Grande parte força de resgate e acolhimento em desastre climático sem precedentes no Rio Grande do Sul, eles sentem o estresse e cansaço, e sabem que serão necessários por tempo indeterminado
É impossível estimar o quão mais trágica seria a devastação no Rio Grande do Sul se não fossem os voluntários. Nos resgates, abrigos e centros de doações, são grande parte do contingente que dá suporte aos mais de 2 milhões de impactados pela chuva extrema, as enchentes e os deslizamentos nos municípios gaúchos. Há quem diga que deverá ser erguido um monumento a esses milhares de anônimos que têm ajudado a salvar vidas em meio à devastação de um Estado.
Com mais de uma semana de crise humanitária na região metropolitana e ainda mais tempo de impactos no interior, parte dos voluntários dá sinais de cansaço, estresse e esgotamento.
Autoridades têm destacado a necessidade que esse contingente siga engajado diante das semanas (possivelmente meses) de trabalhos ainda por vir, com tantas localidades devastadas e a demora na normalização do nível de diversos corpos d’água, como o Lago Guaíba.
O Estadão entrevistou diversos voluntários de Porto Alegre e Canoas, respectivamente capital e terceira mais populosa cidade do Rio Grande do Sul. Os relatos envolvem pessoas tão movidas pela adrenalina da situação que não percebem sede, fome ou cansaço. Há quem tenha emendado até 28 horas de trabalho ininterrupto, que não pare nem quando chega em casa.
Ao mesmo tempo, os sinais de esgotamento começam a ficar evidentes. Não só pelas dificuldades de ajudar em uma situação com tantas limitações, problemas e sofrimentos, mas também pela situação de indefinição de quando haverá uma resolução, ainda mais após o retorno da chuva nos últimos dias e a tendência de elevação de diversos rios e lagos, inclusive na região metropolitana.
O Estadão entrevistou diversos voluntários de Porto Alegre e Canoas, respectivamente capital e terceira mais populosa cidade do Rio Grande do Sul. Os relatos envolvem pessoas tão movidas pela adrenalina da situação que não percebem sede, fome ou cansaço. Há quem tenha emendado até 28 horas de trabalho ininterrupto, que não pare nem quando chega em casa.
Ao mesmo tempo, os sinais de esgotamento começam a ficar evidentes. Não só pelas dificuldades de ajudar em uma situação com tantas limitações, problemas e sofrimentos, mas também pela situação de indefinição de quando haverá uma resolução, ainda mais após o retorno da chuva nos últimos dias e a tendência de elevação de diversos rios e lagos, inclusive na região metropolitana.
‘Não sinto nada, quando vou embora é que percebo que se passaram tantas horas’
Diante da rápida elevação da enchente em Canoas, Juliett Freitas, de 34 anos, decidiu que precisava fazer alguma coisa. Não sabia o quê. Eram 7 horas da manhã de sábado, 4, quando começou a se mobilizar, apoiando em pequenas demandas aqui e ali, por diversos lugares.
Ajudou em uma escola, uma paróquia, um Centro de Tradição Gaúcha (CTG), na evacuação de ruas, no recolhimento de doações. No início da tarde, chegou no abrigo que começava a se formar — e se tornaria um dos maiores do Estado — do campus da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra). Somente saiu de lá na noite de domingo, 5. Foram cerca 28 horas ininterruptas fora de casa, segundo conta.
“Fui beber água no domingo. Não comi nada. A minha primeira refeição mesmo, de feijão e arroz, foi na terça-feira (7), à noite. Domingo, não consegui jantar direito”, relata. Ela não se considerava cansada, mesmo com a preocupação de colegas para que reduzisse o ritmo.
“Não senti sono, nem cansaço, nem nada. Quando paro é que começa a doer aqui, ali, vi machucados nos meus pés. Mas, na hora, na adrenalina, foi muito de boa. Não me senti com sono. Se eu tivesse sentido, teria vindo embora”, garante. “Essa carga horária foi porque eu quis. Pelo contrário, ficavam preocupados porque trocou umas três vez o turno e eu permanecia.”
Dona de um salão de beleza que está fechado desde o início da enchente, ela abriga uma funcionária e o respectivo filho de 8 anos há mais de uma semana. Inicialmente, chegou a acolher ainda mais gente. “Tinha mais uma família com quatro pessoas, alguns cachorros, gato e até um cavalo”, aponta.
Agora, com as demandas mais assistidas no abrigo, tem conseguido ficar um pouco mais em casa. Mas não tendo. A residência virou ponto de coleta de doações. Tem pego o carro de um conhecido emprestado para levar os itens doados até os locais que precisam. E, ainda, tem se organizado em grupos para fazer varreduras em listas de desaparecidos e pessoas sozinhas em abrigos para ajudar a reunir famílias separadas no resgate.
