir vetar o projeto, o veto pode ser derrubado pelo Congresso Nacional com o voto da maioria absoluta de seus membros, que inclui deputados e senadores.
Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF), que tem sido frequentemente acusado de ativismo judicial, poderia ser chamado a se pronunciar sobre a constitucionalidade do projeto, caso ele se torne lei. O STF tem historicamente tomado decisões que expandem os direitos relacionados à saúde reprodutiva sob a ótica dos direitos fundamentais, como foi o caso da decisão sobre a interrupção da gravidez no caso de fetos anencéfalos. Portanto, é possível que o STF avalie negativamente a nova lei, especialmente se considerar que ela infringe os direitos fundamentais das mulheres.
Em suma, a aprovação do projeto de lei 1904/2024 poderia levar a uma mudança significativa na legislação do aborto no Brasil, tornando-a uma das mais restritivas do mundo. Essa mudança teria implicações profundas para as mulheres, para os profissionais de saúde e para o sistema jurídico do país, e certamente continuaria a ser um tema central no debate político e social brasileiro. (Do Ver-o-Fato)