****Atenção, contém spoiler****
A série Watchmen que dá continuidade ao incomparável quadrinho dos anos 80, pode causar certa estranheza no público que conhece a obra pela sua adaptação aos cinemas de 2009, ao se deparar com comentários sobre lula psíquica alienígena, que matou milhares de pessoas em 2 de novembro de 1985, algo substituído pelo filme.
Os quadrinhos traziam ao fim de cada edição um material suplementar que colocava o leitor a par não somente de muitas informações da história, como também esclarecia quem eram aqueles personagens. Seguindo esses moldes, a série criou o site “peteypedia”, onde são oferecidas uma grande quantidade de documentos que auxiliam o espectador a situar-se nesse mundo.
Passaram-se três décadas desde os acontecimentos dos quadrinhos e podemos notar que o plano de Ozymandias deu certo. Após o ataque da lula psíquica, o mundo que estava à beira de um apocalipse nuclear, se uniu contra um inimigo comum.
O diário de Roscharch foi publicado no jornal em partes, porém, sua autenticidade nunca foi provada. Esse jornal que seguia uma linha editorial sensacionalista de extrema direita, repleta de paranoia anticomunista, transformou o relato de Roscharch em uma teoria da conspiração, onde os incidentes coordenados por Ozymandias eram uma forma de colocar o mundo na mão dos comunistas e culminou com o liberal Robert Redford na presidência em 1992.
O Diário foi então lançado na integra até se tornar um best-seller. A interpretação dada pelo editor do jornal atraiu a atenção da extrema direita, encorajando grupos de pessoas em situação de abandono nas conhecidas “Nixonvilles” a idolatrar Roscharch como um herói, servindo de inspiração para a Sétima Kavalaria (o K deixa claro o seu parentesco com a KuKluxKlan).
Do restante dos personagens da história original, ficamos sabendo que o Coruja está sob custodia federal, Ozymandias desaparecido desde 2012, Spectral passou a adotar o sobrenome de seu pai (o Comediante) e agora se chama Laurie Blake e, o Dr. Manhattan continua em marte.
Toda a tecnologia criada pelo Dr. Manhattan foi abandonada pelo temor de seu potencial cancerígeno, pois algumas tecnologias operam com o mesmo tipo de radiação encontrado na lula psíquica. Além disso, ocorrem repentinas chuvas de pequenas lulas que logo em seguida se desmancham, algo incompreensível, mas que funciona como um constante lembrete da tragédia.
Quem leu o quadrinho sabe que nele são usados muitos recursos que, a cada releitura, se tornam mais coesos em sua riqueza de detalhes, como as rimas visuais, onde uma imagem ecoa uma outra vista anteriormente, ou o uso de histórias dentro da história, para criar um tipo de subtexto.
O episódio começa utilizando muito bem esses recursos do quadrinho ao sobrepor duas situações inversas, que usam como base casos reais. Primeiro temos um garoto negro assistindo na tela do cinema uma adaptação das aventuras do Bass Reeves, o delegado negro de Oklahoma, uma figura lendária, responsável pela prisão de mais de 3000 criminosos e pela morte de 14 pessoas sem levar um único tiro. Na tela, o ator que interpreta Reeves diz“nada de justiça das ruas hoje”, evitando assim um linchamento. Fora do cinema, porém, a justiça das ruas já tomou conta de tudo, e podemos escutar sirenes e explosões e é nesse momento que a serie nos situa: Estamos em Tulsa, ano de 1921, local que abrigava a comunidade negra mais rica do pais e foi palco de uma das maiores barbáries da história americana (e que até pouco tempo não era reconhecido nos livros). Em uma tentativa de impor a “justiça das ruas”, os moradores brancos da cidade iniciaram uma explosão de violência que resultou em mais de 1000 residências e pontos comerciais dos moradores negros incendiados, além de um grande número feridos e uma quantidade incerta de mortos que, dependendo da fonte, varia de 39 até 300. O menino que estava no cinema e um recém-nascido são os únicos sobreviventes de seu grupo, e terminam caminhando por uma estrada sem rumo.
Continuamos na mesma estrada, agora em 2019, onde uma cena que inverte clichês, finaliza com um policial negro baleado pelo membro da Sétima Kavalaria. A cena segue embalada ironicamente pelo cantarolar da versão negra do musical “Oklahoma!” que o xerife Judd Crawford assiste no mesmo teatro onde o garotinho via o filme do início do episódio. Uma espiral de violência racial que quase 100 anos depois permanece enraizada na cidade onde a inversão da desigualdade social é a pólvora.
A presença do musical Oklahoma! perpassa o episódio de forma enigmática. Esta se vincula a Judd Crawford já no momento em que ele nos é apresentado no teatro, em seguida, no jantar com sua família e amigos quando ele canta “People Will Say We’re In Love”, música originalmente interpretada pelo herói do musical Curly McLaine, no final, quando o vemos enforcado, escutamos “Pore Jud is daid” que fala sobre a morte do vilão. O título do episódio “It’s summer and we’re running out of ice” (É verão e estamos ficando sem gelo), foi retirado do penúltimo verso dessa música.
Ao longo do episódio podemos ver uma dose de fanservice acontecer em medidas aceitáveis, que não comprometem o foco da série, como o “Quis custodiet ipsos custodes” dito pelos policiais que traduzido do latim: “Quem vigia os vigilantes?”.
A serie encontra um bom substituto para o ambiente polarizado da guerra fria que estava levando o mundo ao colapso nos anos 80, com o embate entre liberais e conservadores da atualidade, assim como a intenção original no quadrinho era ser um retrato da estrutura política de sua época. Watchmen inicia como uma boa promessa de continuidade a uma das mais importantes obras da nona arte.
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