“Não sinto nada. Quando vou embora é que percebo que se passaram tantas horas. O pessoal cobra muito que eu estou me desgastando, mas realmente não tem me afetado. Eu acordo normalmente, durmo normalmente. Acho que é uma adrenalina”, diz. “Mesmo quando estou em casa, tento ajudar com doações, comunicação com outros abrigos.”
Juliett se preocupa, contudo, como ficará a situação dos mais impactados a medida que as semanas passam e em um cenário de retorno gradual à normalidade em uma parte do Estado. “Quando as águas baixarem, talvez tenha escassez de voluntário. E tem muito chão pela frente ainda. Precisa ter campanha e logística para manter os voluntários após a turbulência passar.”
Quando deito, não consigo apagar as pessoas em desespero da minha cabeça. O barulho dos helicópteros sobrevoando me faz acordar’
No último semestre da graduação em Enfermagem, Carine Pereira, de 40 anos, tem ido à universidade por outro motivo na última semana. Está como voluntária no ambulatório de saúde montado no ginásio, no apoio com curativos, vacinas, medicações. “Não tinha como ser indiferente, corri pra lá. Nunca imaginei passar por situação similar a essa”, desabafa.
Ela conta que cada dia tem sido um desafio, sem saber o que esperar na chegada ao câmpus. Sabe apenas que precisa estar lá, que precisa continuar ajudando. “Em nenhum momento pensei em não ir mais”, comenta. Relata que o número de voluntários reduziu um pouco nessa área, ainda mais diante da dificuldade de colegas conciliarem com o trabalho também sobrecarregado pela tragédia.
Além do apoio na universidade, a estudante acolheu os enteados em casa após serem atingidos pela enchente, junto com os respectivos cães. Em casa, enfrenta as restrições da calamidade, como falta de água e alimentação restrita — até pela impossibilidade de lavar louça adequadamente —, mas o mais difícil é descansar.
“Não durmo bem há dias. Quando deito, não consigo apagar as pessoas em desespero da minha cabeça. O barulho dos helicópteros sobrevoando também me faz acordar. Tento forçar o sono, mas somente adormeço quando o dia já está nascendo. Isso não dá mais que 2 ou 3 horas de sono”, diz.
‘Está todo mundo na adrenalina. Quando tudo isso terminar, o psicológico vai ficar bem afetado’
“Como recrutar pessoas no estado que o seu Estado se encontra?”, é o que se questiona a analista de recursos humanos Alice Pantaleoni Ribeiro, 30 anos. Ela tem se voluntariado junto do marido no acolhimento de pessoas e animais recém-resgatados em Porto Alegre.
Para Alice, parte dos voluntários precisarão de apoio futuramente, pois passam por nível de exposição a situações que nunca vivenciaram. “Como pessoa de RH, acredito que agora que está todo mundo na adrenalina. Mas, no futuro, quando tudo isso ‘terminar’, o psicológico vai ficar bem afetado. Estão vendo coisas que não estão acostumados. Tem animais sendo ressuscitados, que vem a óbito. Pessoas com feridas, fraturas expostas.”
Outro ponto de sensibilidade é lidar com as pessoas que não querem sair de casa. “Tem pessoas que os familiares foram a óbito no meio da enchente e não conseguem desapegar do corpo. Então, acaba sendo muito difícil para os voluntários ver essas coisas”, relata. “Vai precisar da empatia de todo mundo para conseguir lidar com tudo isso no futuro.”
Embora não tenha sido tão afetada, ela e o marido passam por restrições como grande parte da população do Estado após dias sem água e luz, por exemplo. “Mas isso não impediu a gente de ajudar”, garante. No local dos resgates, diz que não falta suporte de outras pessoas querendo manter os voluntários bem, com oferta de marmitas, café, sanduíches.
Alice conta que alguns colegas resistem a deixar os espaços de apoio, engatando turnos. “Vi pessoas que ficaram muitos dias, onde só davam um descansadinha em qualquer lugar, ali mesmo”, relata. “O pessoal dos barcos não descansa. Saem da água com a boca tremendo, encharcados, mas o máximo que fazem é pedir uma bebida quente.”
‘Virei a noite, fiquei horas sem dormir. Aí percebi que isso era um alerta’
A administradora Mariah Albuquerque, de 25 anos, também trabalhou horas e horas a fio durante o início do funcionamento do abrigo instalado no tradicional Colégio Estadual Júlio de Castilho, em Porto Alegre, mais conhecido como “Julinho”. Junto com outros colegas, perceberam que era necessário manter uma rotina e divisão de tarefas menos extenuante e mais atenta à situação de cada um.
“Acho que todo mundo aqui tem o sentimento muito forte, de adrenalina, de querer ajudar. É muito fácil a gente se envolver e não conseguir desligar. Nos primeiros dois dias, virei noite, fiquei horas sem dormir. Aí, percebi que isso era um alerta, que a gente precisa estar bem para conseguir cuidar das pessoas”, conta.
