Tiago Veloso – geógrafo *
No início dos anos 2000 pesquisas acerca da Orla de Belém, realizadas ou coordenadas pelo professor e pesquisador Saint-Clair C. Trindade Júnior, do curso de Geografia da Universidade Federal do Pará, identificaram os múltiplos usos que se fazia daquele espaço. Na época da pesquisa, parcelas da orla de Belém eram um espaço de disputa por projetos políticos que estavam na gestão municipal da cidade ou na gestão estadual. Foram várias as intervenções realizadas e que passaram a marcar Belém como seus novos cartões-postais. Havia, como ainda hoje há, um discurso mobilizado por quase todos os agentes de que “a orla deveria ser reaberta para a população”, de que era preciso que Belém deixasse de ser uma “cidade de costas para o rio” ou de que era necessário “revitalizar” a orla.
No período da pesquisa sobre a orla, a preocupação foi entendê-la por completo, e não apenas limitar-se aos projetos que eram desenvolvidos em pontos específicos. Assim, foi possível percorrer toda a extensão e assim, identificar os usos que efetivamente se fazia pelos diversos agentes e populações que nela estão. Por fim, foi possível propor uma classificação da orla, para pensar políticas que potencializassem o seu uso público, uma necessidade de todos na cidade.
A classificação encontrou usos bastante distintos, mas uma coisa ficou clara a todos que faziam parte do projeto de pesquisa. A Orla de Belém é, como sempre foi, um espaço vivo de relações econômicas, culturais, ambientais, permeada por uma população que nela habita e a construiu e que, portanto, as políticas de “revitalização” daquele espaço não fazem sentido se não estiverem em constante diálogo com aqueles que o produzem. Em termos de classificação, foram quatro os tipos identificados de acordo com uma topologia de uso do espaço:
- A Orla Central – do canal da Tamandaré até o projeto Ver-O-Rio –, é a área que comporta o centro histórico de Belém, a zona portuária principal e concentra o comércio varejista e de atacado no centro de Belém. É a área de maior interesse turístico e na qual políticas de revitalização urbana relativamente bem-sucedidas foram efetivadas.
- A Orla Oeste – do projeto Ver-O-Rio até o Cruzeiro (no distrito de Icoaraci) –, é marcada pela presença de grandes terrenos de uso empresarial privado e institucional (militares, por exemplo). Identificou-se uma ocupação urbana mais adensada nas extremidades dessa porção, tanto nas imediações do centro de Belém quanto nas proximidades de Icoaraci.
- A Orla Sul – do limite sul com Ananindeua até o canal da Tamandaré –, é uma porção com grande adensamento populacional de bairros periféricos. Em especial pela apropriação privada em terrenos de pequena extensão junto ao rio Guamá, nos quais estão portos e trapiches que conectam a cidade as ilhas do entorno e viabilizam importantes trocas comerciais dos produtos regionais (frutas, peixe, farinha) que vem das ilhas de Belém e abastecem seus mercados urbanos. É uma parte da orla que também apresentava áreas verdes relativamente preservadas.
- A Orla Norte – do Cruzeiro até o limite norte com Ananindeua –, é área de ocupação mais recente, em função da instalação do distrito industrial de Icoaraci e do uso mais intenso da ilha do Outeiro como balneário popular. É uma porção em processo de expansão urbana de natureza privada e periférica, cuja pressão se faz sobre ambientes que ainda estavam preservados.
O mapeamento desses diversos usos cotidianos da orla e sua relação com a cidade e a região podem dialogar positivamente com as políticas públicas que se propõem para esse espaço, pois reitero que a orla, ao contrário do que se diz, é um espaço vivo e pulsante da vida econômica, ambiental e cultural de Belém.
As políticas de ontem e de hoje, podem e devem potencializar esses usos e atividades de lazer, turismo, gastronomia popular, pequenos comércios, serviços ambientais e transportes fluviais que estão sintonizadas com a história de Belém e da Amazônia e já contém uma economia urbana dinâmica, que pode ser melhor regulada para gerar ainda mais emprego e renda do que geram. Essa é a dimensão da economia urbana de uma Belém ribeirinha que todos nós temos interesse que permaneça.
Po isso, penso que não faz sentido algum abrir mão desse imenso potencial já existente e efetivo em troca da instalação de atividades que geram poucos empregos de má qualidade, em desacordo com o tecido urbano e que acarretam imenso impacto sobre a infraestrutura e o sistema viário.
Nesse ponto, refiro especificamente a recente proposta de alteração do Plano Diretor da cidade que entrou na agenda política. Como é de conhecimento público, a alteração legislativa visa permitir usos comerciais de tipo atacadista, mas não só, eles abrem a possibilidade de que a orla seja um espaço futuramente voltado a especulação imobiliária e projetada para aqueles que desejam nela viver a partir de um tipo de moradia semelhante a que vimos em outras capitais do Brasil. Esse é um projeto que implicitamente promove uma futura remoção de populações de baixa renda, que são as principais responsáveis por boa parte daquelas atividades que descrevi acima e que construíram no seu cotidiano a orla que Belém tem na atualidade.
A pesquisa, dentre outros resultados, produziu dois livros sobre Belém e sua orla, enfocando como esse espaço é um resíduo da “Belém ribeirinha” que todos nós temos tanto orgulho de ter. Nós livros, que estão abaixo como referências, há diversos textos que aprofundam a rede de relações econômicas e culturais, além de tipologias de classificação utilizadas neste artigo.
Referências
TRINDADE JR. Saint-Clair C; SILVA, Marcos Alexandre Pimentel. Belém: a cidade e o rio na Amazônia. Belém-PA: EDUFPA, 2005. v. 1.
TRINDADE JR. Saint-Clair C. TAVARES, Maria Goretti da Costa. Cidade ribeirinhas na Amazônia: mudanças e permanências”.
- Tiago Veloso é Geógrafo com Doutorado em Desenvolvimento Sustentável pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA). Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará (IFPA), Vice-Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Ordenamento Territorial e Urbanodiversidade na Amazônia (GEOURBAM), Sócio Efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP) e Pesquisador associado ao Núcleo de Pesquisa Urbana e Regional da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Divulgação de pesquisas e análises no Twitter: (@Tiveloso)
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