Parte da organização do abrigo e funcionária de uma empresa afetada em Eldorado do Sul, Mariah conta que o espaço chegou a ter até um excesso de voluntários até calibrar as atividades. Também há uma comunicação com outros abrigos, para troca de doações quando há falta ou excedentes.
“Aqui, se está tendo um grande cuidado de conversar com as pessoas, de olho no olho, saber se se está todo mundo bem, se dormiu, se descansou”, conta. Ela conta que o ocorreram casos de estresse excessivo, pressão alta e até burnout. “Precisa dizer ‘tu já ficou aqui 8h, 12h, vamos trocar de turno, deixar outra pessoa fazer essa função’”, explica.
Ao todo, são cerca de 250 voluntários (vários ex-alunos do Julinho), divididos em 15 grupos de trabalho, cada um com tarefas específicas (como triagem, cultura, atendimento em saúde e outros). O espaço abriga aproximadamente 120 pessoas e 30 bichos de estimação.
‘Meus filhos me acompanham. Estão entendendo que o que sobra para nós pode estar faltando para o outro’
Há pouco mais de uma semana, a supervisora bancária Carla Jensen, de 38 anos, recebeu a ligação de uma professora dos filhos para ajudar a organizar a escola caso fosse necessário receber desabrigados pelas enchentes em Canoas. Desde então, é responsável pela organização e divisão de setores.
Carla diz conhecer cada um dos 468 acolhidos. Também enumera quantos têm alguma necessidade específica, como pessoas gestantes, idosas, diabéticas, hipertensas, com filhos bebês, soropositivas, com deficiência, com esquizofrenia e em regime semiaberto. “Era a escola dos meus filhos, hoje é a nossa segunda casa”, descreve.
Ela vai diariamente à Escola Municipal de Ensino Fundamental Paulo Freire, onde parte dos desabrigados também tem se voluntariado. Embora não tenha sido tão impactada, teve a casa parcialmente alagada, mas não precisou deixar a residência.
“Todos os dias, meus três filhos me acompanham. Já estão entendendo que o que sobra para nós pode estar faltando para o outro”, relata. Os meninos são Guilherme, Lucas e Matheus, de 6, 9 e 12 anos, respectivamente.
Como outros voluntários, Carla também tem dificuldades para dormir, diante das preocupações com o abrigo. “Meu marido ainda brinca que vou ficar doente, mas eu ficaria se não tivesse ajudando.”
‘Precisei sair de barco de casa e assumi a coordenação do abrigo na escola’
Morador das proximidades do Rio Gravataí, o diretor de escola Felipi Vidal Fraga, de 27 anos, teve a casa tomada pelas águas com o avanço das enchentes na Grande Porto Alegre. “Precisei sair de barco de casa. Depois, assumi a coordenação do abrigo na escola”, conta.
No dia 2, quando a inundação chegava ao entorno, foi procurado por funcionários que pediram para ficar na Escola Estadual de Ensino Médio André Leão Puente, em Canoas. “Passo o dia trabalhando, pedindo doações”, conta ele, que está alojado com familiares e tem conseguido recrutar alunos e ex-alunos para ajudar nos trabalhos.
Com a casa afetada pela enchente e diante das dificuldades de abastecimento, relata a angústia de gerir um abrigo. O pior momento foi o início da última semana, com os dias seguidos sem água e os banheiros muito sujos. Nem sempre o que é necessário está contemplado em itens doados e doações em dinheiro são raras.”As pessoas estavam pedindo coisas que não tinha como resolver.”
‘Come quando dá, descansa quando consegue. E é dessa forma que está tocando’
O que era um hobby virou uma forma de ajudar para o treinador de cavalos Thiago Leke, de 25 anos, e outros tantos “jipeiros” de Porto Alegre. Em grupos, juntaram-se para fazer resgates em áreas que a enchente ainda estava subindo, assim como têm feito o transporte de coleta e entrega de doações.
“A gente vai ajudar até onde o carro consegue, aí vem o outro grupo de barco para lugares mais fundos”, explica. “Os jipeiros pegaram um hobby e colocaram os seus carros dentro da água para ajudar. Em nenhum momento, se preocupando com custo ou qualquer problema que pudesse dar no carro. O objetivo era ajudar e tirar as pessoas das situações difíceis”, resume.
Ele afirma nunca ter passado por algo parecido. “Quem tem alguma coisa de trabalho para fazer vai antes ou vai depois. Quem conseguiu não precisar trabalhar passa o dia todo envolvido. Come quando dá, descansa quando consegue. E é dessa forma que a gente está tocando”, descreve.
Para ele, os trabalhos poderiam ser ainda mais eficientes mediante mais apoio do poder público na orientação e coordenação dos voluntários. “Acho que todo mundo está se entregando de corpo e alma para ajudar. Se não fosse o povo, a coisa não teria tido a proporção de ajuda que tem”, avalia. As informações são do jornal O Estado de São Paulo.